OPINIÃO
O ano começa mal
Ao contrário dos
neoconservadores que inspiraram Bush, a democracia é a última das preocupações
de Trump. O grau de imprevisibilidade que introduziu ao comportamento dos EUA
no mundo é assustador.
TERESA DE SOUSA
5 de Janeiro de
2020, 6:32
1. Não se pode
dizer que 2020 tenha começado da melhor maneira. Ao segundo dia, um ataque
cirúrgico ordenado por Donald Trump eliminou uma das principais figuras do
regime teocrático de Teerão, correndo o risco de desencadear uma escalada cujos
contornos e cujo desfecho ainda desconhecemos. A eliminação de Qassem
Soleimani, descrito como “o homem mais poderoso do Médio Oriente” e o segundo
mais poderoso do Irão, acontece um dia após o Parlamento turco ter autorizado o
Presidente Erdogan a enviar tropas para a Líbia, depois de ter enviado tropas
para a Síria há pouco mais de um mês, sem que a pressão dos EUA ou da Europa o
tenha dissuadido da escalada bélica que leva a cabo na sua vizinhança próxima.
O Presidente turco vai ocupando o vazio deixado pelos EUA e a eterna ausência
da União Europeia, seguindo as pegadas da Rússia e do próprio Irão. Em
Pyongyang, o “grande líder” anunciou o fim da moratória nuclear que negociou
com o seu homólogo americano (os seus termos nunca foram muito claros) na
primeira cimeira entre ambos, a 12 de Junho de 2018 em Singapura. A segunda, de
Hanói, em Fevereiro de 2019, foi um fracasso e ainda se aguarda pela data da já
prometida terceira. Para fazer o quê? Não se sabe, o que quer dizer que uma das
“geniais” iniciativas de Trump no domínio da política externa corre o risco de
se transformar num absoluto fracasso. Do outro lado do mundo, a dimensão
catastrófica e incontrolável de uma vaga de incêndios que afecta um país rico e
desenvolvido como a Austrália vem alertar-nos, de novo, para as possíveis
consequências das alterações climáticas e a dificuldade extrema de
enfrentá-las. Mas vamos ao acontecimento que domina a actualidade, provavelmente
o mais pesado de consequências para o mundo.
2. “Na sua longa
carreira militar, Qassem Soleimani deixou o Médio Oriente pejado de cadáveres.
Finalmente, tornou-se mais um”. A frase de Julian Borger, correspondente do The
Guardian em Washington, resume a história deste general iraniano que era visto
como a figura mais poderosa do regime de Teerão depois do próprio ayatollah Ali
Khamenei. É da sua directa responsabilidade a poderosa e mortífera rede de
milícias armadas que actuam ao serviço do Irão em diversos países do Médio
Oriente, do Líbano ao Iraque, passando pela Síria ou pelo Iémen. Foi ele que,
em 2013, salvou in extremis o regime de Bashir al-Assad das mãos do Daesh
(sunita), criando mais um dos seus muitos exércitos secretos e convencendo a
Rússia a intervir. Como lembraram a Casa Branca e o Departamento de Estado, foi
o responsável directo por centenas ou milhares de mortes de soldados americanos
na região, durante as duas décadas em que liderou a Al-Quds, uma mistura letal
de CIA e Forças Especiais, só que ao serviço de uma ditadura de fanáticos
religiosos. Trump atribui-lhe – e é verdade – a última provocação aos EUA,
quando milícias xiitas pró-iranianas atacaram a embaixada americana em Bagdad
no dia 27 de Dezembro. Mike Pompeo atribui-lhe a intenção de desencadear novos
ataques contra alvos americanos. “Estava a planear ataques que poderiam matar
centenas de americanos no Iraque, no Afeganistão ou no Líbano”, disse ao
Financial Times uma fonte americana com acesso directo aos serviços secretos. A
operação cirúrgica que o eliminou quando saía tranquilamente do aeroporto de
Bagdad foi apresentada como “preventiva”.
3. Aos olhos da
opinião pública americana, é fácil elogiar a extrema precisão do ataque e
justificá-lo com o facto de Teerão ter transformado o Iraque no terreno
privilegiado da sua guerra contra Washington por entrepostos actores. O ataque
à embaixada foi um acto provocatório que o regime de Teerão sabia de antemão
ter consequências. O mesmo aconteceu quando abateu um drone americano em Agosto
do ano passado ou quando atacou petroleiros americanos no estreito de Ormuz ou,
ainda, quando disparou uma salva de mísseis contra campos petrolíferos na
Arábia Saudita, atingindo duramente a sua produção. A ala radical do regime
teocrático da qual Soleimani fazia parte não teria ilusões sobre uma resposta
americana. Foi escalando o nível das provocações. Avaliou mal as primeiras
reacções “contidas” de Washington, interpretando-as como sinal de fraqueza.
