domingo, 5 de janeiro de 2020

É a hora dos cidadãos como agentes de mudança nas cidades

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CIDADANIA
É a hora dos cidadãos como agentes de mudança nas cidades

O acentuar de problemas económicos, urbanísticos e espaciais, com expressão nas cidades, tem contribuído para um despertar cívico, com impacto na gestão do poder. Quem o detém tem de estar mais apto para o partilhar e os cidadãos mais conscientes para participar, argumentam três especialistas com quem falámos.

Vítor Belanciano 4 de Janeiro de 2020, 23:20

Movimentos urbanos. Organizações de cidadãos mais ou menos informais. Abaixo-assinados e petições. Cada vez mais pessoas querendo ser ouvidas sobre a governação das cidades. Não é um facto novo. Mas dir-se-ia que nos últimos meses tudo se intensificou. Há mais visibilidade. Uma nova percepção nasceu.

Na vizinha Espanha, algumas das dinâmicas cidadãs geradas no pós-crise económica de 2008 acabaram por aceder ao poder. Aqui ainda não estamos aí. Mas no caso das grandes cidades portuguesas, com destaque para Lisboa e Porto, as pessoas parecem ter-se saturado de serem receptores passivos, ou mesmo vítimas das transformações aceleradas e querem ser ouvidas sobre habitação, ambiente, turismo, ruído e políticas urbanas. Da parte de quem detém o poder também se evidencia existir uma nova consciência sobre o momento que se vive. Parece haver mais espaço para o diálogo, apesar das muitas desconfianças, de parte a parte, que ainda subsistem.

Portugal não é caso singular. A tensão entre interesses públicos e privados, entre quem habita na cidade e a visita temporariamente ou entre quem vai acumulando cada vez mais capital e quem só já consegue sobreviver é globalizada. Aqui a peculiaridade advém da explosão tardia do fenómeno e da brusquidão do mesmo. Às vezes parecem estar em causa fenómenos circunscritos — foi o que aconteceu, em Lisboa, por exemplo, quando se discutiu desde 2018 o gradeamento em torno do miradouro do bairro de Santa Catarina (Adamastor) ou a utilização da Praça do Martim Moniz —, mas é cada vez mais nítido que esse confinamento é ilusório.

O que temos são conflitualidades que se manifestam de forma concreta, mas de dimensão transversal, onde têm de ser geridos diversos interesses, muitos deles gerando tensões entre a dimensão local e global (comércio tradicional vs. marcas internacionais; capital local vs. fundos externos; vida de bairro vs. estilos de vida globalizados). Até nos movimentos urbanos essa lógica está presente, entre a formação de grupos informais (Libertem o Adamastor, Movimento Jardim Martim Moniz, Morar em Lisboa, Stop Despejos, Left Hand Rotation, Menos Barulho, Zero Waste Lab, etc.) e grandes manifestações globais, como aconteceu há meses com a greve climática estudantil.

Como é possível manter algum tipo de equilíbrio entre todas estas lógicas, sem que se invalidem reciprocamente, é a difícil questão a que todos querem responder. Ouvimos três especialistas de vida urbana, tentando perceber o que conduziu a este momento, como é percebida a actualidade e que tipo de estratégias podem ser desenhadas para o futuro próximo.

Repartir o poder
Para o conhecido geógrafo espanhol Oriol Nel-lo, autor de várias obras (entre elas, A Cidade em Movimento, editada em Portugal pela Tigre de Papel) sobre movimentos urbanos, o momento actual poder-se-ia resumir numa frase: “Quem detém o poder nas cidades tem de estar cada vez mais disponível para o repartir com os cidadãos e estes têm de estar cada vez mais aptos a exercer a cidadania.” Para ele, que tem tido um papel de destaque nas políticas de ordenamento territorial de Barcelona e da Catalunha, existe uma altura-chave para compreender o que se passa na actualidade em toda a Península Ibérica: a crise financeira e económica de 2008.

“Em Espanha sempre existiu uma longa tradição de movimentos sociais urbanos, como as associações de moradores que foram importantes no período de transição democrática, mas na última década intensificaram-se por causa da ausência de respostas políticas e de mercado satisfatórias. E isso foi visível na Península Ibérica, talvez porque o encantamento tardio com o sistema de bem-estar aconteceu quando outros já o estavam a desmontar e não conseguimos a redução mais desejável das desigualdades, tanto em termos sociais como territoriais.”

