quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Grada Kilomba e o “politicamente correcto” multiculturalista

 


OPINIÃO

Grada Kilomba e o “politicamente correcto” multiculturalista

 

A polémica em curso radica-se tão-só no facto de a) a artista ser dada à partida como a escolhida e tal não ter sucedido e de b) ela ser mulher e afro-descendente, o que fez soar as trombetas do discurso identitário hiperbólico.

 

Augusto M. Seabra

28 de Dezembro de 2021, 21:33 actualizado a 29 de Dezembro de 2021, 8:11

https://www.publico.pt/2021/12/28/culturaipsilon/opiniao/grada-kilomba-politicamente-correcto-multiculturalista-1990085

 

A polémica da não-escolha de uma artista de origem africana, Grada Kilomba, para ser a “representante” de Portugal na Bienal de Arte de Veneza estalou com estrondo no mundo da arte e transbordou de modo sem precedentes para o espaço público.

 

Vários factores estão implicados, a saber: os métodos de escolha dos artistas e dos projectos artísticos por parte do Estado; a concreta metodologia seguida na escolha para a Bienal de Veneza; as características dos artistas apresentados a concurso por quatro curadores (ou cinco, porque entres eles havia uma dupla); a escolha aritmética de Pedro Neves Marques em detrimento de Grada Kilomba; as subsequentes acusações de misoginia e racismo com afirmações identitárias hiperbólicas; o que é, ou são, o(s) discurso(s) “politicamente correcto(s)”, no caso nesse grande albergue designado por “multiculturalismo”.

 

O apoio do Estado às artes é fundamental, mas, se essa é uma condição necessária à persistência da diversidade, não menos necessário a essa diversidade e mesmo à democracia liberal é que não haja uma “arte do Estado”, isto é, uma escolha directa do poder político. Impõe-se, pois, a existência de estruturas de mediação e escolha, em geral júris, ou, no campo das artes visuais, da figura do curador.

 

Essa figura ocorreu durante muitos anos em Portugal na escolha para a Bienal de Veneza. Ainda assim, o “muito liberal” secretário de Estado da Cultura Francisco José Viegas escolheu directamente Joana Vasconcelos. Mais hábil, o seu sucessor, Jorge Barreto Xavier, fez ele também a escolha de João Maria Gusmão e Pedro Paiva, e só depois foi buscar como curador o então galerista e “produtor” da dupla, Natxo Checa.

 

Não se pense, todavia, que as escolhas são puro livre-arbítrio dos curadores. E compreende-se que assim seja: o que mais importa são as características dos artistas e o seu impacto no espaço público. Assim, por exemplo, nas escolhas para Veneza de Alexandre Melo, Vicente Todolí/João Fernandes e Delfim Sardo, que recaíram respectivamente sobre Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis e Jorge Molder (e notar-se-á que falamos de curadores e artistas reputados), os escolhidos já estavam “pressentidos”, o que se compreende.

 

Estaria esgotado para La Biennale o modelo do mediador-curador? Não estou nada seguro. Há três ou quatro casos de artistas superlativos que nunca foram escolhidos: Paulo Nozolino, Ana Jotta e João Queiroz ou, ausência ainda mais gritante, Rui Chafes, que já esteve em Veneza, mas não na condição de representante português. Todos têm amplo reconhecimento público, condição justificativa para a sua escolha segundo o modelo vigente até à penúltima edição.

 

"Que três dos jurados preferissem Grada Kilomba e um outro Luísa Cunha, e que esse tivesse dado uma nota baixa a Kilomba, acabando assim o vencedor por ser um terceiro, Pedro Neves Marques, é motivo suplementar para a reflexão sobre se a “democraticidade” deste modelo é a mediação mais adequada, mas era regra do jogo"

 

Mas o Ministério da Cultura, através da Direcção-Geral das Artes (DGArtes), entendeu há dois anos avançar para um modelo de dupla mediação, com um convite a curadores para apresentarem propostas de artistas, depois avaliadas por um júri – dir-se-ia um sistema bem mais democrático e ainda mais imune a qualquer veleidade de intromissão da tutela, mas que se tornou, afinal, num imbróglio nunca visto.

