EXCLUSIVO
REPORTAGEM
Na noite fria de Lisboa, foram muitos os sem-abrigo
estrangeiros a procurar um tecto
O Pavilhão do Casal Vistoso, em Lisboa, tem estado aberto
para acolher população de sem-abrigo por causa do frio. Até agora, há uma
predominância de imigrantes a recorrer ao local.
Teresa Serafim
(texto) e Rui Gaudêncio (fotografia)
12 de Janeiro de
2024, 9:21
Os olhos de
Rajwinder Singh dizem tudo. O indiano de 39 anos fixa-nos e, quase a
lacrimejar, praticamente suplica: “Só quero um quarto…” Passa das 20h30, estão
à volta de nove graus Celsius e o frio esperado para esta quinta-feira já se
vai sentindo. De gorro envergado, Rajwinder está sentado, de pernas
cruzadas, em cima de um cobertor na Gare do Oriente, em Lisboa. Ao seu lado,
está um primo, de 42 anos, que vive há quatro meses na rua. Rajwinder está há menos tempo.
Ambos estavam a
trabalhar em Portugal, mas Rajwinder diz que não lhe pagavam. O indiano tem um
ar cansado e desmotivado. “Está frio, está barulho e não consigo dormir nada”,
conta, a apontar para o espaço em volta, repleto de cobertores de outras
pessoas em situação de sem-abrigo.
Rajwinder
descruza as pernas e deixa à vista o pé com ligaduras: magoou-se numas escadas.
O curativo foi feito depois de ser encaminhado para o Pavilhão do Casal
Vistoso, no Areeiro, por uma equipa da Câmara Municipal de Lisboa. Estava com
muitas dores e acabou por ir ser levado para o hospital, onde esperou para ser
atendido mais de dez horas. Depois voltou para a Gare do Oriente.
- Hoje não quer
vir connosco? – pergunta Deolinda Carvalho, assistente técnica da equipa do
projecto de missão do Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem Abrigo
(PMPSSA), que tem reencaminhado pessoas em situação de sem-abrigo para o
pavilhão, através de uma carrinha.
- Uh, talvez vá
mais tarde – reage Rajwinder Singh. Como tem de voltar para a Gare do Oriente
através do metro, e não tem dinheiro para o bilhete, o indiano está reticente
em ir até ao espaço no Areeiro.
Juntamente com
Mónica Coimbra, Deolinda Carvalho aproxima-se de um outro grupo de indianos,
com cerca de dez pessoas. O aglomerado ouve a explicação das técnicas e alguém
se arrisca a perguntar:
- Têm trabalho
para nós?
- Não, temos um
espaço onde podem ir tomar um banho, podem dormir, e há roupa, mas não temos
trabalho – esclarece Mónica Coimbra, jurista do PMPSSA.
- Vamos ficar a
viver lá? – questiona outra voz no grupo.
- Não, só ficam a
dormir e têm comida. Podem vir connosco – responde a jurista.
- Precisam dos
nossos documentos? – pergunta-se logo de seguida, com uma certa desconfiança.
- Não. É um
espaço da câmara. Querem vir?
De imediato,
começam diferentes conversas simultâneas no grupo. Há quem se levante e diga
que quer ir. Há quem adie a ida por um dia. E quem diga que prefere ali ficar.
Stanley Fathima,
de 37 anos, é um dos três indianos do grupo que decide ir com Deolinda e Mónica
para o Pavilhão do Casal Vistoso. Diz que está há cerca de um ano em Portugal.
Chegou a frequentar um centro de acolhimento, mas depois arranjou trabalho. Ficou
sem ele há pouco tempo: “Não me tratavam como um ser humano”, denuncia. O
indiano está agora a viver na rua.
Às costas leva
uma mochila e lá dentro um pequeno cobertor, que está muito longe de abafar os
arrepios que sente. “Aqui está muito frio”, ressalva.
A Gare do Oriente
é um dos nove pontos de concentração onde passaram viaturas e equipas, entre as
18h e as 22h, para reencaminhar pessoas em situação de sem-abrigo para o
pavilhão no Areeiro. Os outros pontos ficam na Rua de Cascais (Alcântara),
Avenida de Ceuta, Avenida Almirante Reis, Praça Duque Saldanha – Metro
Saldanha, Cais do Sodré, Praça da Figueira, Praça Martim Moniz e Estação de
Santa Apolónia.
O Pavilhão do
Casal Vistoso está aberto desde terça-feira (9 de Janeiro) à noite, como
estrutura adaptada do Plano de Contingência para as Pessoas em Situação de
Sem-Abrigo, que foi accionado pela Câmara Municipal de Lisboa, por causa do
frio.
Neste local, está
a funcionar o Dispositivo Integrado de Apoio às Pessoas em Situação Sem-Abrigo
(DIAPSSA), que junta e tem o acompanhamento de várias estruturas que trabalham
com a população de sem-abrigo. Por agora, este plano está accionado até domingo,
mas em constante avaliação, consoante as previsões meteorológicas.
Pelo frio e pela gripe
No pavilhão, há
todo um dispositivo montado com tendas, cadeiras, camas, um espaço para
alimentação e outro para animais. Quem chega por si próprio ou venha com as
equipas no terreno começa por ficar numa zona de acolhimento. Depois, numa
primeira fase, há uma triagem de saúde, onde é feito um rastreio. Numa segunda
fase, há vacinação para a gripe e para a covid-19, e, numa terceira, são
analisadas as doenças infecto-contagiosas.
De seguida,
existe um atendimento social, em que se conversa com a pessoa e se percebe o
seu histórico. Por fim, toma-se a decisão se ficará a pernoitar no pavilhão ou
se segue para outra estrutura de alojamento da cidade. Mesmo quem ali não
pernoite ou siga para outro alojamento, pode mudar de roupa, tomar banho e
comer. O pavilhão está aberto das 18h às 9h.
