segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Pastel de bacalhau com queijo da serra a património da humanidade, já!!! / Bruno Ramos


Pastel de bacalhau com queijo da serra a património da humanidade, já!!!
Por Grande Turismo · Publicado a 29/01/2016

Bruno Ramos provou o pastel de bacalhau com queijo da serra e não gostou. Também não gosta da parolice que faz do empreendedorismo turístico uma voraz térmita que está a devorar os lugares e espaços que constroem a memória e a identidade da cidade de Lisboa.

Lembram-se dos kalkitos? Serviam para povoarmos de personagens um cenário desenhado em papel, fosse um ambiente de western, um campo de batalha da II Guerra Mundial ou uma floresta de guerreiros medievais, criando assim histórias imaginárias a nosso bel prazer. Mas o que eu gostava verdadeiramente de fazer era decalcar os personagens em cenários diferentes, divertindo-me com a estranheza e incongruência do resultado final. Ora, desde que, há mais ou menos seis anos, comecei a caminhar regularmente pela cidade de Lisboa, que me sinto um desses figurantes desajustados num cenário de kalkito em constante e desenfreada mutação, onde nada faz sentido.
É impressionante como a proliferação das companhias aéreas low cost e o alargamento dos terminais de cruzeiros, adubados por um simples programa internacional de culinária e um artigo laudatório no NY Times, acicatando o provincianismo que se deslumbra com qualquer pechisbeque reluzente e a ganância do investidor estrangeiro, indiscriminado e invisível, têm transformado a capital do reino “numa artificial plataforma onde a banalidade, o pastiche e o híbrido triunfam”, como tão bem escreve o historiador de arquitetura, António Sérgio Rosa de Carvalho, no seu acutilante artigo de opinião, no jornal Público de 9 de Janeiro https://www.publico.pt/local/noticia/a-nau-de-bacalhau-com-velas-de-queijo-e-corvos-de-massapao-1719617
O autor arranca a crosta a todas as feridas com a precisão de um bisturi, denunciando a dicotomia voraz que tem resultado deste processo de “internacionalização” da cidade: por um lado, a cilindragem da identidade e memória lisboetas e, por outro, a sua veloz substituição por artifícios vácuos. Pelo meio, os habitantes vão sendo varridos para debaixo do tapete suburbano e substituídos por etnias exploradas. Como exemplo do primeiro sobrevém o desaparecimento de tantos locais cujo valor e antiguidade são cruciais para fazer da cidade aquilo que ela é. O café Palmeira e a Associação Amigos do Minho, são só dois exemplos recentes, entre tantos outros, todos eles apagados para dar lugar à construção de hostels e outros empreendimentos turísticos – o turismo é hoje o maior orgulho do pacóvio citadino. E, como exemplo do segundo, a proliferação de tascas, restaurantes e outras manjedouras pseudo gourmet que têm o desplante de se auto-nomearem típicas e de servirem acepipes franchisados como se de gastronomia tradicional se tratasse. Neste aspeto, o pastel de bacalhau com queijo da serra que nos esfregam na cara a meio da Rua Augusta em pop-ups gigantescos, é o expoente máximo da azia que provoca o atual estado das coisas. Aliás, caminhar pela Rua Augusta, hoje transformada no ponto convergente de toda esta mixórdia, faz vir à memória a inquietação de Jack Lang, antigo ministro da cultura e da educação francês, no seu livro “Ouvrons les yeux! La nouvelle bataille du patrimoine”. Uma tradução livre de um excerto coloca a seguinte questão: “Teremos ficado esquizofrénicos? Nós, que tanto esforço fizemos para a preservação dos mais belos monumentos das nossas cidades, como podemos ser tão pouco exigentes com os nossos espaços públicos, com os nossos transportes, com as nossas casas, com todos os lugares que fazem o nosso quotidiano?”
Essa esquizofrenia de que fala Jack Lang, fica, aliás, patente na publicação de uma notícia, exatamente na mesma edição do jornal Público referida acima, anunciando que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) vai candidatar, até ao final de 2017, os bairros e miradouros de Lisboa a Património Mundial da UNESCO (http://www.publico.pt/…/os-bairros-miradouros-e-imoveis-que…). No texto de intenção da candidatura, citado na referida notícia, os responsáveis da CML referem que “nenhuma outra cidade reúne um conjunto patrimonial e uma paisagem urbana histórica com o significado cultural equivalente a Lisboa”. É talvez verdade. Mas também é descaradamente verdade que os mesmíssimos edis estão-se completamente cagando para o património que estão agora a candidatar, que se estão nas tintas para o espaço público e a consequente dinâmica social que estimulam (ou não) na cidade, que não fazem puto de ideia sobre como transformar a memória e a identidade em recursos ativos, que têm um profundo desprezo (nem que seja por omissão) pelos habitantes e pelos lugares e instituições que fizeram, e fazem, da cidade o que ela é hoje, que se curvam até mostrarem o fundo do rego aos interesses económicos e que, afinal, são outros parolos babados com a moda das candidaturas a património da humanidade, como também tem sido a dos inenarráveis recordes do Guiness.
Bruno Ramos

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