O escândalo anual
Lucy Pepper
6/9/2015, 21:30 / OBSERVADOR
Considerando o rendimento médio
em Portugal, a despesa anual nos manuais de uma criança pode chegar ao
equivalente do rendimento mensal de um pai ou de uma mãe. Como pode ser isto
justo?
Foi há dez anos
que me apresentaram a primeira lista de manuais e materiais escolares para o
primeiro ano da minha filha mais velha. Fiquei espantada. Não esperava ter de
os comprar, simplesmente porque em Inglaterra, a própria escola me forneceu
tudo na primária, e quase tudo no equivalente aos 2º e 3º ciclos.
Na escola
primária, só precisávamos de aparecer na escola de manhã, sem trazer nada.
Qualquer inglês da minha idade deve lembrar-se da caixa dos lápis de cera,
todos castanhos (dentro da casca castanha eram de outras cores), o papel bruto
horrível em que desenhávamos, e os cadernos beges em que aprendemos escrever.
Depois da primária, só tínhamos de trazer as canetas e os lápis, umas pastas de
arquivo para metermos trabalhos, por vezes papel para desenhar e, naturalmente,
o mau feitio que é obrigatório nas escolas “comprehensive” da Inglaterra.
No início da cada
ano lectivo, emprestavam-nos um manual escolar para cada disciplina e, se não
estivessem já encadernados, era nosso dever cobri-los com papel de parede ou de
embrulho, e, mais tarde, plástico, para os proteger. Também escrevíamos os
nossos nomes dentro da capa, acrescentando-os a uma lista onde havia às vezes
nomes de alunos dos anos 60. Falo dos anos 80.
A literatura, as
línguas e até as ciências não mudam assim tão rapidamente para que os manuais
antigos fiquem desactualizados todos os anos. Aprendemos francês por meio de
livros que contavam a história de uma família Bertillon, que vivia num
apartamento parisiense suburbano, muito dos anos 60. Estudámos os escritores
dos séculos 19 e 20, e claro, Shakespeare, utilizando livros já bem manuseados
ao longo dos anos.
Foi só ao entrar
na universidade que precisámos de comprar tudo.
Dez anos
passaram e ainda estou surpreendida,
mais: estou chocada pela grande vigarice dos manuais escolares em Portugal.
Porque é que
ninguém acaba com isto? Todos os anos, em Setembro, ficamos reféns não só das
exigências dos nossos filhos, ansiosos pelos materiais mais bonitos, mas das
exigências das escolas em termos dos manuais novos que temos de comprar, e que
quase nunca são os que o nosso filho mais velho utilizou dois anos antes. É
quase impossível passar um manual de um filho para outro. Em dez anos, nunca
consegui fazer isso.
E depois, há os
“cadernos práticos”, que passam o ano praticamente limpos, mas que adicionam
mais €50-€100 à conta de cada criança. Nunca vi um único desses cadernos
totalmente usado.
É bom que existam
bancos de livros e que cresçam de ano para ano, mas imagino que deva ser
difícil para os pais que trabalham e que ganham pouco, especialmente os que
vivem fora das grandes cidades. Como encontram tempo e recursos para se
dedicarem à procura dos manuais certos? Muitos dos manuais ficarão obsoletos de
qualquer maneira. Não é porque as leis da física (nem das outras ciências e
humanidades) tenham mudado nos últimos 12 meses, mas porque o livro foi
repaginado e reeditado (ligeiramente) e é (aparentemente) impensável que os
alunos utilizem manuais ligeiramente diferentes uns dos outros.
Considerando o
rendimento médio em Portugal, a despesa anual nos manuais de uma criança (e não
esqueçamos os custos dos materiais) pode facilmente chegar ao equivalente do
rendimento mensal de um dos pais. Como pode ser isto justo? A maior parte dos
pais estão indignados com este assunto. Quase ninguém acha que é razoável que
quem ganha €500 por mês gaste uma quantia equivalente de uma só vez em livros,
mas o escândalo mantém-se, anualmente.
Mas deus proteja
quem fizer queixas (abertamente) de professores que mudam de ideias
regularmente quanto à sua editora preferida. Ou das editoras que só sobrevivem
por causa das suas vendas de centenas e centenas de milhares de manuais a cada
ano.
Não seria assim
tão complicado reparar a situação? Talvez bastasse que nós, os pais de hoje,
estivéssemos dispostos a fazer um favor aos pais de amanhã. O plano poderia ser
este: ao longo de dois ou três anos, obrigávamos os nossos filhos a cuidarem
dos livros; no fim, doávamos os livros às escolas, em massa, para serem utilizados
no ano lectivo seguinte; uma vez que houvesse “stocks” suficientes, incitávamos
todos os pais a recusar comprar livros novos – e aposto que não levaria muito
tempo para que o sistema mudasse. O ministério, os professores e as editoras
talvez fossem tomados de um pânico suficiente grande para tentarem encontrar
outra maneira de fornecer informação aos alunos.
Claro, parece
injusto, nós termos de pagar livros para os outros. Mas não seria tão injusto
como obrigar centenas de milhares de famílias com rendimentos baixos pagarem
percentagens gigantescas dos seus salários para manuais, todos os anos.
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