segunda-feira, 7 de setembro de 2015

O escândalo anual / Lucy Pepper


O escândalo anual
Lucy Pepper 
6/9/2015, 21:30 / OBSERVADOR

Considerando o rendimento médio em Portugal, a despesa anual nos manuais de uma criança pode chegar ao equivalente do rendimento mensal de um pai ou de uma mãe. Como pode ser isto justo?

Foi há dez anos que me apresentaram a primeira lista de manuais e materiais escolares para o primeiro ano da minha filha mais velha. Fiquei espantada. Não esperava ter de os comprar, simplesmente porque em Inglaterra, a própria escola me forneceu tudo na primária, e quase tudo no equivalente aos 2º e 3º ciclos.

Na escola primária, só precisávamos de aparecer na escola de manhã, sem trazer nada. Qualquer inglês da minha idade deve lembrar-se da caixa dos lápis de cera, todos castanhos (dentro da casca castanha eram de outras cores), o papel bruto horrível em que desenhávamos, e os cadernos beges em que aprendemos escrever. Depois da primária, só tínhamos de trazer as canetas e os lápis, umas pastas de arquivo para metermos trabalhos, por vezes papel para desenhar e, naturalmente, o mau feitio que é obrigatório nas escolas “comprehensive” da Inglaterra.

No início da cada ano lectivo, emprestavam-nos um manual escolar para cada disciplina e, se não estivessem já encadernados, era nosso dever cobri-los com papel de parede ou de embrulho, e, mais tarde, plástico, para os proteger. Também escrevíamos os nossos nomes dentro da capa, acrescentando-os a uma lista onde havia às vezes nomes de alunos dos anos 60. Falo dos anos 80.

A literatura, as línguas e até as ciências não mudam assim tão rapidamente para que os manuais antigos fiquem desactualizados todos os anos. Aprendemos francês por meio de livros que contavam a história de uma família Bertillon, que vivia num apartamento parisiense suburbano, muito dos anos 60. Estudámos os escritores dos séculos 19 e 20, e claro, Shakespeare, utilizando livros já bem manuseados ao longo dos anos.

Foi só ao entrar na universidade que precisámos de comprar tudo.

Dez anos passaram  e ainda estou surpreendida, mais: estou chocada pela grande vigarice dos manuais escolares em Portugal.

Porque é que ninguém acaba com isto? Todos os anos, em Setembro, ficamos reféns não só das exigências dos nossos filhos, ansiosos pelos materiais mais bonitos, mas das exigências das escolas em termos dos manuais novos que temos de comprar, e que quase nunca são os que o nosso filho mais velho utilizou dois anos antes. É quase impossível passar um manual de um filho para outro. Em dez anos, nunca consegui fazer isso.

E depois, há os “cadernos práticos”, que passam o ano praticamente limpos, mas que adicionam mais €50-€100 à conta de cada criança. Nunca vi um único desses cadernos totalmente usado.

É bom que existam bancos de livros e que cresçam de ano para ano, mas imagino que deva ser difícil para os pais que trabalham e que ganham pouco, especialmente os que vivem fora das grandes cidades. Como encontram tempo e recursos para se dedicarem à procura dos manuais certos? Muitos dos manuais ficarão obsoletos de qualquer maneira. Não é porque as leis da física (nem das outras ciências e humanidades) tenham mudado nos últimos 12 meses, mas porque o livro foi repaginado e reeditado (ligeiramente) e é (aparentemente) impensável que os alunos utilizem manuais ligeiramente diferentes uns dos outros.

Considerando o rendimento médio em Portugal, a despesa anual nos manuais de uma criança (e não esqueçamos os custos dos materiais) pode facilmente chegar ao equivalente do rendimento mensal de um dos pais. Como pode ser isto justo? A maior parte dos pais estão indignados com este assunto. Quase ninguém acha que é razoável que quem ganha €500 por mês gaste uma quantia equivalente de uma só vez em livros, mas o escândalo mantém-se, anualmente.

Mas deus proteja quem fizer queixas (abertamente) de professores que mudam de ideias regularmente quanto à sua editora preferida. Ou das editoras que só sobrevivem por causa das suas vendas de centenas e centenas de milhares de manuais a cada ano.

Não seria assim tão complicado reparar a situação? Talvez bastasse que nós, os pais de hoje, estivéssemos dispostos a fazer um favor aos pais de amanhã. O plano poderia ser este: ao longo de dois ou três anos, obrigávamos os nossos filhos a cuidarem dos livros; no fim, doávamos os livros às escolas, em massa, para serem utilizados no ano lectivo seguinte; uma vez que houvesse “stocks” suficientes, incitávamos todos os pais a recusar comprar livros novos – e aposto que não levaria muito tempo para que o sistema mudasse. O ministério, os professores e as editoras talvez fossem tomados de um pânico suficiente grande para tentarem encontrar outra maneira de fornecer informação aos alunos.


Claro, parece injusto, nós termos de pagar livros para os outros. Mas não seria tão injusto como obrigar centenas de milhares de famílias com rendimentos baixos pagarem percentagens gigantescas dos seus salários para manuais, todos os anos.

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