Na sua visão, a crise acabou por “servir de desculpa” para a implementação de duras medidas neoliberais. “É então que surge um conjunto de movimentos que expressam tanto um mal-estar social e económico, como desencanto politicamente. E tanto mais forte é esse desapontamento pela incapacidade do mercado, e do Estado, na hora de garantir bens e serviços básicos a uma parte dos cidadãos, quando se vinha de um período de alguma bonança e redução das desigualdades.”

No preencher desse vazio, em Espanha, nos anos a seguir ao irromper da crise, cada vez mais cidadãos se foram organizando — “existiram muitas iniciativas cidadãs que deram respostas à ausência desses pequenos serviços básicos através de movimentos de inovação social, como as cooperativas de consumo” —, ao mesmo tempo que surgiram movimentos “a reivindicar direitos, exercendo alternativas, muitos deles afectados por hipotecas imobiliárias. Tudo isto esteve na base das fortes mobilizações durante o período de 2011 a 2016”.

Uma das singularidades do caso espanhol é que todos esses acontecimentos, que despontaram em bairros, se foram tornando pujantes, acabando por estar na génese da chegada ao poder em várias cidades. “Num contexto de crise política e social, muitos desses movimentos — grupos políticos que não correspondem aos partidos tradicionais — acabaram por tomar o poder da maioria das grandes cidades espanholas, como Madrid, Barcelona, Saragoça, Corunha, Santiago de Compostela ou Cádis, o que é algo espectacular, demonstrando as potencialidades e também limitações destas dinâmicas.”

Aparecer e desaparecer
As potencialidades, segundo Oriol, têm que ver com o facto de terem conseguido mudar a agenda da política local e não só, com temas como a habitação, a economia e organização das cidades a ganharem centralidade, introduzindo também novas formas de governação e formação de redes. “As limitações têm que ver com a dificuldade em edificarem-se como movimento político mais dotado de um programa e constituírem-se como uma alternativa mais geral.” Um segundo problema é o tempo.

“Por norma, estes movimentos diluem-se passado algum tempo, daí que não seja fácil provocar mudanças estruturais. E depois existe também a questão espacial. Existe dificuldade em intervir na área metropolitana, que é algo que também senti em Lisboa e Porto. Se não existe uma forma de actuar sobre o conjunto da área metropolitana, como acontece em Lisboa na relação com a outra margem, as dificuldades são acrescidas.”

Na comparação com aquilo que conhece de Portugal, concede duas hipóteses diversas para a capacidade de intervenção dos cidadãos nos dois países. “A perspectiva pessimista — os movimentos são mais débeis em Portugal do que em Espanha e não têm capacidade de intervir. O ponto de vista optimista — os partidos políticos e o sistema institucional em Portugal têm maior capacidade de dar resposta do que o sistema espanhol.”

Seja qual for o prisma, o balanço no poder é positivo, segundo o seu diagnóstico. “A alguns destes movimentos sociais aconteceu-lhes aquilo que é normal — quando conseguem uma parte dos seus objectivos começam a decair enquanto movimento, porque os motivos que levaram à mobilização tendem a desaparecer.” Não é esse, no entanto, o caso de Barcelona, na sua opinião. “Aquilo que se conseguiu em quatro anos é notável, apesar de Ada Colau estar em minoria.”

À frente dos destinos de Barcelona desde 2015, a política e ex-activista social Ada Colau, que antes da eleição fazia da luta pelo direito à habitação a sua principal ocupação, conseguiu aprovar um plano para a limitação de alojamento turístico e abertura de novos estabelecimentos hoteleiros. “Não há muitas cidades que tenham conseguido uma regulação deste tipo, criando um operador de habitação protegida à escala metropolitana ou criando uma empresa pública de energia eléctrica, conseguindo ao mesmo tempo a unificação tarifária dos transportes em toda a zona. Conseguiram-se avanços substantivos e reais e isto abre uma porta de esperança.”

Apesar de todas as medidas avançadas, existe ainda a percepção de que Barcelona é uma das urbes europeias que mais sofrem dos efeitos colaterais do turismo. “Houve um tempo, não há muitos anos, em que Barcelona era vista como um estudo de caso de sucesso nesse campo. Depois, passou a ser vista como vítima desse sucesso. E agora estamos num patamar de equilíbrio. Existem partes da cidade que funcionam com grande pressão turística, mas também foram tomadas medidas muito destacadas no contexto europeu que estão a ter efeitos. Essa noção europeia dos problemas é importante porque muitas vezes a única forma de fazer frente a grandes interesses privados globais — como algumas plataformas digitais de aluguer de apartamentos — é exercer influência junto da comunidade europeia no sentido da regulação económica.”


