Imagem de OVOODOCORVO |
CIDADANIA
É a hora dos
cidadãos como agentes de mudança nas cidades
O acentuar de
problemas económicos, urbanísticos e espaciais, com expressão nas cidades, tem
contribuído para um despertar cívico, com impacto na gestão do poder. Quem o
detém tem de estar mais apto para o partilhar e os cidadãos mais conscientes
para participar, argumentam três especialistas com quem falámos.
Vítor Belanciano
4 de Janeiro de 2020, 23:20
Movimentos
urbanos. Organizações de cidadãos mais ou menos informais. Abaixo-assinados e
petições. Cada vez mais pessoas querendo ser ouvidas sobre a governação das
cidades. Não é um facto novo. Mas dir-se-ia que nos últimos meses tudo se
intensificou. Há mais visibilidade. Uma nova percepção nasceu.
Na vizinha
Espanha, algumas das dinâmicas cidadãs geradas no pós-crise económica de 2008
acabaram por aceder ao poder. Aqui ainda não estamos aí. Mas no caso das
grandes cidades portuguesas, com destaque para Lisboa e Porto, as pessoas
parecem ter-se saturado de serem receptores passivos, ou mesmo vítimas das
transformações aceleradas e querem ser ouvidas sobre habitação, ambiente,
turismo, ruído e políticas urbanas. Da parte de quem detém o poder também se
evidencia existir uma nova consciência sobre o momento que se vive. Parece
haver mais espaço para o diálogo, apesar das muitas desconfianças, de parte a
parte, que ainda subsistem.
Portugal não é
caso singular. A tensão entre interesses públicos e privados, entre quem habita
na cidade e a visita temporariamente ou entre quem vai acumulando cada vez mais
capital e quem só já consegue sobreviver é globalizada. Aqui a peculiaridade
advém da explosão tardia do fenómeno e da brusquidão do mesmo. Às vezes parecem
estar em causa fenómenos circunscritos — foi o que aconteceu, em Lisboa, por
exemplo, quando se discutiu desde 2018 o gradeamento em torno do miradouro do
bairro de Santa Catarina (Adamastor) ou a utilização da Praça do Martim Moniz
—, mas é cada vez mais nítido que esse confinamento é ilusório.
O que temos são
conflitualidades que se manifestam de forma concreta, mas de dimensão
transversal, onde têm de ser geridos diversos interesses, muitos deles gerando
tensões entre a dimensão local e global (comércio tradicional vs. marcas
internacionais; capital local vs. fundos externos; vida de bairro vs. estilos
de vida globalizados). Até nos movimentos urbanos essa lógica está presente,
entre a formação de grupos informais (Libertem o Adamastor, Movimento Jardim
Martim Moniz, Morar em Lisboa, Stop Despejos, Left Hand Rotation, Menos
Barulho, Zero Waste Lab, etc.) e grandes manifestações globais, como aconteceu
há meses com a greve climática estudantil.
Como é possível
manter algum tipo de equilíbrio entre todas estas lógicas, sem que se invalidem
reciprocamente, é a difícil questão a que todos querem responder. Ouvimos três
especialistas de vida urbana, tentando perceber o que conduziu a este momento,
como é percebida a actualidade e que tipo de estratégias podem ser desenhadas
para o futuro próximo.
Repartir o poder
Para o conhecido
geógrafo espanhol Oriol Nel-lo, autor de várias obras (entre elas, A Cidade em
Movimento, editada em Portugal pela Tigre de Papel) sobre movimentos urbanos, o
momento actual poder-se-ia resumir numa frase: “Quem detém o poder nas cidades
tem de estar cada vez mais disponível para o repartir com os cidadãos e estes
têm de estar cada vez mais aptos a exercer a cidadania.” Para ele, que tem tido
um papel de destaque nas políticas de ordenamento territorial de Barcelona e da
Catalunha, existe uma altura-chave para compreender o que se passa na
actualidade em toda a Península Ibérica: a crise financeira e económica de
2008.
