quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Abriu portas da Europa a imigrantes ilegais. Tribunal diz-se impotente para punir advogada como merecia

 


JUSTIÇA

Abriu portas da Europa a imigrantes ilegais. Tribunal diz-se impotente para punir advogada como merecia

 

Sentença acusa arguida de ser indiferente à crise humanitária que continua a matar milhares de refugiados que tentam chegar à Europa.

 

Ana Henriques

29 de Dezembro de 2021, 23:26

https://www.publico.pt/2021/12/29/sociedade/noticia/abriu-portas-europa-imigrantes-ilegais-tribunal-dizse-impotente-punir-advogada-merecia-1990281

 

Questões formais impediram uma juíza de punir de forma mais severa uma advogada que se dedicou durante dois anos a abrir as portas da Europa a dezenas de imigrantes ilegais, a maior parte dos quais continuam neste momento em paradeiro incerto. Proferida este mês, a sentença que a condenou a cinco anos de prisão efectiva sublinha que lidava na maior parte das vezes com adolescentes menores e que demonstrou “total indiferença” pela crise humanitária que continua a matar milhares de migrantes e refugiados que tentam chegar à Europa.

 

Desde que ingressou na advocacia, em 2015 que Marisa Monteiro, hoje com 42 anos, era frequentadora assídua do aeroporto de Lisboa, mais propriamente do Centro de Instalação Temporária, local onde ficam detidos os passageiros sem condições para entrar em território nacional. Até 2018, altura em que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) a confrontou com as suas suspeitas, entregou mais de cem pedidos de asilo pelos quais cobrou aos requerentes entre mil e 1700 euros cada um. O estratagema a que recorreu, segundo ficou provado em tribunal, baseava-se acima de tudo na lentidão da justiça portuguesa.

 

Depois de alegar perante o SEF que os seus clientes, na sua maioria adolescentes menores, eram pessoas que viajavam para Portugal fugidas de perseguições políticas, sexuais e religiosas nos seus países de origem, ficava à espera da recusa do visto de permanência em território nacional, uma vez que nenhum deles conseguia provar essa condição. Na realidade, estes jovens oriundos sobretudo do Senegal e países vizinhos queriam juntar-se a familiares seus residentes em França e noutros países europeus por questões económicas. Quando chegava a recusa de permanência em território nacional Marisa Monteiro recorria sistematicamente da decisão para os tribunais administrativos, ciente de que o recurso não seria decidido no prazo máximo de 60 dias que a lei prevê que os candidatos a asilo possam estar detidos. Quando finalmente os tribunais administrativos se pronunciavam já os imigrantes tinham sido libertados e rumado além-fronteiras.

 

Segundo a sentença, a arguida terá lucrado com esta actividade cerca de 130 mil euros, uma vez que tinha de repartir os lucros com cúmplices que tinha nos países de origem, e que lhe indicavam em que voos seguiam os candidatos a asilo e a que horas chegavam ao aeroporto de Lisboa. A sua actuação tornou-se notada quer pela quantidade de casos que conseguia angariar quer por apresentar requerimentos em nome dos imigrantes antes mesmo de ter falado com eles no Centro de Instalação Temporária. Muitos deles tinham embarcado com documentos de identificação falsos ou roubados a compatriotas seus.

 

A decisão judicial dá conta, entre outros casos, da situação de uma menor chamada Marceline que chegou a Lisboa a 1 de Janeiro de 2017, nascida no Congo. Contou às autoridades que tinha 15 anos e vinha do Senegal, onde se prostituía às ordens de uma senhora que lhe dava abrigo e comida. Foi essa mulher, garantiu, que a convenceu a viajar para a Europa, pagando-lhe a viagem e tratando-lhe da documentação. Que não se preocupasse, porque teria alguém do sexo feminino à sua espera na capital portuguesa. E assim era.

 

Por ser menor não ficou no aeroporto: foi encaminhada para instalações do Centro Português de Refugiados, donde saiu para voltar à prostituição. Viria a ser interceptada pelas autoridades em Espanha num autocarro onde viajava acompanhada de um homem, com destino a França. A advogada aconselhava sempre os imigrantes a abandonarem Portugal pela via terrestre, por os controlos policiais serem menos eficazes do que se viajassem por via aérea.

 

Para esconder das autoridades o que ganhava com esta actividade, os pagamentos eram feitos ao marido e a vários outros familiares através de agências de transferência de dinheiro. Ao tribunal, justificou esta forma de trabalhar alegando que as duas gravidezes que teve em pouco tempo, aliadas ao enorme volume de serviço, fez com que tivesse tido de recorrer à sua ajuda. Nem esta nem outras explicações que deu durante o julgamento convenceram a juíza, que acabou por a condenar por 50 crimes de auxílio à imigração ilegal.

 

A arguida terá lucrado com esta actividade cerca de 130 mil euros, uma vez que tinha de repartir os lucros com cúmplices que tinha nos países de origem

 

Sucede que o Ministério Público teve, durante a fase de inquérito do processo, expectativas de punição mais baixas. Como considerou que todos estes casos correspondiam à prática de um único crime – na forma continuada – remeteu o caso para um tipo de tribunal, o chamado local criminal, que por lei só pode aplicar penas de prisão até ao máximo de cinco anos. A juíza ainda tentou resolver o problema, mas acabou por se conformar. Deixou, porém, escrito na sentença que a advogada merecia ser condenada a sete anos e meio de cadeia, mas que estava impedida de tomar semelhante decisão.

 

“A culpa da arguida é elevadíssima, porquanto actuou durante um longo período de tempo e em elevadíssimo número de vítimas”, observou. “Numa época de verdadeira crise humanitária no que respeita a cidadãos estrangeiros que pretendem entrar no continente europeu, muitos deles vítimas de pessoas como a arguida, a quem pagam para arriscarem a vida no transporte, realizado por vezes em botes que, naufragando, conduzem à morte, demonstrou, com a sua conduta, uma total indiferença pela sorte destas pessoas, que podiam até ser vítimas de redes de prostituição”.

 

O PÚBLICO tentou, sem sucesso, falar com Marisa Monteiro.

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