OPINIÃO
Este homem não
vai sair de lá sem duas guerras: uma civil e outra (espera-se) regional
Deviam olhar para
Churchill na Segunda Guerra e não para Chamberlain, porque é a falta de uma
reacção forte e decidida das democracias que permite a Trump fazer o que quer.
JOSÉ PACHECO
PEREIRA
4 de Janeiro de
2020, 6:43
Enquanto a gente
por cá se entretém a fazer interpretações mais ou menos escolásticas de frases
simplistas, dúplices, sibilinas, em dupla língua orwelliana, sem sentido ou com
sentido, cínicas, lugares-comuns, disparatadas, ambíguas, explícitas, mas de um
modo geral muito pouco importantes, proferidas pelo Presidente da República e
pelo primeiro-ministro, o mundo está perigoso como nunca esteve desde a crise
dos mísseis. Esta nossa capacidade para a irrelevância é ela própria
assustadora e, embora isso pouco sirva de justificação, é também do conjunto da
Europa “civilizada” da Europa do “meio” até ao Atlântico, passando ao lado do
“Brexit”.
Este é um dos
casos em que os actuais riscos mundiais têm uma interpretação pouco marxista,
porque se devem à acção de um indivíduo: Donald Trump e a sua trupe e ao
partido de serviçais em que se tornou o Partido Republicano. Claro que tudo em
que ele mexe tem razões, racionalidades, explicações estruturais e conjunturais
e pode ser interpretado, ou seja, tem um sentido implícito. Mas ele mesmo é
irracional, criativo e carismático, no sentido genuíno da palavra cujo uso está
muito abastardado, e, por isso, não explicável na sua irredutível
singularidade.
Claro que homens
racionais, frios, cerebrais, determinados podem ser também muito perigosos,
como também o são homens de fé cega, que não conhecem limitações à sua crença,
e às suas epifanias, e quase sempre à relação privilegiada que acham que têm
com o Divino ou o Destino. Mas podem ser percebidos, interpretados e limitados
pelo mundo exterior que os compreende. Trump não; é um caso em que um conjunto
de idiossincrasias pessoais, a começar pelo seu narcisismo patológico e pela
crença em virtudes próprias quase mágicas, assim como uma ignorância abissal,
um simplismo grosseiro e uma agressividade sem limites, todos os defeitos de
carácter, um comportamento errático e caótico, se associam a esta pequena coisa
— ele é o homem mais poderoso do mundo.
A resposta a
Trump é débil para o grau da sua perigosidade. É débil nos democratas nos EUA,
é débil nos fracos que o compreendem, mas são cobardes para o defrontar, e é
débil nos que o acham que o podem conter mantendo-o à distância. Mas, acima de
tudo, é débil em todos os que ainda não perceberam duas coisas básicas: Trump
não sai de lá com eleições e, numa esquina qualquer dos dias, na sua política
errática, deita mais gasolina para a fogueira para se vingar, ou mostrar poder,
ou gabar-se, e a fogueira pode não ser contida a tempo. Na verdade, Trump nem
sequer esconde a sua vontade de ser Presidente vitalício, com uma série de
tweets em que os anos passam e ele permanece vestido de Capitão América. E
também já disse mais do que uma vez que os seus apoiantes não permitiriam o seu
afastamento, mesmo em eleições, que teriam de ser necessariamente fraudulentas,
e isso provocaria uma guerra civil. E já disse mais: que com ele estão a
polícia, as forças armadas e os cidadãos com armas. O que é que é preciso dizer
mais?
Mas antes da
“guerra civil”, Trump — que não tem uma política externa coerente, com excepção
de ser um fantoche de Netanyahu e da extrema-direita israelita, e de M.B.S., o
príncipe herdeiro saudita, e, num plano mais global, de Putin — envolve os EUA
numa série de actos arriscados que servem os seus sinistros aliados, sem a prudência
que eles, apesar de tudo, revelam. O assassinato de importantes generais
iranianos, no solo de um país estrangeiro que é seu aliado, e com a violação de
todas as regras internacionais, não vem na sequência do assalto à embaixada em
Bagdad — vem na sequência da morte de um “contratado” americano, esta figura
eufemística do mercenário, seguida de ataques da aviação às milícias
pró-iranianas no Iraque e, por fim, à invasão da embaixada, que foi devolvida
pelos ocupantes sem vítimas.
Vejamos as
verdades, o mundo não-Trump. Que o Irão é um país que patrocina milícias em
todo o Médio Oriente desde o Líbano ao Iémen é verdade. Que a sua capacidade de
construir armas nucleares existe e é inaceitável por Israel também é verdade.
Mas que o conflito com a Arábia Saudita, um dos países patrocinadores do
terrorismo mundial, põe frente a frente dois adversários parecidos um com o
outro, e com um fundamento religioso muito antigo pela hegemonia no islão, é
verdade. Que os sauditas fazem o mesmo que o Irão, patrocinando milícias e
combatentes clandestinos em todo Médio Oriente, mais uma vez é verdade. Que o
Irão é uma teocracia, sem liberdades e democracia, é verdade. Mas na comparação
consegue, imaginem, ganhar à Arábia Saudita, onde ainda há menos liberdades e
muito menos diversidade do que no Irão. Por fim, quanto à questão nuclear, o
acordo com o Irão obtido pela comunidade internacional com enormes dificuldades
estava a ser cumprido, e os EUA acabaram com ele, numa das suas reviravoltas
políticas que só tem uma explicação: dar cabo de tudo o que Obama tinha
conseguido.
Face a este homem
perigoso, deviam olhar para Churchill na Segunda Guerra e não para Chamberlain,
porque é a falta de uma reacção forte e decidida das democracias que permite a
Trump fazer o que quer. Um dia acordam com o fogo à porta e vão ler sobre o
“estado do mundo” num tweet matinal com erros de ortografia.
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