Entre o oito e o oitenta
Enquanto em Espanha existe uma tradição da participação cívica na gestão da cidade, a possibilidade de todos poderem participar em decisões e planeamentos, em Portugal essa marca é mais frágil. Aliás, em Portugal, segundo o investigador e professor João Seixas, com trabalho realizado na área da sociopolítica, da geografia e da economia das metrópoles, só agora as políticas de cidade começam a ser diferentes.

“O que prevalecia era uma visão histórica e patrimonial. A cidade não era olhada como veículo de progresso, não só económico, como também de coesão, de direitos e bem-estar.” Na sua visão, quando surgiu a crise no final da década passada, os políticos, instituições e cidadãos não estavam preparados para olhar a cidade como fonte de progresso. “Ao contrário, hoje, os territórios urbanos, a qualidade de vida, o bem-estar, os direitos e oportunidades  acabam por ser tidos em conta.”

A meio da década que agora termina, o turismo e a capacidade de atrair investimento para a reabilitação urbana, principalmente em Lisboa e Porto, foram encarados como respostas à crise económica. “O turismo é um sector económico importante em Portugal e assim deve continuar, mas não pode ser o modelo exclusivo”, defende João Seixas. “O turismo de qualidade só é possível numa cidade de qualidade. Por isso, o problema é quando o turismo, ou algum tipo de reabilitação urbana, não são pensados como veículo de bem-estar.”

Depois do regozijo por Portugal estar a ser descoberto pelo resto do mundo, com impactos económicos e também na auto-estima do país, seguiu-se a apreensão e contestação por alguns dos efeitos secundários ao nível da especulação imobiliária. Um ciclo que Barcelona experimentou e que Lisboa e Porto estão a viver. “Quando tudo está a mudar tão depressa, é natural que as pessoas reajam de forma emocional, sejam cidadãos, políticos ou empresários. Há a percepção de um passado que já não volta — nem queremos que volte — mas também uma forte vertigem de transformação que provoca disrupções nos nossos direitos. Lisboa é um produto turístico extraordinário, é natural que isto acontecesse. Cada vez que há um período de irrupção, como dizia o Umberto Eco, existem os apocalípticos, que dizem que o mundo vai acabar amanhã, e os integrados, que no caso de Lisboa são os eufóricos. Andamos assim, entre o oito e o oitenta, numa cidade de oportunidades, mas que tenderá a desperdiçá-las, se acreditar que o mercado se auto-regula.”

Percebeu-se que a metrópole estava em mutação e apostou-se na reabilitação urbana e em alguma requalificação de espaços públicos, mas “isso não gerou necessariamente maior justiça social e espacial, porque os preços dispararam e os investimentos externos não olham — nem têm de o fazer — para as questões espaciais. Têm de ser as políticas públicas a deter essa capacidade de visão urbana de uma maneira transversal”.

A reacção política às transformações, ao nível do poder local, segundo João Seixas, foram “ainda muito modernistas”. “As autarquias não têm muitas capacidades, é um processo que está neste momento em transformação. Há apenas cinco anos os autocarros não eram da cidade, mas do governo central, o que dá uma imagem da lenta transição destas coisas.”

Regular em tempos convulsos
Em alturas de grandes mudanças, segundo este investigador, o “exercício da política torna-se mais difícil e a tentação é fazer projectos-bandeira: agarra-se num dossier, vislumbra-se um projecto, vê-se quanto custa, quem é o responsável, quando é que está pronto e quando inaugura”. O problema surge quando alguém sugere que a cidade não pode ser administrada assim. “Tem de ser gerida numa lógica de centrifugação, com centros cívicos, em co-governação. E os políticos dizem: ok e resultados? É um paradoxo. Quanto mais precisamos desta centrifugação — muitas vezes sem resultados concretos, numa lógica de se tentar e por vezes errar —, os políticos querem é resultados.”

O poder enfrenta a desordem e as tensões afirmando uma lógica concreta. “Reabilitam-se edifícios devolutos, aposta-se nos passes sociais, o que faz sentido, mas não chega reabilitar a cidade a nível físico, apesar de algumas boas práticas ao nível da requalificação.” E dá exemplos: “O eixo verde-e-azul na ribeira do Jamor, resultante de um acordo entre três municípios (Amadora, Sintra e Oeiras), da qual tem resultado a revitalização da ribeira que estava poluída, com um projecto de paisagismo, ecologia e intervenção social que é extraordinário. Um outro projecto interessante é o BipZip, atribuindo alguma responsabilidade política a movimentos de cidadãos, numa lógica de interligação que devia ser mais potenciada, e nesse capítulo os poderes políticos têm grande responsabilidade.”

