Imagem de OVOODOCORVO |
ANÁLISE
Da guerra na
sombra à guerra aberta no Médio Oriente?
JOSÉ PEDRO
TEIXEIRA FERNANDES
4 de Janeiro de
2020, 20:07
1. Madrugada de
15 de Abril de 1986. Num ataque surpresa da força aérea e da marinha dos EUA
foram bombardeadas instalações militares na Líbia, na área da capital, em
Trípoli. Alguns desses bombardeamentos acabaram por provocar danos em áreas
civis. No total, terão morrido mais quarenta militares da Líbia, tendo os
norte-americanos perdido um avião e dois pilotos. O principal alvo foi o
complexo militar de Bab al-Azizia, nos subúrbios da capital, onde residia
Muammar Kadhafi. Uma chamada telefónica de aviso, efectuada pouco tempo antes
dos bombardeamentos, a qual terá sido feita pelo antigo Primeiro-Ministro
italiano Bettino Craxi, possibilitou a Muammar Khadafi escapar com vida. A
Itália, tal como a França, não tinha autorizado o uso do seu espaço aéreo nessa
operação militar. O bombardeamento ordenado pelo Presidente dos EUA, Ronald
Reagan, foi uma retaliação directa ao atentado de 5/4/1986, perpetrado numa
discoteca em Berlim, no qual foram mortos dois militares norte-americanos e
várias dezenas ficaram feridos.
2. Face aos
bombardeamentos de Trípoli em 1986, a principal resposta da Líbia ocorreu dois
anos mais tarde, num atentado terrorista que provocou a explosão do voo 103 da
Pan Am, a 21/12/1988, quando sobrevoava Lockerbie, na Escócia. Morreram as 259
pessoas a bordo. Na época, Muammar Kadhafi estava envolvido no que usualmente
se chama uma ‘guerra nas sombras’ contra os EUA, os seus aliados ocidentais e
Israel, com várias frentes. Recorria a actores interpostos do mundo árabe
sunita, nomeadamente a elementos dos grupos palestinianos mais violentos.
Anteriormente, em finais de 1985 os aeroportos de Roma e de Viena foram alvo de
ataques terroristas contra a companhia aérea israelita El Hal, provocando
dezenas de mortos, entre quais se encontravam quatro norte-americanos. Para
além disso, a Líbia apoiava também grupos que actuavam no Ocidente europeu com
recurso à violência e ao terror, por extremismo ideológico ou reivindicação
nacionalista, em particular as facções mais radicais do Exército Republicano Irlandês
(IRA) e a Facção do Exército Vermelho/Grupo Baader-Meinhof, na Alemanha.
Aspecto importante: Muammar Khadafi ambicionava transformar a Líbia numa
potência militar-nuclear, estando a empreender múltiplas actividades nesse
sentido. O caso lembra o do Irão.
3. Madrugada de 3
de Janeiro de 2020. Numa operação militar no Iraque, no aeroporto internacional
de Bagdad, sem autorização do governo iraquiano, os norte-americanos usando
drones e helicópteros atacaram os veículos onde se deslocava o general Qassem
Soleimani, da Guarda Revolucionária Islâmica do Irão, comandante da divisão
especial, a Força Quds. Qassem Soleiman foi abatido pelo disparo de um míssil
AGM-114 Hellfire, feito por um drone MQ-9 Reaper. Embora por razões que não são
as mesmas, tal como a Líbia no passado, o Irão está envolvido numa guerra nas
sombras contra os EUA — e, claro, também contra Israel e a Arábia Saudita —, em
várias frentes e com actores interpostos. Para o Irão, o ponto crítico foi o
abandono, pelos EUA, do acordo nuclear de 2015 e a reimposição de sanções
económicas com o intuito de estrangular a sua economia.
No ataque no
aeroporto de Bagdad um dos principais actores interpostos foi também abatido. A
força paramilitar iraquiana xiita, Hashed Al Shaabi/Forças de Mobilização
popular, perdeu aí um dos seus principais chefes, Abu Mahdi Al Muhandis. Nesta
já longa guerra por procuração e/ou feita nas sombras, o único incidente ‘às
claras’ — ou seja, onde o Irão assumiu
autoria — foi o abate, a 20 de Junho de 2019, de um drone da marinha
norte-americana, modelo RQ-4 Global Hawk, não tripulado, Golfo Pérsico. Em Maio
e Junho de 2019, diversos navios petroleiros foram atacados no Golfo Pérsico,
sem que a autoria fosse reivindicada. Mas a acção mais espectacular foi o
ataque em Abqaiq–Khurais, na Arábia Saudita, às instalações da petrolífera
Saudi Aramco, a 14 de Setembro de 2019, mostrando a vulnerabilidade saudita.
Também aí ninguém reivindicou o atentado que terá sido efectuado com drones e
mísseis, a partir do Iémen.
