Pastel de bacalhau
com queijo da serra a património da humanidade, já!!!
Por Grande Turismo ·
Publicado a 29/01/2016
Bruno Ramos provou o
pastel de bacalhau com queijo da serra e não gostou. Também não
gosta da parolice que faz do empreendedorismo turístico uma voraz
térmita que está a devorar os lugares e espaços que constroem a
memória e a identidade da cidade de Lisboa.
Lembram-se dos
kalkitos? Serviam para povoarmos de personagens um cenário desenhado
em papel, fosse um ambiente de western, um campo de batalha da II
Guerra Mundial ou uma floresta de guerreiros medievais, criando assim
histórias imaginárias a nosso bel prazer. Mas o que eu gostava
verdadeiramente de fazer era decalcar os personagens em cenários
diferentes, divertindo-me com a estranheza e incongruência do
resultado final. Ora, desde que, há mais ou menos seis anos, comecei
a caminhar regularmente pela cidade de Lisboa, que me sinto um desses
figurantes desajustados num cenário de kalkito em constante e
desenfreada mutação, onde nada faz sentido.
É impressionante
como a proliferação das companhias aéreas low cost e o alargamento
dos terminais de cruzeiros, adubados por um simples programa
internacional de culinária e um artigo laudatório no NY Times,
acicatando o provincianismo que se deslumbra com qualquer pechisbeque
reluzente e a ganância do investidor estrangeiro, indiscriminado e
invisível, têm transformado a capital do reino “numa artificial
plataforma onde a banalidade, o pastiche e o híbrido triunfam”,
como tão bem escreve o historiador de arquitetura, António Sérgio
Rosa de Carvalho, no seu acutilante artigo de opinião, no jornal
Público de 9 de Janeiro https://www.publico.pt/local/noticia/a-nau-de-bacalhau-com-velas-de-queijo-e-corvos-de-massapao-1719617
O autor arranca a
crosta a todas as feridas com a precisão de um bisturi, denunciando
a dicotomia voraz que tem resultado deste processo de
“internacionalização” da cidade: por um lado, a cilindragem da
identidade e memória lisboetas e, por outro, a sua veloz
substituição por artifícios vácuos. Pelo meio, os habitantes vão
sendo varridos para debaixo do tapete suburbano e substituídos por
etnias exploradas. Como exemplo do primeiro sobrevém o
desaparecimento de tantos locais cujo valor e antiguidade são
cruciais para fazer da cidade aquilo que ela é. O café Palmeira e a
Associação Amigos do Minho, são só dois exemplos recentes, entre
tantos outros, todos eles apagados para dar lugar à construção de
hostels e outros empreendimentos turísticos – o turismo é hoje o
maior orgulho do pacóvio citadino. E, como exemplo do segundo, a
proliferação de tascas, restaurantes e outras manjedouras pseudo
gourmet que têm o desplante de se auto-nomearem típicas e de
servirem acepipes franchisados como se de gastronomia tradicional se
tratasse. Neste aspeto, o pastel de bacalhau com queijo da serra que
nos esfregam na cara a meio da Rua Augusta em pop-ups gigantescos, é
o expoente máximo da azia que provoca o atual estado das coisas.
Aliás, caminhar pela Rua Augusta, hoje transformada no ponto
convergente de toda esta mixórdia, faz vir à memória a inquietação
de Jack Lang, antigo ministro da cultura e da educação francês, no
seu livro “Ouvrons les yeux! La nouvelle bataille du patrimoine”.
Uma tradução livre de um excerto coloca a seguinte questão:
“Teremos ficado esquizofrénicos? Nós, que tanto esforço fizemos
para a preservação dos mais belos monumentos das nossas cidades,
como podemos ser tão pouco exigentes com os nossos espaços
públicos, com os nossos transportes, com as nossas casas, com todos
os lugares que fazem o nosso quotidiano?”
Essa esquizofrenia
de que fala Jack Lang, fica, aliás, patente na publicação de uma
notícia, exatamente na mesma edição do jornal Público referida
acima, anunciando que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) vai
candidatar, até ao final de 2017, os bairros e miradouros de Lisboa
a Património Mundial da UNESCO
(http://www.publico.pt/…/os-bairros-miradouros-e-imoveis-que…).
No texto de intenção da candidatura, citado na referida notícia,
os responsáveis da CML referem que “nenhuma outra cidade reúne um
conjunto patrimonial e uma paisagem urbana histórica com o
significado cultural equivalente a Lisboa”. É talvez verdade. Mas
também é descaradamente verdade que os mesmíssimos edis estão-se
completamente cagando para o património que estão agora a
candidatar, que se estão nas tintas para o espaço público e a
consequente dinâmica social que estimulam (ou não) na cidade, que
não fazem puto de ideia sobre como transformar a memória e a
identidade em recursos ativos, que têm um profundo desprezo (nem que
seja por omissão) pelos habitantes e pelos lugares e instituições
que fizeram, e fazem, da cidade o que ela é hoje, que se curvam até
mostrarem o fundo do rego aos interesses económicos e que, afinal,
são outros parolos babados com a moda das candidaturas a património
da humanidade, como também tem sido a dos inenarráveis recordes do
Guiness.
Bruno Ramos
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