Na sua visão, é necessário dotar os cidadãos de espaços de intervenção e concretizar fóruns de reflexão que possam interligar diferentes agentes. “É preciso colocar frente a frente gente do imobiliário e críticos do turismo excessivo, ou os agentes dos automóveis e das bicicletas. E mediar. Em alturas de transformação, isso é essencial.” Na sua óptica, este tipo de debates permitia gerir melhor várias sensibilidades e diminuir a ansiedade social. “Outra questão é que está na altura de serem feitas reflexões estratégicas e construir novas visões para aquilo que queremos para a cidade. No caso de Lisboa, é preciso realizar um processo amplo de discussão nessa direcção, como fez em tempos Jorge Sampaio para a Lisboa metropolitana.”

É preciso gerar algum tipo de equilíbrio entre interesses privados e públicos. E dá o exemplo do Mercado da Ribeira, em Lisboa. “É uma boa metáfora porque, de um lado, temos o mercado Time Out, que a câmara aprovou, e do outro o mercado dos comerciantes à espera de investimento e de uma boa gestão pública que ainda não surgiu.” João Seixas vinca que não se trata de deter uma visão exclusivista, onde os privados não caberiam, mas de fazer coabitar várias lógicas, como na habitação. “O que temos hoje é grandes fundos a investir na habitação e com fraquíssima regulação. Ok! Podem vir, mas com regulamentos e percentagens para a habitação a preços protegidos. E ainda assim continuariam a vir. Não ganhariam o mesmo a curto prazo, mas tenho a certeza de que há empresários que quereriam fazer contratos de estabilidade. É preciso construir alternativas para estes tempos convulsos.”

Correr atrás do prejuízo
Quem também partilha da ideia que há um certo despertar cívico em muitas cidades portuguesas é José Carlos Mota, investigador e docente do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro, que tem dinamizado várias actividades cidadãs nos últimos tempos.

“Estamos num momento de mudança, com um acordar cívico que resulta em muitos casos de uma consciencialização maior relativamente àquilo que é a cidade e os territórios que a constituem. E, por outro lado, há uma maior visibilidade mediática que essa acção está a gerar, até porque se trata de uma fase de maior qualificação da intervenção cívica.”

Na sua visão, até há pouco tempo, havia uma consciência de intervenção cívica muito reactiva, muito ligada às questões do ambiente e da poluição. “Mas muito mais centrada sobre os espaços naturais e pouco na cidade. A cidade esteve um pouco fora desse foco de atenção das questões ambientais, começando a surgir em particular com os movimentos ligados à mobilidade em bicicleta — que são quem traz a temática ambiental para a cidade.” O que aconteceu nos últimos tempos, na sua opinião, foi que estamos a partir de uma consciência mais sectorial, centrada em objectos e em temas com uma intervenção mais organizada e estruturada.

 “Deixámos de ter movimentos e organizações formadas por associações ou pessoas individuais e começamos a ter estruturas organizadas, mais horizontais, muitas delas comunicando a partir das redes sociais. A Internet ajudou muito a criar esse elo de comunicação e esse foi um salto positivo que gerou um efeito de arrastamento. O caso do Adamastor e do Martim Moniz, em Lisboa, acabou por ganhar espaço na comunicação, com as pessoas a envolverem-se em causas que por norma não faziam. Há aqui uma mudança na forma de organização cívica que se tornou mais eficaz.”

Esse facto não resolve uma questão de fundo, na sua apreciação. “O problema é que temos uma intervenção muito reactiva. Estamos a actuar sobre os problemas. Há uma coisa que determinada câmara ou privado quer fazer e só aí se reage. Há dinâmica de reacção. Não existe proactividade. E isso é pernicioso porque estamos sempre a correr atrás do prejuízo. O que está a acontecer em algumas cidades, como Barcelona e Madrid, é a passagem desta cultura de intervenção cívica reactiva para uma cultura cívica organizada e proactiva, em particular nas dinâmicas da inovação cívica ou dos laboratórios cidadãos. Há uma mudança de contexto que vale a pena olhar.”

O desejável seria criar disposições onde movimentos de cidadãos e dinâmicas institucionais pudessem coabitar. “É isso que acontece em Madrid e Barcelona.” No caso da capital espanhola, destaca o programa Experimenta Distrito, lugares de encontro e aprendizagem, onde qualquer morador pode apresentar projectos pensados para os bairros, participando na sua dinamização, enquanto em Barcelona é a própria edilidade que promove estruturas similares, “numa lógica de aproximação entre governantes e cidadãos e vice-versa”.

