EXCLUSIVO OPINIÃO
Este parte, aquele parte, e todos, todos se vão
À minha volta está tudo assim: este miúdo parte, aquele
miúdo parte, e todos, todos se vão para a Europa das oportunidades.
João Miguel
Tavares
13 de Janeiro de
2024, 0:05
https://www.publico.pt/2024/01/13/opiniao/opiniao/parte-parte-vao-2076681
Se o pessoal de
esquerda viesse cá a casa, ficaria muito orgulhoso da minha colecção de discos
portugueses – pudesse a colecção votar e a esquerda radical teria maioria
absoluta. É até possível que o meu guarda-fatos fosse tomado de assalto por
T-shirts do Che Guevara. Como os discos não votam, a minha casa permanece
liberal, enquanto eu continuo a divertir-me com boa música de intervenção. Quem
conhece a obra de Adriano Correia de Oliveira sabe que o título deste artigo é
o início de um dos seus temas mais famosos, Cantar de Emigração: “Este parte,
aquele parte/ e todos, todos se vão/ Galiza ficas sem homens/ que possam cortar
o teu pão.”
A canção abre o
álbum Gente de Aqui e de Agora, lançado em 1971, com músicas de José Niza, a
maior parte delas compostas quando estava destacado no Norte de Angola, durante
a Guerra Colonial. Mas o texto dessa canção não é original, nem português: ele
traduz a parte final de um longo poema da galega Rosalía de Castro (1837-1885)
chamado ¡Pra a Habana!: “Tes, en cambio, orfos e orfas/ e campos de soledad,/ e
nais que non teñen fillos/ e fillos que non tén pais.” Claro que Adriano
Correia de Oliveira não estava a cantar a emigração dos galegos do século XIX
para Cuba – estava a cantar a fuga dos portugueses para a Europa desenvolvida e
democrática nos anos 60.
Fui à estante
buscar Gente de Aqui e de Agora enquanto lia uma notícia do Expresso – “30% dos
jovens nascidos em Portugal vivem fora do país” – que a minha filha mais velha
me enviou na sexta-feira de manhã (link de Instagram, claro). O sonho dela é ir
trabalhar para a Alemanha após a licenciatura, e à minha volta está tudo assim:
este miúdo parte, aquele miúdo parte, e todos, todos se vão para a Europa das
oportunidades. Já não fogem à maldição da ditadura. Fogem à maldição dos
salários de mil euros e à falta de um modelo de desenvolvimento para o país.
Conheço tantos
jovens nestas condições, apenas no meu círculo familiar e de amigos, que essa
tendência teria necessariamente de se reflectir nas estatísticas. E reflecte,
de facto. A notícia do Expresso aparece com números frescos e arrasadores. Cito
o início do artigo: “Portugal tem a taxa de emigração mais alta da Europa e uma
das maiores do mundo. De acordo com uma estimativa do Observatório da
Emigração, 30% dos nascidos em Portugal com idades entre os 15 e os 39 anos
deixaram o país em algum momento e vivem actualmente no exterior. São mais de
850 mil.”
Isso inclui quase
um terço das mulheres portuguesas em idade fértil, o que dá cabo dos índices de
fecundidade e arrasa o mercado de trabalho futuro. A emigração portuguesa
cresce de 2001 a 2008, cai entre 2008 e 2010, volta a subir após a crise da
troika, atingindo um pico em 2013, cai até 2018, volta a subir em 2019, desce
com a pandemia, e volta a disparar em 2021 e 2022, com 60 mil a 65 mil saídas
anuais. E a questão central, claro, são os que saem. Já não os antigos jovens
semianalfabetos dispostos a ir para França fazer trabalho braçal – os tais que
deixavam os campos por colher nos séculos XIX e XX –, mas jovens altamente
qualificados que vão ajudar com o seu talento a desenvolver empresas de outros
países, enquanto por cá continuamos a ter um PSI-20 que é, afinal, PSI-16 (só
tem 16 empresas cotadas).
Existem inúmeros
problemas nos hospitais, nas escolas, nos transportes. Mas nenhum problema é
tão grave e estrutural quanto este: os jovens deixaram de acreditar em
Portugal. O resto é conversa.
O autor é colunista do PÚBLICO
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