“O espaço tem
capacidade para 100 camas, mas poderá ser estendido a 150, se for necessário”,
nota Paulo Santos, coordenador do Núcleo de Planeamento e Intervenção
Sem-Abrigo (NPISA) e da equipa de missão do PMPSSA. No ano passado, este mesmo
dispositivo funcionou no Pavilhão Municipal Manuel Castel Branco, na zona da
Graça, e tinha a capacidade para entre 70 e 75 camas.
Este ano foi mais
curto o tempo para avisar as pessoas de que o pavilhão estaria aberto.
Normalmente, sabe-se com quatro dias de antecedência da abertura do espaço e,
nesses dias, as equipas técnicas de rua avisam as pessoas no terreno. Em 2024,
houve menos de 24 horas antes da abertura para informar as pessoas, tendo sido
esse trabalho iniciado na segunda-feira.
Paulo Santos
indica que a o accionamento deste plano “foi uma decisão do presidente [Carlos
Moedas (PSD)], que estará relacionada com o tempo frio e o contexto de gripe,
para que se tentasse complementar a resposta de saúde na cidade”. Na
terça-feira, Carlos Moedas disse, citado pela agência Lusa, que o plano tinha
sido accionado “antes de a situação piorar”. “Este plano de contingência é um
plano que todos os anos é activado se as temperaturas estiverem dois dias
abaixo dos três graus Celsius, mas decidi que deveríamos accioná-lo já”,
afirmou. “Não estamos ainda obviamente a três graus, mas estamos com
temperaturas muito baixas e temos uma população de pessoas em situação de
sem-abrigo muito vulnerável.”
O número de
pessoas a passar pelo pavilhão no Areeiro tem vindo a aumentar desde a sua
abertura. Na terça-feira, passaram por lá 44 pessoas, sendo que 35 pernoitaram,
com uma média de idades entre os 45 e os 64 anos. Dos sem-abrigo que aí
pernoitaram, 29 eram homens e 21 estavam há menos de seis meses na rua. “Foram
15 portugueses, ou seja, a maior parte eram estrangeiros”, indica Paulo Santos.
Na segunda noite
estiveram 63 pessoas no pavilhão e 49 pernoitaram lá. A maior parte voltou a
ser homens. “Também muitos estavam há pouco tempo na rua, o que está
relacionado com o facto de muitos deles serem migrantes e de [aparecerem]
pessoas que não são de Lisboa, mas de municípios vizinhos”, assinala o
responsável. Pelo menos até à segunda noite, não foram registados animais no
pavilhão. Já nesta terceira noite foram feitos 77 atendimentos e 68 pessoas
pernoitaram no local.
“Claro que
sentimos o frio. Somos humanos”
A predominância
de pessoas em situação de sem-abrigo estrangeiras é uma tendência que já se
vinha a notar desde o ano passado. “A tendência, em princípio, irá manter-se.
No ano passado, pela primeira vez, tivemos uma predominância de migrantes”,
nota Paulo Santos. Outra tendência que se mantém é “uma percentagem
significativa de pessoas em situação de sem-abrigo mais jovens”.
O número de
pessoas em situação de sem-abrigo parece também estar a aumentar. “Aquilo que
as equipas de rua nos dizem é que, em 2023, houve um aumento de pessoas na
rua”, refere Paulo Santos. Quanto a dados oficiais, em Lisboa, indica os que se
referem até 31 de Dezembro de 2022, em que contabilizaram 394 pessoas em
situação de sem-abrigo sem tecto (na rua) e 2722 sem casas (ou seja, com alguma
forma de alojamento).
Desde terça-feira
que Deolinda Carvalho e Mónica Coimbra têm estado a reencaminhar pessoas para o
pavilhão, a partir da Gare do Oriente, e têm notado uma predominância de
imigrantes. “Há muitos estrangeiros. Contam-se pelo dedo os portugueses”, supõe
Deolinda. “Aderem muito [a virem connosco para o pavilhão], mas sempre naquela
de serem ajudados a arranjar trabalho e casa.” A assistente técnica diz que tem notado a presença de pessoas da Índia, do Paquistão, do Bangladesh do Afeganistão, da Argélia, de Marrocos, da Tunísia ou do Senegal na rua.
O mesmo também
tem sido observado por Francisco e Gaspar (nomes fictícios). “Agora há aqui
poucos portugueses”, diz Francisco sobre o espaço que frequenta na Gare do
Oriente, numa zona repleta de cobertores, perto das estações de metro e de
comboio. As estações de metro de Santa Apolónia, Rossio e do Oriente estão
abertas entre as 23h e as 6h30 até domingo. A Câmara Municipal de Odivelas
também informou que a estação de Odivelas estaria aberta durante a madrugada.
Francisco e
Gaspar já perderam a conta ao tempo que estão na Gare do Oriente. “Já cá
estive, depois fui-me embora e depois voltei outra vez”, conta Francisco, de 59
anos. Vão apanhar boleia de Deolinda e Mónica até ao pavilhão no Areeiro e
aproveitar para comer ou tomar lá um banho. Depois, voltam para o sítio do
costume. “Não gosto de dormir com tanta gente à minha volta. Não tenho nada
contra as pessoas, mas cada macaco no seu galho”, diz Francisco sobre o espaço
de pernoita no pavilhão.
O frio não lhes
passa ao lado e vão-se remediando com mantas. Francisco está a beber um café
quentinho e, cheio de frontalidade, afirma, já com uma certa tosse: “Claro que
sentimos o frio. Somos humanos, o que é que havemos de sentir? Estamos a passar
mal...”
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