E depois existe também o caso de Aveiro, onde o próprio José Carlos Mota tem activado, “sem apoios institucionais”, iniciativas com algumas semelhanças. “Espero que os poderes públicos percebam a necessidade e a importância de co-construir a cidade com os cidadãos e, portanto, criarem essas plataformas. Mas quando isso não acontece, que os cidadãos se organizem, para terem uma intervenção um pouco diferente. O que é que isso vai obrigar? Este tipo de organização cívica vai obrigar a ter algum tipo de apoios, de moderação ou de intermediação.”

O seu ponto é que as dinâmicas cidadãs não podem ser sempre contra o poder. “De contrário, o poder organiza-se contra estas coisas. Tem de haver algum tipo de intermediação entre aquilo que são os cidadãos e a administração”, podendo a iniciativa partir da administração. Em casos onde não seja possível, podem ser as universidades a dar esse passo, criando espaço para experimentar novas metodologias e formas de diálogo. “Em Aveiro, isso tem sido feito, pondo-se os cidadãos a falarem e a escutarem-se entre si, o que acaba por ser uma forma de mostrar à administração outras formas de renovar a cidade.”

Ouvir no início e não no fim
No caso dos projectos onde tem participado, “a ideia é construir espaços de escuta de comunidades locais, dos bairros em particular, actuando numa escala de proximidade, onde as pessoas se possam sentir confortáveis”. A ideia é experimentar metodologias de identificação de problemas, de diálogos, de diagnósticos partilhados. “A partir de um olhar particular de quais são os problemas do bairro, criar-se uma visão comum. E depois identificar microprojectos, micro-iniciativas, coisas às vezes próximas do urbanismo táctico muito experimentais onde possamos testar conceitos que respondam aos problemas. E fazemos isso segundo uma lógica de tirar partido dos recursos que temos porque não temos dinheiro. Não temos a câmara, ou o Governo, a pagar para fazermos isto. Fazemos com os recursos disponíveis dos investigadores da universidade, gente das empresas tecnológicas, associações locais e moradores. E construímos sempre projectos que demoram três a quatro meses.”

O mais espantoso, segundo ele, é a “mobilização que estes projectos têm”. O mais recente laboratório decorreu no bairro de Santiago, “um dos mais delicados de Aveiro”, onde no lançamento do projecto “estiveram presentes nas iniciativas quase cem pessoas, com 60 a trabalharem no mesmo durante três meses, sendo dez dos projectos desenvolvidos do inicio ao fim, com resultados concretos de transformação”.

As diferentes fases de construção começam pelo diálogo, pela reflexão, seguindo-se “a imersão no bairro, de forma a ser criada uma consciência sobre os problemas que se enfrentam”. Depois, é lançada uma convocatória de ideias, onde se identifica aquelas que os moradores do bairro sentem que deviam ser implementadas. “As ideias no caso de Santiago foram tão diversas como o problema da poluição e abandono do jardim do bairro — tivemos uma escola que esteve dois meses a trabalhar com as crianças de cinco e seis anos numa campanha de sensibilização — ou um grupo de empresas da área da tecnologia que esteve a trabalhar com pessoas idosas na capacitação tecnológica. Noutro caso, tivemos a comunidade africana, que tem uma representação forte, a dar-se a conhecer através da gastronomia, fazendo workshops de partilha culinária e de confecção. Enfim, todas estas iniciativas são construídas de forma colaborativa — havia um promotor e um conjunto de colaboradores — e esteve-se a trabalhar nelas durante três meses, concretizando-se propostas e aprendendo-se a dialogar, com pessoas muito diferentes, de gerações e perfis diversos. E isso foi muito inspirador e feito sem apoios.”

Do lado dos poderes públicos, este tipo de acções ainda gera desconforto. “Vêem-nos com desconfiança. E essa é a grande batalha a travar, mostrar que aqui não existe nenhuma ameaça. O que tem de haver é uma mudança no estilo de governação, uma maior abertura, porque a verdade é esta: quando são criadas as condições, as pessoas envolvem-se, querem participar e todos ficam a ganhar. O que é preciso é haver espaços adequados, para que as pessoas se sintam confortáveis, sabendo que vão ser ouvidas no início dos processos e não no final, e que aquilo que transmitem é comunicado de forma inteligível, podendo ter consequências.”

Quem detém o poder tem de estar cada vez mais disponível para o repartir de forma não artificial, criando condições para uma relação mais horizontal com os cidadãos. Estes por sua vez têm a responsabilidade de estar prontos para intervir, não se ficando pela reactividade, dispondo-se à reflexão em colectivo. E para isso acontecer são necessários mediadores e canais de informação eficientes, para que não se gere um diálogo de surdos. Em nome de uma cidade de todos para todos.

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