Nunca esperou um ataque mortal ao “número dois” do regime. Há uma mudança de
escala no ataque americano. No curto prazo, Teerão pode tirar partido da
situação para contrariar o crescendo de contestação interna ao regime, que se
verificou nos últimos meses e que foi brutalmente esmagado com um saldo de
largas centenas de mortos e desaparecidos. No Iraque, talvez possa silenciar a
vaga de protestos contra a ingerência descarada do Irão. No médio prazo, não se
pode dar ao luxo de um confronto aberto com os EUA ou mesmo com Israel ou a
Arábia Saudita, mas pode continuar a executar a sua “guerra assimétrica”, a
especialidade de Soleimani, atingindo os interesses americanos ou dos seus
aliados muito para além das suas fronteiras. Os analistas americanos, que se
dividem na avaliação da decisão do Presidente, apenas se encontram num ponto:
haverá retaliação. Possivelmente sob múltiplas formas. Como, onde e quando? Na
Europa? Em Israel? Ninguém tem a certeza do que virá seguir.
4. Já nos habituámos aos “caprichos” do
Presidente americano, mesmo quando se trata de decisões tão pesadas de
consequências como esta, e já sabemos que rareiam cada vez mais à sua volta
conselheiros que possam contrariá-los. A decisão de eliminar Soleimani foi
tomada em poucas horas, à margem de uma reunião de preparação da campanha para
a reeleição, durante as suas férias na Florida. Havia a oportunidade. Agarrou-a
com ambas as mãos. Percebem-se as razões, por mais contraditórias que possam
parecer. A sombra de Obama e a obsessão de destruir metodicamente o seu legado
justificam muito daquilo que faz. Soleimani era um alvo tão ou mais apetecível
que Bin Laden, capturado e eliminado pelo anterior Presidente em 2011. Trump
fez questão de lembrar que o general iraniano já devia ter sido eliminado há
muito. Bush e Obama tiveram essa oportunidade e ambos a recusaram, considerando
que as consequências corriam o risco de anular as vantagens. As eleições
aproximam-se. O impeachment recomenda algumas distracções e talvez nenhuma seja
melhor do que esta, que deixa os candidatos democratas numa posição difícil:
não hostilizar abertamente a decisão de Trump, sem deixar de o criticar por não
ter uma estratégia consequente. A mensagem do actual Presidente é bem mais
simples. Desde que, nos meses que faltam para as eleições de Novembro, não haja
um grande atentado contra vidas americanas algures no mundo ou que a escalada
não conduza a mais uma guerra sem fim no Médio Oriente. Trump prometeu aos eleitores
acabar com as guerras sem fim da América, que diz servirem apenas os interesses
dos outros.
5. Trump elegeu o
Irão como o seu “inimigo principal” no Médio Oriente, no momento em que chegou
à Casa Branca. Em Maio de 2018, anunciou o abandono do acordo nuclear de 2015,
negociado por Barack Obama com Teerão para pôr fim ao programa nuclear iraniano
com fins militares a troco do levantamento gradual das sanções. Foi um notável
êxito diplomático, que contou com a assinatura da França, Reino Unido, Alemanha,
Rússia e China. Os restantes subscritores mantiveram-se fiéis ao acordo, mas,
aos olhos do regime de Teerão, eram os EUA o seu verdadeiro garante. A partir
daí, Washington adoptou a chamada estratégia de “pressão máxima”, sobretudo
através de sanções cada vez mais duras com efeitos mais do que visíveis na
economia do Irão, seguindo as pisadas da Administração Bush e da sua teoria do
“quanto pior melhor”. A diferença essencial é que Bush apostava na mudança de
regime, enquanto Trump não se sabe exactamente em que acredita, a não ser,
eventualmente, levar o Irão a renegociar o acordo nuclear em termos que os EUA
achem aceitáveis. Ao contrário dos neoconservadores que inspiraram Bush, a
democracia é a última das suas preocupações. O grau de imprevisibilidade que
introduziu no comportamento dos EUA no mundo é assustador. A eliminação de
Soleimani é apenas mais uma prova irrefutável. Nas múltiplas análises dos think
tanks e da imprensa ocidental, tentando antever os grandes acontecimentos de
2020 a que devíamos prestar atenção, não constava uma súbita mudança de escala
no confronto entre os EUA e o Irão.
Dizer que o mundo
avança intrepidamente em direcção ao progresso é manifestamente exagerado,
mesmo que corresponda ao legítimo direito de desejar o melhor dos mundos
enquanto soam as 12 badaladas da meia-noite.
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