 

De júris, sobretudo no campo do cinema, sei alguma coisa: integrei muitos, mormente em festivais, mas também em concursos de apoio à produção do então designado Instituto Português de Cinema. Sempre me espantou e incomodou como “o meio” “sabia” quem mereciam ser os escolhidos, mesmo desconhecendo em concreto os projectos e nem sequer atendendo a que havia um regulamento, com diferentes itens a considerar e uma avaliação eventualmente por pontos.

 

Há, aliás, a notar que na página da DGArtes temos acesso ao regulamento, às actas do júri, às declarações de voto e à resposta dos serviços jurídicos ao recurso interposto em sede de audiência de interessados por Bruno Leitão, o curador que propôs Grada Kilomba, mas não aos projectos em si – claro que conhecemos mais ou menos o fundamental, as características dos artistas apresentados a concurso, mas não os projectos (ou só conhecemos o de Pedro Neves Marques, porque um dos curadores – foi este o caso de haver uma dupla proponente – o deu genericamente a conhecer, quando o artista foi anunciado como vencedor), o que não impede que vá por aí toda esta algazarra, quando mais urgente era reclamar prazos exequíveis (a dupla da curadora Filipa Oliveira e da artista Fernanda Fragateiro retirou-se por isso mesmo) e orçamentos condignos.

 

Só que, havendo concursos, estes têm regras e itens, e já agora, como sei em concreto de diversos tipos de concursos e prémios, é do livre direito dos jurados seguirem estratégias para ganhar o candidato da sua escolha ou não ganhar um outro. E pode chegar-se a uma decisão por pontuações e não por maiorias. Que três dos jurados preferissem Grada Kilomba e um outro Luísa Cunha (a mais consolidada artista em concurso – os outros podem incluir-se na categoria de “emergentes” –, com um trabalho muito original em torno do som), e que esse tivesse dado uma nota baixa a Kilomba, acabando assim o vencedor por ser um terceiro, Pedro Neves Marques, é motivo suplementar para a reflexão sobre se a “democraticidade” deste modelo é a mediação mais adequada, mas era regra do jogo.

 

Não tenhamos dúvida: a sonora polémica em curso radica-se tão-só no facto de a) Grada Kilomba, a concorrente já com maior carreira internacional, ser dada à partida como a escolhida e tal não ter sucedido; e de b) ela ser mulher e afro-descendente, ou de condição pós-colonial, o que fez soar as trombetas do discurso “politicamente correcto” multiculturalista.

 

Faço esta precisão sobre estar aqui em causa o “politicamente correcto” multiculturalista porque, ao contrário da direita que o designa como único – e, aliás, o invoca por tudo e por nada –, penso que tem havido diferentes e mesmo opostos modelos de discursos e políticas “correctas”, com a comum característica de quererem impor um cânone e, nesses termos, um quadro estrito, o que supõe uma implícita censura. As cultural wars dos anos Reagan, com a sua censura das representações das sexualidades, nomeadamente “homo”, também foram, e de que lamentável maneira, um “politicamente correcto”, de direita dura. E mais exemplos há.

 

 

Sejamos claros: o nosso espaço euro-americano é de poderes branco e falocêntrico. Por outro lado, não é menos evidente que as sociedades são também multiculturais, no sentido da coexistência de diferentes origens étnicas e sexualidades. Dar expressão à diferença é de extrema importância, pois que mais do que qualquer outro campo as artes e a cultura devem ser manifestações de diversidade, mas não multiplicando a política de quotas nem se reduzindo a imperativos programáticos, que é isso o desígnio do “politicamente correcto”, este de vertente multicultural – albergue, aliás, não isento de contradições, abrangendo mulheres, representantes de situações pós-coloniais, sobretudo africanos e afro-descendentes, e LGBTI, como agora se diz (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexo, ou seja, os que não correspondem ao modelo dominante do homem binário, à luz de uma classificação dos seres num sistema binário de opostos, como masculino-feminino ou hetero-homossexual, com os papéis que esse modelo dominante lhes atribui).

