domingo, 5 de janeiro de 2020

Da guerra na sombra à guerra aberta no Médio Oriente?

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ANÁLISE
Da guerra na sombra à guerra aberta no Médio Oriente?

JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
4 de Janeiro de 2020, 20:07

1. Madrugada de 15 de Abril de 1986. Num ataque surpresa da força aérea e da marinha dos EUA foram bombardeadas instalações militares na Líbia, na área da capital, em Trípoli. Alguns desses bombardeamentos acabaram por provocar danos em áreas civis. No total, terão morrido mais quarenta militares da Líbia, tendo os norte-americanos perdido um avião e dois pilotos. O principal alvo foi o complexo militar de Bab al-Azizia, nos subúrbios da capital, onde residia Muammar Kadhafi. Uma chamada telefónica de aviso, efectuada pouco tempo antes dos bombardeamentos, a qual terá sido feita pelo antigo Primeiro-Ministro italiano Bettino Craxi, possibilitou a Muammar Khadafi escapar com vida. A Itália, tal como a França, não tinha autorizado o uso do seu espaço aéreo nessa operação militar. O bombardeamento ordenado pelo Presidente dos EUA, Ronald Reagan, foi uma retaliação directa ao atentado de 5/4/1986, perpetrado numa discoteca em Berlim, no qual foram mortos dois militares norte-americanos e várias dezenas ficaram feridos.

2. Face aos bombardeamentos de Trípoli em 1986, a principal resposta da Líbia ocorreu dois anos mais tarde, num atentado terrorista que provocou a explosão do voo 103 da Pan Am, a 21/12/1988, quando sobrevoava Lockerbie, na Escócia. Morreram as 259 pessoas a bordo. Na época, Muammar Kadhafi estava envolvido no que usualmente se chama uma ‘guerra nas sombras’ contra os EUA, os seus aliados ocidentais e Israel, com várias frentes. Recorria a actores interpostos do mundo árabe sunita, nomeadamente a elementos dos grupos palestinianos mais violentos. Anteriormente, em finais de 1985 os aeroportos de Roma e de Viena foram alvo de ataques terroristas contra a companhia aérea israelita El Hal, provocando dezenas de mortos, entre quais se encontravam quatro norte-americanos. Para além disso, a Líbia apoiava também grupos que actuavam no Ocidente europeu com recurso à violência e ao terror, por extremismo ideológico ou reivindicação nacionalista, em particular as facções mais radicais do Exército Republicano Irlandês (IRA) e a Facção do Exército Vermelho/Grupo Baader-Meinhof, na Alemanha. Aspecto importante: Muammar Khadafi ambicionava transformar a Líbia numa potência militar-nuclear, estando a empreender múltiplas actividades nesse sentido. O caso lembra o do Irão.

3. Madrugada de 3 de Janeiro de 2020. Numa operação militar no Iraque, no aeroporto internacional de Bagdad, sem autorização do governo iraquiano, os norte-americanos usando drones e helicópteros atacaram os veículos onde se deslocava o general Qassem Soleimani, da Guarda Revolucionária Islâmica do Irão, comandante da divisão especial, a Força Quds. Qassem Soleiman foi abatido pelo disparo de um míssil AGM-114 Hellfire, feito por um drone MQ-9 Reaper. Embora por razões que não são as mesmas, tal como a Líbia no passado, o Irão está envolvido numa guerra nas sombras contra os EUA — e, claro, também contra Israel e a Arábia Saudita —, em várias frentes e com actores interpostos. Para o Irão, o ponto crítico foi o abandono, pelos EUA, do acordo nuclear de 2015 e a reimposição de sanções económicas com o intuito de estrangular a sua economia.

No ataque no aeroporto de Bagdad um dos principais actores interpostos foi também abatido. A força paramilitar iraquiana xiita, Hashed Al Shaabi/Forças de Mobilização popular, perdeu aí um dos seus principais chefes, Abu Mahdi Al Muhandis. Nesta já longa guerra por procuração e/ou feita nas sombras, o único incidente ‘às claras’ —  ou seja, onde o Irão assumiu autoria — foi o abate, a 20 de Junho de 2019, de um drone da marinha norte-americana, modelo RQ-4 Global Hawk, não tripulado, Golfo Pérsico. Em Maio e Junho de 2019, diversos navios petroleiros foram atacados no Golfo Pérsico, sem que a autoria fosse reivindicada. Mas a acção mais espectacular foi o ataque em Abqaiq–Khurais, na Arábia Saudita, às instalações da petrolífera Saudi Aramco, a 14 de Setembro de 2019, mostrando a vulnerabilidade saudita. Também aí ninguém reivindicou o atentado que terá sido efectuado com drones e mísseis, a partir do Iémen.