4. As comparações
históricas são quase sempre discutíveis e de uso limitado para a compreensão do
mundo presente. O Irão certamente não é a Líbia. O mundo político de hoje
também não é o dos anos 1980, marcado pela Guerra-Fria e por um condomínio
hegemónico dos EUA e da União Soviética. Na lógica de alianças da época, a
Líbia era um Estado próximo dos soviéticos. Quanto ao Irão do Xá Reza Pahlavi —
que foi um aliado norte-americano até à revolução islâmica de 1979 —, com o
Ayatollah Ruhollah Khomeini no poder passou a ser um inimigo acérrimo. Mas há
paralelismos interessantes com esse passado. Tal como ocorreu com a Líbia, o
Irão pretende ser uma potência nuclear. As suas acções de guerra nas sombras e
de guerra por procuração fazem lembrar, até certo ponto, as prosseguidas por
Muammar Khadafi nos anos 1980.
Mas a Líbia é um
Estado árabe sunita, não xiita, e nunca teve tão ampla rede de influências. O
Irão tem outra envergadura geopolítica. É um Estado maior, mais populoso, mais
rico em recursos naturais — desde logo em petróleo e gás natural —, e com outra
dimensão da economia e grau de desenvolvimento tecnológico. Tem uma rede de
influência por quase todo o Médio Oriente, especialmente onde há populações
xiitas ou próximas. Os xiitas do Hezbollah no Líbano, Basahr al-Assad e os
alauítas na Síria, os múltiplos grupos e milícias xiitas no Iraque e os houthis
no Iémen são canais de projecção da influência externa iraniana. Foi na
construção dessa teia clientelar — e em múltiplas operações feitas na sombra,
atacando e eliminando inimigos — que Qasem Soleimani teve um papel decisivo na
projecção externa do Irão.
5. As máscaras
caíram. Nem o governo de Donald Trump nos EUA pode negar uma atitude agressiva
face ao Irão — e falta de genuína vontade em negociar —, nem o Irão se pode
continuar a apresentar como uma vítima inocente do ‘imperialismo americano’,
que nunca fez nada de mal. O general iraniano Qassem Soleimani não estava de
férias de final de ano em Bagdad. Nem se encontrou no aeroporto com Abu Mahdi
Al Muhandis para discutir teologia xiita. Se Qassem Soleimani era objecto de
enorme admiração e reverenciado no Irão, bem como entre os xiitas do Médio
Oriente, era igualmente alvo de um ódio profundo por muitos árabes sunitas, em
particular no Iraque e na Síria.
Mas o ser humano
está sujeito a excessos de confiança, sobretudo quando é muito bem-sucedido. E
a fazer más interpretações do comportamento de outros seres humanos — esse terá
sido o maior erro de Qassem Soleimani. Em crises internacionais agudas e na
guerra as consequências podem ser enormes e trágicas. O Irão interpretou mal a
inacção militar anterior dos EUA. No caso dos petroleiros, no caso do abate do
drone e no caso do ataque às instalações da Saudi Aramco, leu a inacção militar
como fazendo parte de um padrão expectável de Donald Trump até às eleições
presidenciais de 2020. Quando, nos dias finais de 2019, se deu o sequestro da
embaixada dos EUA em Bagdad, feito por xiitas iraquianos, o Irão estaria à
espera que Donald Trump disparasse mais tweets raivosos e inconsequentes, não
que ordenasse como retaliação um ataque mortífero com drones e mísseis AGM-114
Hellfire contra o seu mais importante general em missão no Iraque. Mas o
sequestro da embaixada reavivou a memória da crise dos reféns da embaixada dos
EUA no Irão, tomada de assalto a 4/11/1979 e cujo impasse durou até 20/01/1981.
Ao mesmo tempo, o Irão subestimou que, no cálculo político de Trump, uma
retaliação militar nesta altura até lhe poderá ser favorável na política
interna face ao processo de impeachment.
6. Há agora uma
grande incógnita em tudo isto: como vai ser a resposta do Irão e que
consequências irá desencadear. Nesta altura, apenas podemos conjecturar. A
resposta pode ir desde ataques a bases militares dos EUA no Iraque ou noutros
Estados do Médio Oriente, a acções contra navios petroleiros do golfo pérsico,
ao sequestro ou assassínio de pessoal diplomático e outros civis, a ataques
contra alvos norte-americanos no território dos EUA ou fora dele, ou outras
acções, perpetradas directamente ou executadas por procuração. Previsíveis são
as perdas materiais e de vidas humanas, militares e/ou civis, de maior ou menor
dimensão, tal como um aumento do preço do petróleo. A situação é, sem qualquer
dúvida, perigosa para os interesses dos EUA e para os seus nacionais em todo o
Médio Oriente.
Mas o Irão tem
também um problema delicadíssimo nas mãos, tal como Muammar Khadafi teve quando
foi bombardeado em 1986. Como reagir sem se mostrar fraco, mas também sem dar
azo uma resposta militar demolidora dos EUA? Com esta escalada do conflito,
poderá não adiantar muito refugiar-se numa negação, ainda que plausível, da
autoria. Se aquilo que o general David Patreus sugeriu como uma possível
mensagem diplomática dissuasora — informar o Irão que qualquer retaliação da
sua parte levará a um ataque dos EUA às suas infra-estruturas petrolíferas e às
forças militares em território iraniano —, o dilema do Irão será mesmo
extraordinário. Os próximos tempos mostrarão o rumo dos acontecimentos.
Sem comentários:
Enviar um comentário