quinta-feira, 1 de setembro de 2022

A médica de família emigrou

 

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A médica de família emigrou

 

A médica de família parece feliz. Talvez fosse mais feliz junto da família mas o país onde se formou, e trabalhou muito durante a formação, não lhe criou condições para ficar nem expectativas de que essas condições poderão existir num curto espaço de tempo.

 

Bruno Moreno

Médico de família

https://www.publico.pt/2022/09/01/p3/cronica/medica-familia-emigrou-2018958

1 de Setembro de 2022, 7:36

 

Trabalhei com ela um ano. Recém-especialista, muito actualizada, com as orientações ainda fresquinhas como se espera de alguém que terminou recentemente a especialidade de Medicina Geral e Familiar (MGF) e foi “entregue às feras”. Apaixonada pela especialidade, empenhada na actividade diária, disponível, acessível, assertiva, bom senso, integrada na equipa —​ na micro-equipa — e com qualidades organizativas. Reconheço-lhe capacidades de liderança. Não tenho dúvida que será coordenadora de uma unidade de saúde um dia. Os doentes gostavam da “médica nova”. Ela gostava dos doentes.

 

Saímos da mesma Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP) há seis meses. As nossas sortes ou azares foram diferentes. Eu esperei oito anos para integrar uma Unidade de Saúde Familiar (USF) Modelo B. Finalmente consegui! Ela não quis esperar pela utopia cada vez mas difícil de conseguir trabalhar numa USF modelo B, que se podia arrastar oito, 16, 24 anos ou talvez uma vida. Não a censuro.

 

Revejo-me nela há oito anos e penso que podia ter sido eu. Se calhar deveria ter sido eu… De lá para cá pouco ou nada mudou. As carreiras médicas continuam paradas tal como a reforma dos CSP. O privado acena na porta ao lado, a fuga de médicos é diária, o número de doentes sem médico de família é preocupante. Os atentados contra a especialidade vêm de todo o lado, não só da parte governativa, como até dos pares. Persiste a ignorância relativamente à história de mais de 40 anos da especialidade de MGF e às suas conquistas em termos de prevenção da doença e promoção da saúde.

 

O ponto 8 da Declaração de Alma Ata que em 1978 expressava a necessidade urgente de os governos apostarem nos CSP como forma de promover a saúde no mundo vem sendo sucessivamente esquecido: “VIII) Todos os governos devem formular políticas, estratégias e planos nacionais de acção para lançar/sustentar os CSP em coordenação com outros sectores. Para esse fim, será necessário agir com vontade política, mobilizar os recursos do país e utilizar racionalmente os recursos externos disponíveis”.

 

É adoptada a política do “penso rápido”. Propostas políticas avulso, feitas à medida das necessidades, sem projecção futura. Li algures que a saúde não pode ser politizada. As verdadeiras medidas em saúde só terão impacto após quatro anos e essas medidas não interessam porque não aliciam eleitores num curto espaço de tempo. Não será altura de despir camisolas partidárias e assumir uma verdadeira política de saúde comum em prol da saúde dos portugueses, da satisfação dos profissionais e de um Serviço Nacional de Saúde que se quer forte, robusto e inabalável por pandemias politicas?

 

 

 

 

"Por outro lado, a França também necessitada, soube aliciá-la não só com condições financeiras atractivas, mas também com tempo para si, com menos impostos, com tranquilidade, com formação, com propostas de estabilidade familiar."

 

É ponto assente que a aposta nos CSP é a forma mais eficiente de organização de um sistema de saúde. A utilização racional de recursos em saúde assenta na prevenção da doença, na promoção da saúde, na correcção da patologia aguda e na prevenção da agudização da patologia crónica. As USFs modelo B vêm dando prova disso há anos. Vamos continuar a colocar entraves a este modelo evolutivo? Vamos continuar a insistir na precarização dos CSP com profissionais indiferenciados a aplicar “pensos rápidos”? Vamos continuar a não planear a saúde dos portugueses?

 

A médica de família parece feliz. Talvez fosse mais feliz junto da família mas o país onde se formou, e trabalhou muito durante a formação, não lhe criou condições para ficar nem expectativas de que essas condições poderão existir num curto espaço de tempo. Por outro lado, a França também necessitada, soube aliciá-la não só com condições financeiras atractivas, mas também com tempo para si, com menos impostos, com tranquilidade, com formação, com propostas de estabilidade familiar.

 

Resta-me desejar felicidades à médica de família e desejar que cá ou eventualmente lá nos voltemos a encontrar profissionalmente.

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