“Em Espanha
sempre existiu uma longa tradição de movimentos sociais urbanos, como as
associações de moradores que foram importantes no período de transição
democrática, mas na última década intensificaram-se por causa da ausência de
respostas políticas e de mercado satisfatórias. E isso foi visível na Península
Ibérica, talvez porque o encantamento tardio com o sistema de bem-estar
aconteceu quando outros já o estavam a desmontar e não conseguimos a redução
mais desejável das desigualdades, tanto em termos sociais como territoriais.”
Na sua visão, a
crise acabou por “servir de desculpa” para a implementação de duras medidas
neoliberais. “É então que surge um conjunto de movimentos que expressam tanto
um mal-estar social e económico, como desencanto politicamente. E tanto mais
forte é esse desapontamento pela incapacidade do mercado, e do Estado, na hora
de garantir bens e serviços básicos a uma parte dos cidadãos, quando se vinha
de um período de alguma bonança e redução das desigualdades.”
No preencher
desse vazio, em Espanha, nos anos a seguir ao irromper da crise, cada vez mais
cidadãos se foram organizando — “existiram muitas iniciativas cidadãs que deram
respostas à ausência desses pequenos serviços básicos através de movimentos de
inovação social, como as cooperativas de consumo” —, ao mesmo tempo que
surgiram movimentos “a reivindicar direitos, exercendo alternativas, muitos
deles afectados por hipotecas imobiliárias. Tudo isto esteve na base das fortes
mobilizações durante o período de 2011 a 2016”.
Uma das
singularidades do caso espanhol é que todos esses acontecimentos, que
despontaram em bairros, se foram tornando pujantes, acabando por estar na
génese da chegada ao poder em várias cidades. “Num contexto de crise política e
social, muitos desses movimentos — grupos políticos que não correspondem aos
partidos tradicionais — acabaram por tomar o poder da maioria das grandes
cidades espanholas, como Madrid, Barcelona, Saragoça, Corunha, Santiago de Compostela
ou Cádis, o que é algo espectacular, demonstrando as potencialidades e também
limitações destas dinâmicas.”
Aparecer e
desaparecer
As
potencialidades, segundo Oriol, têm que ver com o facto de terem conseguido
mudar a agenda da política local e não só, com temas como a habitação, a
economia e organização das cidades a ganharem centralidade, introduzindo também
novas formas de governação e formação de redes. “As limitações têm que ver com
a dificuldade em edificarem-se como movimento político mais dotado de um
programa e constituírem-se como uma alternativa mais geral.” Um segundo
problema é o tempo.
“Por norma, estes
movimentos diluem-se passado algum tempo, daí que não seja fácil provocar
mudanças estruturais. E depois existe também a questão espacial. Existe
dificuldade em intervir na área metropolitana, que é algo que também senti em
Lisboa e Porto. Se não existe uma forma de actuar sobre o conjunto da área
metropolitana, como acontece em Lisboa na relação com a outra margem, as
dificuldades são acrescidas.”
Na comparação com
aquilo que conhece de Portugal, concede duas hipóteses diversas para a
capacidade de intervenção dos cidadãos nos dois países. “A perspectiva
pessimista — os movimentos são mais débeis em Portugal do que em Espanha e não
têm capacidade de intervir. O ponto de vista optimista — os partidos políticos
e o sistema institucional em Portugal têm maior capacidade de dar resposta do
que o sistema espanhol.”
Seja qual for o
prisma, o balanço no poder é positivo, segundo o seu diagnóstico. “A alguns
destes movimentos sociais aconteceu-lhes aquilo que é normal — quando conseguem
uma parte dos seus objectivos começam a decair enquanto movimento, porque os
motivos que levaram à mobilização tendem a desaparecer.” Não é esse, no
entanto, o caso de Barcelona, na sua opinião. “Aquilo que se conseguiu em
quatro anos é notável, apesar de Ada Colau estar em minoria.”
