Depois do BPN, como foi possível
acontecer tudo outra vez?
Por Ana Suspiro
publicado em 2
Ago 2014 in
(jornal) i online
Banco de Portugal
aponta para falhas graves ao funcionamento do controlo interno do banco. Os
administradores são os responsáveis, mesmo se não sabiam
Depois da crise
financeira, de escândalos em vários bancos e da vigilância da troika, como
ainda é possível a crise do Banco Espírito Santo (BES)? "Não consigo
perceber", desabafa um dos especialistas em compliance e controlo interno
da banca ouvidos pelo i.
Desde 2008 que a
Europa e Portugal tem vindo a reforçar a fiscalização e vigilância sobre o
sector financeiro. O processo passou por mais leis e regulamentação, testes de
stress, mas também pela criação de novas entidades e por uma actuação mais
agressiva dos reguladores sobre os bancos. Estas acções focaram-se nas grandes
instituições, consideradas sistémicas por causa dos choques em cadeia que um
problema financeiro teria na economia. O sector bancário foi também forçado a
reforçar os mecanismos e recursos do controlo interno da sua actuação.
E um dos
primeiros diagnósticos feitos pelo Banco de Portugal revela falhas graves no
funcionamento dos mecanismos de controlo interno do banco. A situação conduziu
à acção inédita de afastar os três administradores do BES que ainda estavam em
funções e que eram os responsáveis máximos pelas função de gestão de risco,
compliance e auditoria interna. Também foram demitidos os três membros da
comissão de auditoria interna.
O supervisor
considerou que perante os números que revelam um aumento de 1500 milhões de
euros da exposição do BES a empresas em graves dificuldades financeiras do seu
maior accionista, há "indícios de práticas de actos prejudiciais
prejudiciais aos interesses" do banco e a "violação das determinações
emitidas - pelo Banco de Portugal - que não são compatíveis com a manutenção
dos titulares de cargos que têm deveres reforçados de vigilância".
O regulador
invoca o aviso 5/2008 que define as regras de controlo interno dos bancos e que
responsabiliza a administração pela criação de condições para o eficaz
funcionamento da gestão de risco, compliance e auditoria.
Perante este
artigo não basta a gestão dizer que não tinha informação. Se não sabia é porque
não promoveu as diligências necessárias para que os órgãos de controlo interno
fizessem o seu trabalho com resultados, refere um ex-responsável pela função
compliance.
Para além do
afastamento, estes quadros, bem como antigos administradores do banco, entre os
quais o presidente executivo, Ricardo Salgado e o administrador financeiro,
Amílcar Morais Pires, enfrentam processos de contra-ordenação. Os restantes
responsáveis pelos órgãos de controlo também podem vir a ser visados, na medida
em que ou foram coniventes ou não tinham acesso à informação sobre a actividade
para fazerem o seu trabalho. E neste cenário, deveriam ter exposto estas
limitações aos supervisores, ultrapassando a administração, se for caso disso,
embora não isso seja fácil.
As contas
semestrais e o supervisor revelam também operações feitas à revelia dos órgãos
competentes e das ordens do Banco de Portugal, cuja dimensão, em particular no
que toca à concessão de crédito, só poderia ter sido feita com o envolvimento
de altos quadros da instituição, designadamente ao nível de direcção.
CONFLITOS DE INTERESSES
Foram as transacções realizadas sobretudo nos
últimos três meses que fizerem disparar a exposição do banco ao Grupo,
apanhando de surpresa o regulador e atirando o BES para prejuízos históricos. A
história da crise também passa pelas relações perigosas entre os gestores,
muitas vezes comuns, e o maior accionista do banco, a família Espírito Santo. A
má gestão de conflitos de interesses é visível na concessão de crédito a
empresas do GES sem respeitar a principal regra da gestão de risco:
diversificar.
A realização de
negócios à margem das regras para partes relacionadas nasce na área de fundos
de investimento, ganhando força em 2012, mas sobretudo em 2013. É quando o
regulador, a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) obriga os fundos
do grupo a retirar a dívida do GES dos activos sob gestão, que o problema é
transferido para os clientes do banco de retalho e institucionais que no final
de Junho financiavam as empresas do GES com mais de três mil milhões de euros.
DEZ VEZES O BPN
Com mais de dois milhões de clientes e 20% do mercado bancário português, uma
dimensão dez vezes superiores ao Banco Português de Negócios (BPN), o Banco
Espírito Santo (BES) é uma instituição sistémica que esteve sempre debaixo do
radar dos supervisores portugueses e europeus.
O BES foi o único
dos grandes a conseguir evitar a ajuda estatal. O feito, que hoje é visto com
desconfiança, possibilitou-lhe escapar a um escrutínio maior e a exigências de
reestruturação, circunstâncias que lhe permitiram continuar a dar crédito
quando todos os outros cortavam.
Mas o BES esteve
sujeito à supervisão intrusiva do Banco de Portugal, aos auditores impostos
pela troika e às sucessivas reavaliações de activos. Nos testes de stress, a
holding financeira do Grupo Espírito Santo, a Espírito Santo Financial Group
(ESFG), accionista do BES, foi a exame e passou duas vezes (em 2011 e 2013).
Hoje a ESFG e duas das suas subsidiárias estão sob gestão judicial.
Os rumores já
existiam no sector e há um ano que são conhecidas as dificuldades de
financiamento das empresas do grupo, por entre divulgação de suspeitas sobre a
gestão e sinais claros de luta de poder interna. Mas o caso BES só rebenta no
princípio do fim da crise, com os primeiros sinais de retoma e certamente não por
acaso, logo a seguir à saída limpa da troika. O filme precipita-se para um
final infeliz após a saída forçada dos membros da família Espírito Santo dos
órgão de gestão do banco.
Como foi
possível? A única resposta possível é que, para lá de todos os sistemas, regras
e mecanismos de controlo o factor que faz a diferença é sempre o mesmo: as
pessoas.
Funções de
controlo interno
Gestão de risco
Os bancos devem
implementar um sistema de gestão de riscos. A tarefa cabe a um órgão
independente de outras funções operacionais a quem compete dar aconselhamento à
administração. A função envolve a detecção, monitorização e propostas de
correcção de eventuais deficiências. Há vários tipos de risco, mas entre os
mais relevantes na actividade bancária estão o risco de crédito, de mercado, de
liquidez, operacional e reputacional. Esta missão deve ser desenvolvida com
total liberdade e acesso pleno a todas as actividades informações.
Compliance
É a função que
assegura o cumprimento das obrigações legais e deveres exigidos a uma
instituição bancária, desde cumprimento de leis e regulamentos, passando por
boas práticas e protecção do consumidor. Tem funções específicas no controlo
dos procedimentos da prevenção e branqueamento de capitais. Cabe-lhe registar e
reportar à administração e autoridades incumprimentos e falhas e propor a sua
correcção. Quem desempenha estas funções não deve estar ligado a outras áreas
funcionais em instituições de grande dimensão. A administração tem de garantir
a sua independência
Auditoria interna
A auditoria actua
mais a posteriori. Está focada na fiscalização da eficácia das várias
componentes dos controlo interno. As deficiências identificadas têm ser
registadas e reportadas aos órgãos de administração com a respectiva
recomendação de correcção. A função tem
também responsabilidades de acompanhamento contínuo para avaliar se as medidas
correctivas estão a ser tomadas. O pessoal da auditoria deve ter acesso pleno a
todas as actividades e informação. Deve ser dotada de autoridade e
independência e dos meios necessários em função da dimensão do banco.
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