OPINIÃO
O atentado do criminoso fofinho
Vem de um país onde matar mulheres é tão comum como
degolar uma galinha. Porém temos de fingir que este caldo cultural e de
inimizades religiosas não tem, de certeza, nada que ver com os crimes.
Maria João
Marques
29 de Março de
2023, 6:50
https://www.publico.pt/2023/03/29/opiniao/opiniao/atentado-criminoso-fofinho-2044201
A pasmaceira da
vida portuguesa foi interrompida nesta terça-feira com o atentado ao Centro
Ismailita de Lisboa. Ao tempo que escrevo, não se sabem os motivos para o
atentado. Mas também não é dessas motivações que pretendo falar.
Além da minha
solidariedade e empatia com as mortes das duas mulheres trabalhadoras do centro
ismailita, dos três miúdos refugiados que já tinham perdido a mãe e agora
perderam o pai, dos dois feridos, dos azarados que assistiram a tudo,
impressionou-me mal a comunicação social. Deu ideia de, ao invés de pretender
informar pessoas esclarecidas e com espírito crítico, se dirigir a ignorantes
infantis a quem a realidade precisava de ser explicada com histórias da
carochinha. Ou os impressionáveis portugueses ainda sairiam para a rua em
histeria, não aguentando o (inexistente) perigo público que são os refugiados,
os islâmicos ou outro grupo qualquer recém-chegado ao país.
E o que me
impressiona nisto tudo é não vislumbrar que tratar cidadãos como intelectualmente
débeis e infantis e fornecer histórias da carochinha é dar gás (muito
inflamável) à extrema-direita.
Vamos por partes.
Portugal é um país extremamente seguro. As pessoas pensantes percebem que,
mesmo com a quantidade de migrantes, imigrantes e refugiados que temos
recebido, continuamos um país extremamente seguro. Donde, não há nenhum perigo
generalizado para a segurança pública com a imigração. Por alguma razão nem o
partido de extrema-direita aponta as mais pesadas bombas à imigração, mesmo se,
com o nível indigente do costume, tenta ganhos políticos com crimes como o de
ontem. (De resto, dizem os mentideros, a imigração barata é muito desejada por
vários financiadores do Chega.)
Portugal precisa
de imigração. Para a sustentabilidade da Segurança Social (os imigrantes têm
contributo líquido positivo muito significativo), para a natalidade, para
assegurar o dinamismo cultural e económico que falta às sociedades
populacionalmente estagnadas, para preencherem vagas de empregos que os
portugueses já não querem ocupar. Não é só uma questão de solidariedade e
humanidade – a imigração é, para nós, necessidade. Não temos, portanto, por cá,
nenhum problema com imigração.
Sucede que, para
evidenciarmos os benefícios da imigração e para evitarmos racismos e xenofobias,
calhando é mau caminho branquear crimes cometidos por imigrantes ou refugiados.
Se temos de repudiar a propensão da direita mais paroquial de desconfiar e
diabolizar a priori "o outro", de igual modo merece o caixote do lixo
intelectual a tendência da esquerda paternalista de lavar toda a violência e
discriminação que não venha do homem branco heterossexual.
Foi o que
aconteceu ontem depois do atentado. Fomos logo informados, pela comunicação
social, de que não nos podíamos questionar se ali no meio do atentado não
poderiam existir motivos religiosos. O criminoso vem de um país de maioria
sunita, com um islão castradoramente conservador, e o atentado foi cometido num
centro ismailita, representante de um islão imensamente moderado, xiita, alvo comum
de atentados religiosos de muçulmanos. Além disso, pela Europa há vozes
ismailitas com influência denunciando com virulência o alastramento do
wahabismo e dos valores de países de maioria sunita (como a Arábia Saudita) nos
países europeus.
Ademais, o atentado
foi aparentemente dirigido à professora, uma das mulheres que morreram. Ora o
criminoso vem de um país onde matar mulheres é tão comum como degolar uma
galinha para almoçar. Porém temos de fingir que este caldo cultural de
misoginia extrema e de inimizades religiosas não tem, de certeza, nada que ver
com os crimes nem influenciou o criminoso.
Se fica muito mal
questionar motivos religiosos ou culturais, já a saúde mental foi atirada para
debaixo do comboio. Repetiram-nos à exaustão que o assassino tinha problemas
psicológicos. Estigmatizar quem tem problemas de saúde mental já não tem
problema nenhum. Como se a falta de saúde mental fosse indutora de violência
contra terceiros. (E para a semana, claro, passam-se peças sobre a necessidade
de normalizar problemas de saúde mental. Ora obrigada.)
Piora tudo com a
humanização que fizeram do assassino. Refugiado, com três filhos pequenos a seu
cargo, fugiu da guerra, esteve num campo de refugiados na Grécia, morreu-lhe a
mulher por essa altura. Coitadinho. Pobre diabo. Nem admira que pegue numa faca
grande e dê em matar as pessoas que estavam a ajudá-lo. Qualquer um o faria. O
ministro da Administração Interna foi ao ponto absurdo e surreal de chamar
"vítima" (pela morte da mulher) ao criminoso que matou duas mulheres.
Ou seja, de tanto
quererem tornar o assassino uma criatura fofinha, transformaram todos os
refugiados, todos eles com histórias traumáticas que nem conseguimos imaginar,
em assassinos em potência. Isto foi só a maior ajuda que o Chega teve nos
últimos anos. E é mentira. Porque não, os traumas dos refugiados não os tornam
perigosos nem assassinos, mesmo se (inevitavelmente) as suas vivências lhes
esmagam a saúde mental. A propensão para matar vem de outros lados.
Em suma, perante
um assassino que reproduziu padrões preocupantes, os media ocuparam-se a
dar-nos histórias da carochinha sobre o coitadinho que era o criminoso e os
seus problemas psicológicos. De caminho, estigmatizaram quem tem problemas de
saúde mental e demais refugiados. Pior: não fizeram as perguntas que se
impunham. Não só sobre os motivos – como se qualquer verdade não fosse recebida
com tranquilidade por um país com o hábito de ser tranquilo – como sobre
pormenores.
O ministro da Administração Interna foi ao ponto absurdo
e surreal de chamar "vítima" (pela morte da mulher) ao criminoso que
matou duas mulheres
O criminoso
transportava uma faca de grandes dimensões, donde: premeditação. Mas o crime
foi apresentado como uma zanga súbita de um homem usualmente pacífico. Um
"surto", como ouvi. Não nos informaram, nem questionaram, porque
houve esta premeditação. Teve uma vontade de matar súbita, veio do nada, porque
sim – é o que temos obrigação de presumir. A polícia chegou ao crime num
minuto. Um minuto. Já sabendo que se tratava de um indivíduo muito violento.
Acreditando na boa prestação da PSP (e saudando), não vejo como se chega num
minuto a um crime.
A vontade dos
media – e do Governo – de nos adormecer foi tanta, e de esvaziar
aproveitamentos políticos, que não só não tranquilizou como deixou a sensação
de encenação e artificialidade na investigação e na reação a este crime. Um mau
serviço à população e um gigante presente à extrema-direita. E que desrespeito
às vítimas.
A autora é
colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
Sem comentários:
Enviar um comentário