À frente dos
destinos de Barcelona desde 2015, a política e ex-activista social Ada Colau,
que antes da eleição fazia da luta pelo direito à habitação a sua principal
ocupação, conseguiu aprovar um plano para a limitação de alojamento turístico e
abertura de novos estabelecimentos hoteleiros. “Não há muitas cidades que
tenham conseguido uma regulação deste tipo, criando um operador de habitação
protegida à escala metropolitana ou criando uma empresa pública de energia
eléctrica, conseguindo ao mesmo tempo a unificação tarifária dos transportes em
toda a zona. Conseguiram-se avanços substantivos e reais e isto abre uma porta
de esperança.”
Apesar de todas
as medidas avançadas, existe ainda a percepção de que Barcelona é uma das urbes
europeias que mais sofrem dos efeitos colaterais do turismo. “Houve um tempo,
não há muitos anos, em que Barcelona era vista como um estudo de caso de
sucesso nesse campo. Depois, passou a ser vista como vítima desse sucesso. E
agora estamos num patamar de equilíbrio. Existem partes da cidade que funcionam
com grande pressão turística, mas também foram tomadas medidas muito destacadas
no contexto europeu que estão a ter efeitos. Essa noção europeia dos problemas
é importante porque muitas vezes a única forma de fazer frente a grandes
interesses privados globais — como algumas plataformas digitais de aluguer de
apartamentos — é exercer influência junto da comunidade europeia no sentido da
regulação económica.”
Entre o oito e o
oitenta
Enquanto em Espanha
existe uma tradição da participação cívica na gestão da cidade, a possibilidade
de todos poderem participar em decisões e planeamentos, em Portugal essa marca
é mais frágil. Aliás, em Portugal, segundo o investigador e professor João
Seixas, com trabalho realizado na área da sociopolítica, da geografia e da
economia das metrópoles, só agora as políticas de cidade começam a ser
diferentes.
“O que prevalecia
era uma visão histórica e patrimonial. A cidade não era olhada como veículo de
progresso, não só económico, como também de coesão, de direitos e bem-estar.”
Na sua visão, quando surgiu a crise no final da década passada, os políticos,
instituições e cidadãos não estavam preparados para olhar a cidade como fonte
de progresso. “Ao contrário, hoje, os territórios urbanos, a qualidade de vida,
o bem-estar, os direitos e oportunidades
acabam por ser tidos em conta.”
A meio da década
que agora termina, o turismo e a capacidade de atrair investimento para a
reabilitação urbana, principalmente em Lisboa e Porto, foram encarados como
respostas à crise económica. “O turismo é um sector económico importante em
Portugal e assim deve continuar, mas não pode ser o modelo exclusivo”, defende
João Seixas. “O turismo de qualidade só é possível numa cidade de qualidade.
Por isso, o problema é quando o turismo, ou algum tipo de reabilitação urbana,
não são pensados como veículo de bem-estar.”
Depois do
regozijo por Portugal estar a ser descoberto pelo resto do mundo, com impactos
económicos e também na auto-estima do país, seguiu-se a apreensão e contestação
por alguns dos efeitos secundários ao nível da especulação imobiliária. Um
ciclo que Barcelona experimentou e que Lisboa e Porto estão a viver. “Quando
tudo está a mudar tão depressa, é natural que as pessoas reajam de forma
emocional, sejam cidadãos, políticos ou empresários. Há a percepção de um
passado que já não volta — nem queremos que volte — mas também uma forte
vertigem de transformação que provoca disrupções nos nossos direitos. Lisboa é
um produto turístico extraordinário, é natural que isto acontecesse. Cada vez
que há um período de irrupção, como dizia o Umberto Eco, existem os
apocalípticos, que dizem que o mundo vai acabar amanhã, e os integrados, que no
caso de Lisboa são os eufóricos. Andamos assim, entre o oito e o oitenta, numa
cidade de oportunidades, mas que tenderá a desperdiçá-las, se acreditar que o
mercado se auto-regula.”
