quarta-feira, 29 de março de 2023

O atentado do criminoso fofinho

 



OPINIÃO

O atentado do criminoso fofinho

 

Vem de um país onde matar mulheres é tão comum como degolar uma galinha. Porém temos de fingir que este caldo cultural e de inimizades religiosas não tem, de certeza, nada que ver com os crimes.

 

Maria João Marques

29 de Março de 2023, 6:50

https://www.publico.pt/2023/03/29/opiniao/opiniao/atentado-criminoso-fofinho-2044201

 

A pasmaceira da vida portuguesa foi interrompida nesta terça-feira com o atentado ao Centro Ismailita de Lisboa. Ao tempo que escrevo, não se sabem os motivos para o atentado. Mas também não é dessas motivações que pretendo falar.

 

Além da minha solidariedade e empatia com as mortes das duas mulheres trabalhadoras do centro ismailita, dos três miúdos refugiados que já tinham perdido a mãe e agora perderam o pai, dos dois feridos, dos azarados que assistiram a tudo, impressionou-me mal a comunicação social. Deu ideia de, ao invés de pretender informar pessoas esclarecidas e com espírito crítico, se dirigir a ignorantes infantis a quem a realidade precisava de ser explicada com histórias da carochinha. Ou os impressionáveis portugueses ainda sairiam para a rua em histeria, não aguentando o (inexistente) perigo público que são os refugiados, os islâmicos ou outro grupo qualquer recém-chegado ao país.

 

E o que me impressiona nisto tudo é não vislumbrar que tratar cidadãos como intelectualmente débeis e infantis e fornecer histórias da carochinha é dar gás (muito inflamável) à extrema-direita.

 

Vamos por partes. Portugal é um país extremamente seguro. As pessoas pensantes percebem que, mesmo com a quantidade de migrantes, imigrantes e refugiados que temos recebido, continuamos um país extremamente seguro. Donde, não há nenhum perigo generalizado para a segurança pública com a imigração. Por alguma razão nem o partido de extrema-direita aponta as mais pesadas bombas à imigração, mesmo se, com o nível indigente do costume, tenta ganhos políticos com crimes como o de ontem. (De resto, dizem os mentideros, a imigração barata é muito desejada por vários financiadores do Chega.)

 

Portugal precisa de imigração. Para a sustentabilidade da Segurança Social (os imigrantes têm contributo líquido positivo muito significativo), para a natalidade, para assegurar o dinamismo cultural e económico que falta às sociedades populacionalmente estagnadas, para preencherem vagas de empregos que os portugueses já não querem ocupar. Não é só uma questão de solidariedade e humanidade – a imigração é, para nós, necessidade. Não temos, portanto, por cá, nenhum problema com imigração.

 

Sucede que, para evidenciarmos os benefícios da imigração e para evitarmos racismos e xenofobias, calhando é mau caminho branquear crimes cometidos por imigrantes ou refugiados. Se temos de repudiar a propensão da direita mais paroquial de desconfiar e diabolizar a priori "o outro", de igual modo merece o caixote do lixo intelectual a tendência da esquerda paternalista de lavar toda a violência e discriminação que não venha do homem branco heterossexual.

 

Foi o que aconteceu ontem depois do atentado. Fomos logo informados, pela comunicação social, de que não nos podíamos questionar se ali no meio do atentado não poderiam existir motivos religiosos. O criminoso vem de um país de maioria sunita, com um islão castradoramente conservador, e o atentado foi cometido num centro ismailita, representante de um islão imensamente moderado, xiita, alvo comum de atentados religiosos de muçulmanos. Além disso, pela Europa há vozes ismailitas com influência denunciando com virulência o alastramento do wahabismo e dos valores de países de maioria sunita (como a Arábia Saudita) nos países europeus.

 

Ademais, o atentado foi aparentemente dirigido à professora, uma das mulheres que morreram. Ora o criminoso vem de um país onde matar mulheres é tão comum como degolar uma galinha para almoçar. Porém temos de fingir que este caldo cultural de misoginia extrema e de inimizades religiosas não tem, de certeza, nada que ver com os crimes nem influenciou o criminoso.

 

Se fica muito mal questionar motivos religiosos ou culturais, já a saúde mental foi atirada para debaixo do comboio. Repetiram-nos à exaustão que o assassino tinha problemas psicológicos. Estigmatizar quem tem problemas de saúde mental já não tem problema nenhum. Como se a falta de saúde mental fosse indutora de violência contra terceiros. (E para a semana, claro, passam-se peças sobre a necessidade de normalizar problemas de saúde mental. Ora obrigada.)

 

Piora tudo com a humanização que fizeram do assassino. Refugiado, com três filhos pequenos a seu cargo, fugiu da guerra, esteve num campo de refugiados na Grécia, morreu-lhe a mulher por essa altura. Coitadinho. Pobre diabo. Nem admira que pegue numa faca grande e dê em matar as pessoas que estavam a ajudá-lo. Qualquer um o faria. O ministro da Administração Interna foi ao ponto absurdo e surreal de chamar "vítima" (pela morte da mulher) ao criminoso que matou duas mulheres.

 

Ou seja, de tanto quererem tornar o assassino uma criatura fofinha, transformaram todos os refugiados, todos eles com histórias traumáticas que nem conseguimos imaginar, em assassinos em potência. Isto foi só a maior ajuda que o Chega teve nos últimos anos. E é mentira. Porque não, os traumas dos refugiados não os tornam perigosos nem assassinos, mesmo se (inevitavelmente) as suas vivências lhes esmagam a saúde mental. A propensão para matar vem de outros lados.

 

Em suma, perante um assassino que reproduziu padrões preocupantes, os media ocuparam-se a dar-nos histórias da carochinha sobre o coitadinho que era o criminoso e os seus problemas psicológicos. De caminho, estigmatizaram quem tem problemas de saúde mental e demais refugiados. Pior: não fizeram as perguntas que se impunham. Não só sobre os motivos – como se qualquer verdade não fosse recebida com tranquilidade por um país com o hábito de ser tranquilo – como sobre pormenores.

 

O ministro da Administração Interna foi ao ponto absurdo e surreal de chamar "vítima" (pela morte da mulher) ao criminoso que matou duas mulheres

 

O criminoso transportava uma faca de grandes dimensões, donde: premeditação. Mas o crime foi apresentado como uma zanga súbita de um homem usualmente pacífico. Um "surto", como ouvi. Não nos informaram, nem questionaram, porque houve esta premeditação. Teve uma vontade de matar súbita, veio do nada, porque sim – é o que temos obrigação de presumir. A polícia chegou ao crime num minuto. Um minuto. Já sabendo que se tratava de um indivíduo muito violento. Acreditando na boa prestação da PSP (e saudando), não vejo como se chega num minuto a um crime.

 

A vontade dos media – e do Governo – de nos adormecer foi tanta, e de esvaziar aproveitamentos políticos, que não só não tranquilizou como deixou a sensação de encenação e artificialidade na investigação e na reação a este crime. Um mau serviço à população e um gigante presente à extrema-direita. E que desrespeito às vítimas.

 

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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