 

Mas também cada vez mais sucedem em instituições culturais nalguns espaços em que a ideologia multiculturalista é mais forte, e nomeadamente no campo das artes visuais, políticas de discriminação positiva a favor de mulheres negras ou de LBGTI. Grada Kilomba, a “rejeitada”, tem já um currículo internacional exactamente por, como mulher negra, ser objecto de discriminação positiva.

 

Exceptuando as músicas urbanas, há de facto uma sub-representação gritante de artistas de origem africana nos mundos da arte em Portugal – donde a potencial importância da novel União Negra das Artes –, mas legitimações e imposições só por um programa “politicamente correcto” são inaceitáveis. E é o que sucede nesta polémica.

 

Abrindo as hostilidades, Ana Teixeira Pinto apontou “A Ferida”, acusando a decisão do júri de ser “misógina e racista”. No seu enviesamento, esse texto publicado no suplemento Ípsilon era delirante e fanático.

 

"Exceptuando as músicas urbanas, há de facto uma sub-representação gritante de artistas de origem africana nos mundos da arte em Portugal – donde a potencial importância da novel União Negra das Artes –, mas legitimações e imposições só por um programa “politicamente correcto” são inaceitáveis"

 

Comparar o choque perante a não-escolha de Grada Kilomba ao choque perante a absolvição de um adolescente norte-americano branco acusados de matar dois manifestantes anti-racismo é doentio.

 

Invocar como exemplo comparativo a exclusão da deputada Joacine Katar Moreira deixa suposto que, contra todas as normas da democracia, ela tem um “direito divino” de continuar deputada só por ser mulher e negra (Rui Tavares que se cuide: como o Livre expulsou Joacine, ainda vai também ser acusado de “misógino e racista”).

 

Enfim, o final é de tal ordem que merece ser transcrito na íntegra: “Escolher Grada Kilomba para representar Portugal em Veneza não resolveria o problema da desintegração social, mas abriria uma porta, uma perspectiva, a possibilidade de imaginar um futuro um pouco diferente, um pouco, mesmo que marginalmente, melhor. Foi essa possibilidade que o júri nos negou. No seu lugar fica a ferida, aberta, a que Portugal recusa atentar.”

 

Como Miguel Wandschneider já explicou em artigo igualmente publicado no Ípsilon, no texto de Ana Teixeira Pinto a noção de representação nacional “surge hipostasiada como representação política, isto é, como representação artística sobredeterminada por critérios de natureza política”. E cito ainda: “O seu texto não poderia ser mais eficaz na legitimação da instrumentalização política da representação portuguesa na Bienal de Veneza — em última instância, de uma situação em que a arte contemporânea e os artistas são postos ao serviço do Estado.”

 

O que ela sugere, e queria que tivesse sucedido com Grada Kilomba, era que um artista representasse uma sociedade e eventualmente uma política, numa inaceitável instrumentalização da arte, supondo mesmo uma “Arte do Estado” — uma lógica profundamente totalitária.

 

A Ferida​, título também da proposta que Bruno Leitão e Grada Kilomba levaram a concurso, abriu a boceta de Pandora, com abaixo-assinados, como o subscrito nomeadamente pelo SOS Racismo, a Batoto Yetu, a Djass — Associação de Afrodescendentes ou o Núcleo Anti-Racista do Porto. Mas o que é isto? Eu não reconheço àquelas associações qualquer legitimidade para intervirem nesta complexa questão, e acho-o um atentado à liberdade de expressão.

 

Por coincidência, mas não certamente acaso, o último Ípsilon, o de balanço de 2021, abria com um texto intitulado “O ano em que as políticas de identidade entraram pela porta principal”, e nele não deixava de estar escrito que essas políticas também são um “terreno armadilhado”. Está à vista. Tenhamos cuidado e enfrentemos a lógica de chantagem deste “politicamente correcto”.

 

Artigo corrigido: no seu artigo de opinião, Ana Teixeira Pinto refere-se à absolvição de um adolescente branco acusado de matar dois manifestantes anti-racismo, e não à absolvição de dois polícias brancos acusados de matar um negro

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