Percebeu-se que a
metrópole estava em mutação e apostou-se na reabilitação urbana e em alguma
requalificação de espaços públicos, mas “isso não gerou necessariamente maior
justiça social e espacial, porque os preços dispararam e os investimentos
externos não olham — nem têm de o fazer — para as questões espaciais. Têm de
ser as políticas públicas a deter essa capacidade de visão urbana de uma
maneira transversal”.
A reacção
política às transformações, ao nível do poder local, segundo João Seixas, foram
“ainda muito modernistas”. “As autarquias não têm muitas capacidades, é um
processo que está neste momento em transformação. Há apenas cinco anos os autocarros
não eram da cidade, mas do governo central, o que dá uma imagem da lenta
transição destas coisas.”
Regular em tempos
convulsos
Em alturas de
grandes mudanças, segundo este investigador, o “exercício da política torna-se
mais difícil e a tentação é fazer projectos-bandeira: agarra-se num dossier,
vislumbra-se um projecto, vê-se quanto custa, quem é o responsável, quando é
que está pronto e quando inaugura”. O problema surge quando alguém sugere que a
cidade não pode ser administrada assim. “Tem de ser gerida numa lógica de
centrifugação, com centros cívicos, em co-governação. E os políticos dizem: ok
e resultados? É um paradoxo. Quanto mais precisamos desta centrifugação —
muitas vezes sem resultados concretos, numa lógica de se tentar e por vezes errar
—, os políticos querem é resultados.”
O poder enfrenta
a desordem e as tensões afirmando uma lógica concreta. “Reabilitam-se edifícios
devolutos, aposta-se nos passes sociais, o que faz sentido, mas não chega
reabilitar a cidade a nível físico, apesar de algumas boas práticas ao nível da
requalificação.” E dá exemplos: “O eixo verde-e-azul na ribeira do Jamor,
resultante de um acordo entre três municípios (Amadora, Sintra e Oeiras), da
qual tem resultado a revitalização da ribeira que estava poluída, com um
projecto de paisagismo, ecologia e intervenção social que é extraordinário. Um
outro projecto interessante é o BipZip, atribuindo alguma responsabilidade
política a movimentos de cidadãos, numa lógica de interligação que devia ser
mais potenciada, e nesse capítulo os poderes políticos têm grande
responsabilidade.”
Na sua visão, é
necessário dotar os cidadãos de espaços de intervenção e concretizar fóruns de
reflexão que possam interligar diferentes agentes. “É preciso colocar frente a
frente gente do imobiliário e críticos do turismo excessivo, ou os agentes dos
automóveis e das bicicletas. E mediar. Em alturas de transformação, isso é
essencial.” Na sua óptica, este tipo de debates permitia gerir melhor várias
sensibilidades e diminuir a ansiedade social. “Outra questão é que está na
altura de serem feitas reflexões estratégicas e construir novas visões para
aquilo que queremos para a cidade. No caso de Lisboa, é preciso realizar um
processo amplo de discussão nessa direcção, como fez em tempos Jorge Sampaio
para a Lisboa metropolitana.”
É preciso gerar
algum tipo de equilíbrio entre interesses privados e públicos. E dá o exemplo
do Mercado da Ribeira, em Lisboa. “É uma boa metáfora porque, de um lado, temos
o mercado Time Out, que a câmara aprovou, e do outro o mercado dos comerciantes
à espera de investimento e de uma boa gestão pública que ainda não surgiu.”
João Seixas vinca que não se trata de deter uma visão exclusivista, onde os
privados não caberiam, mas de fazer coabitar várias lógicas, como na habitação.
“O que temos hoje é grandes fundos a investir na habitação e com fraquíssima
regulação. Ok! Podem vir, mas com regulamentos e percentagens para a habitação
a preços protegidos. E ainda assim continuariam a vir. Não ganhariam o mesmo a
curto prazo, mas tenho a certeza de que há empresários que quereriam fazer
contratos de estabilidade. É preciso construir alternativas para estes tempos
convulsos.”