4. As comparações históricas são quase sempre discutíveis e de uso limitado para a compreensão do mundo presente. O Irão certamente não é a Líbia. O mundo político de hoje também não é o dos anos 1980, marcado pela Guerra-Fria e por um condomínio hegemónico dos EUA e da União Soviética. Na lógica de alianças da época, a Líbia era um Estado próximo dos soviéticos. Quanto ao Irão do Xá Reza Pahlavi — que foi um aliado norte-americano até à revolução islâmica de 1979 —, com o Ayatollah Ruhollah Khomeini no poder passou a ser um inimigo acérrimo. Mas há paralelismos interessantes com esse passado. Tal como ocorreu com a Líbia, o Irão pretende ser uma potência nuclear. As suas acções de guerra nas sombras e de guerra por procuração fazem lembrar, até certo ponto, as prosseguidas por Muammar Khadafi nos anos 1980.

Mas a Líbia é um Estado árabe sunita, não xiita, e nunca teve tão ampla rede de influências. O Irão tem outra envergadura geopolítica. É um Estado maior, mais populoso, mais rico em recursos naturais — desde logo em petróleo e gás natural —, e com outra dimensão da economia e grau de desenvolvimento tecnológico. Tem uma rede de influência por quase todo o Médio Oriente, especialmente onde há populações xiitas ou próximas. Os xiitas do Hezbollah no Líbano, Basahr al-Assad e os alauítas na Síria, os múltiplos grupos e milícias xiitas no Iraque e os houthis no Iémen são canais de projecção da influência externa iraniana. Foi na construção dessa teia clientelar — e em múltiplas operações feitas na sombra, atacando e eliminando inimigos — que Qasem Soleimani teve um papel decisivo na projecção externa do Irão.

5. As máscaras caíram. Nem o governo de Donald Trump nos EUA pode negar uma atitude agressiva face ao Irão — e falta de genuína vontade em negociar —, nem o Irão se pode continuar a apresentar como uma vítima inocente do ‘imperialismo americano’, que nunca fez nada de mal. O general iraniano Qassem Soleimani não estava de férias de final de ano em Bagdad. Nem se encontrou no aeroporto com Abu Mahdi Al Muhandis para discutir teologia xiita. Se Qassem Soleimani era objecto de enorme admiração e reverenciado no Irão, bem como entre os xiitas do Médio Oriente, era igualmente alvo de um ódio profundo por muitos árabes sunitas, em particular no Iraque e na Síria.

Mas o ser humano está sujeito a excessos de confiança, sobretudo quando é muito bem-sucedido. E a fazer más interpretações do comportamento de outros seres humanos — esse terá sido o maior erro de Qassem Soleimani. Em crises internacionais agudas e na guerra as consequências podem ser enormes e trágicas. O Irão interpretou mal a inacção militar anterior dos EUA. No caso dos petroleiros, no caso do abate do drone e no caso do ataque às instalações da Saudi Aramco, leu a inacção militar como fazendo parte de um padrão expectável de Donald Trump até às eleições presidenciais de 2020. Quando, nos dias finais de 2019, se deu o sequestro da embaixada dos EUA em Bagdad, feito por xiitas iraquianos, o Irão estaria à espera que Donald Trump disparasse mais tweets raivosos e inconsequentes, não que ordenasse como retaliação um ataque mortífero com drones e mísseis AGM-114 Hellfire contra o seu mais importante general em missão no Iraque. Mas o sequestro da embaixada reavivou a memória da crise dos reféns da embaixada dos EUA no Irão, tomada de assalto a 4/11/1979 e cujo impasse durou até 20/01/1981. Ao mesmo tempo, o Irão subestimou que, no cálculo político de Trump, uma retaliação militar nesta altura até lhe poderá ser favorável na política interna face ao processo de impeachment.

6. Há agora uma grande incógnita em tudo isto: como vai ser a resposta do Irão e que consequências irá desencadear. Nesta altura, apenas podemos conjecturar. A resposta pode ir desde ataques a bases militares dos EUA no Iraque ou noutros Estados do Médio Oriente, a acções contra navios petroleiros do golfo pérsico, ao sequestro ou assassínio de pessoal diplomático e outros civis, a ataques contra alvos norte-americanos no território dos EUA ou fora dele, ou outras acções, perpetradas directamente ou executadas por procuração. Previsíveis são as perdas materiais e de vidas humanas, militares e/ou civis, de maior ou menor dimensão, tal como um aumento do preço do petróleo. A situação é, sem qualquer dúvida, perigosa para os interesses dos EUA e para os seus nacionais em todo o Médio Oriente.

Mas o Irão tem também um problema delicadíssimo nas mãos, tal como Muammar Khadafi teve quando foi bombardeado em 1986. Como reagir sem se mostrar fraco, mas também sem dar azo uma resposta militar demolidora dos EUA? Com esta escalada do conflito, poderá não adiantar muito refugiar-se numa negação, ainda que plausível, da autoria. Se aquilo que o general David Patreus sugeriu como uma possível mensagem diplomática dissuasora — informar o Irão que qualquer retaliação da sua parte levará a um ataque dos EUA às suas infra-estruturas petrolíferas e às forças militares em território iraniano —, o dilema do Irão será mesmo extraordinário. Os próximos tempos mostrarão o rumo dos acontecimentos.

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