Correr atrás do
prejuízo
Quem também
partilha da ideia que há um certo despertar cívico em muitas cidades
portuguesas é José Carlos Mota, investigador e docente do Departamento de
Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro, que tem
dinamizado várias actividades cidadãs nos últimos tempos.
“Estamos num
momento de mudança, com um acordar cívico que resulta em muitos casos de uma
consciencialização maior relativamente àquilo que é a cidade e os territórios
que a constituem. E, por outro lado, há uma maior visibilidade mediática que
essa acção está a gerar, até porque se trata de uma fase de maior qualificação
da intervenção cívica.”
Na sua visão, até
há pouco tempo, havia uma consciência de intervenção cívica muito reactiva,
muito ligada às questões do ambiente e da poluição. “Mas muito mais centrada
sobre os espaços naturais e pouco na cidade. A cidade esteve um pouco fora
desse foco de atenção das questões ambientais, começando a surgir em particular
com os movimentos ligados à mobilidade em bicicleta — que são quem traz a
temática ambiental para a cidade.” O que aconteceu nos últimos tempos, na sua
opinião, foi que estamos a partir de uma consciência mais sectorial, centrada
em objectos e em temas com uma intervenção mais organizada e estruturada.
“Deixámos de ter movimentos e organizações
formadas por associações ou pessoas individuais e começamos a ter estruturas
organizadas, mais horizontais, muitas delas comunicando a partir das redes
sociais. A Internet ajudou muito a criar esse elo de comunicação e esse foi um
salto positivo que gerou um efeito de arrastamento. O caso do Adamastor e do
Martim Moniz, em Lisboa, acabou por ganhar espaço na comunicação, com as
pessoas a envolverem-se em causas que por norma não faziam. Há aqui uma mudança
na forma de organização cívica que se tornou mais eficaz.”
Esse facto não
resolve uma questão de fundo, na sua apreciação. “O problema é que temos uma
intervenção muito reactiva. Estamos a actuar sobre os problemas. Há uma coisa
que determinada câmara ou privado quer fazer e só aí se reage. Há dinâmica de
reacção. Não existe proactividade. E isso é pernicioso porque estamos sempre a
correr atrás do prejuízo. O que está a acontecer em algumas cidades, como
Barcelona e Madrid, é a passagem desta cultura de intervenção cívica reactiva
para uma cultura cívica organizada e proactiva, em particular nas dinâmicas da
inovação cívica ou dos laboratórios cidadãos. Há uma mudança de contexto que
vale a pena olhar.”
O desejável seria
criar disposições onde movimentos de cidadãos e dinâmicas institucionais
pudessem coabitar. “É isso que acontece em Madrid e Barcelona.” No caso da
capital espanhola, destaca o programa Experimenta Distrito, lugares de encontro
e aprendizagem, onde qualquer morador pode apresentar projectos pensados para
os bairros, participando na sua dinamização, enquanto em Barcelona é a própria
edilidade que promove estruturas similares, “numa lógica de aproximação entre governantes
e cidadãos e vice-versa”.
E depois existe
também o caso de Aveiro, onde o próprio José Carlos Mota tem activado, “sem
apoios institucionais”, iniciativas com algumas semelhanças. “Espero que os
poderes públicos percebam a necessidade e a importância de co-construir a
cidade com os cidadãos e, portanto, criarem essas plataformas. Mas quando isso
não acontece, que os cidadãos se organizem, para terem uma intervenção um pouco
diferente. O que é que isso vai obrigar? Este tipo de organização cívica vai
obrigar a ter algum tipo de apoios, de moderação ou de intermediação.”
O seu ponto é que
as dinâmicas cidadãs não podem ser sempre contra o poder. “De contrário, o
poder organiza-se contra estas coisas. Tem de haver algum tipo de intermediação
entre aquilo que são os cidadãos e a administração”, podendo a iniciativa
partir da administração. Em casos onde não seja possível, podem ser as
universidades a dar esse passo, criando espaço para experimentar novas
metodologias e formas de diálogo. “Em Aveiro, isso tem sido feito, pondo-se os
cidadãos a falarem e a escutarem-se entre si, o que acaba por ser uma forma de
mostrar à administração outras formas de renovar a cidade.”
Ouvir no início e
não no fim
No caso dos
projectos onde tem participado, “a ideia é construir espaços de escuta de
comunidades locais, dos bairros em particular, actuando numa escala de
proximidade, onde as pessoas se possam sentir confortáveis”. A ideia é
experimentar metodologias de identificação de problemas, de diálogos, de diagnósticos
partilhados. “A partir de um olhar particular de quais são os problemas do
bairro, criar-se uma visão comum. E depois identificar microprojectos,
micro-iniciativas, coisas às vezes próximas do urbanismo táctico muito
experimentais onde possamos testar conceitos que respondam aos problemas. E
fazemos isso segundo uma lógica de tirar partido dos recursos que temos porque
não temos dinheiro. Não temos a câmara, ou o Governo, a pagar para fazermos
isto. Fazemos com os recursos disponíveis dos investigadores da universidade,
gente das empresas tecnológicas, associações locais e moradores. E construímos
sempre projectos que demoram três a quatro meses.”
O mais espantoso,
segundo ele, é a “mobilização que estes projectos têm”. O mais recente
laboratório decorreu no bairro de Santiago, “um dos mais delicados de Aveiro”,
onde no lançamento do projecto “estiveram presentes nas iniciativas quase cem
pessoas, com 60 a trabalharem no mesmo durante três meses, sendo dez dos
projectos desenvolvidos do inicio ao fim, com resultados concretos de
transformação”.
As diferentes
fases de construção começam pelo diálogo, pela reflexão, seguindo-se “a imersão
no bairro, de forma a ser criada uma consciência sobre os problemas que se
enfrentam”. Depois, é lançada uma convocatória de ideias, onde se identifica
aquelas que os moradores do bairro sentem que deviam ser implementadas. “As
ideias no caso de Santiago foram tão diversas como o problema da poluição e
abandono do jardim do bairro — tivemos uma escola que esteve dois meses a
trabalhar com as crianças de cinco e seis anos numa campanha de sensibilização
— ou um grupo de empresas da área da tecnologia que esteve a trabalhar com
pessoas idosas na capacitação tecnológica. Noutro caso, tivemos a comunidade
africana, que tem uma representação forte, a dar-se a conhecer através da
gastronomia, fazendo workshops de partilha culinária e de confecção. Enfim,
todas estas iniciativas são construídas de forma colaborativa — havia um
promotor e um conjunto de colaboradores — e esteve-se a trabalhar nelas durante
três meses, concretizando-se propostas e aprendendo-se a dialogar, com pessoas
muito diferentes, de gerações e perfis diversos. E isso foi muito inspirador e
feito sem apoios.”
Do lado dos
poderes públicos, este tipo de acções ainda gera desconforto. “Vêem-nos com
desconfiança. E essa é a grande batalha a travar, mostrar que aqui não existe
nenhuma ameaça. O que tem de haver é uma mudança no estilo de governação, uma
maior abertura, porque a verdade é esta: quando são criadas as condições, as
pessoas envolvem-se, querem participar e todos ficam a ganhar. O que é preciso
é haver espaços adequados, para que as pessoas se sintam confortáveis, sabendo
que vão ser ouvidas no início dos processos e não no final, e que aquilo que
transmitem é comunicado de forma inteligível, podendo ter consequências.”
Quem detém o
poder tem de estar cada vez mais disponível para o repartir de forma não
artificial, criando condições para uma relação mais horizontal com os cidadãos.
Estes por sua vez têm a responsabilidade de estar prontos para intervir, não se
ficando pela reactividade, dispondo-se à reflexão em colectivo. E para isso
acontecer são necessários mediadores e canais de informação eficientes, para
que não se gere um diálogo de surdos. Em nome de uma cidade de todos
para todos.
Sem comentários:
Enviar um comentário