segunda-feira, 12 de julho de 2021

Cá de baixo vos contemplamos

 

IMAGEM DE OVOODOCORVO


EDITORIAL

Cá de baixo vos contemplamos

 

Lá do alto, Branson tanto pôde apreciar a maravilha do universo como olhar para um planeta em sofrimento climatérico, assolado por uma pandemia

 


David Pontes

11 de Julho de 2021, 21:00

https://www.publico.pt/2021/07/11/opiniao/editorial/ca-baixo-contemplamos-1969995

 

No domingo, o magnata Richard Branson, durante cerca de quatro minutos, teve a oportunidade de contemplar, como poucos ainda o puderam fazer, este ponto azul que é a nossa casa comum. A sua viagem inaugura a era do turismo espacial, ultrapassando na corrida os planos de outros multimilionários, como Jeff Bezos ou Elon Musk.

 

Lá do alto, Branson tanto pôde apreciar a maravilha do universo como olhar para um planeta em sofrimento climatérico, assolado por uma pandemia que tira vidas e empobrece milhões, mas que, simultaneamente, ajudou a criar mais milionários e enriquecer ainda mais os existentes. As centenas de reservas feitas para as suas viagens, com bilhetes a 210 mil euros, mostram bem o potencial do mercado.

 

Olhando cá de baixo, o empresário simboliza certamente o engenho do espírito humano, capaz de ultrapassar fronteiras se a isso devotar o seu espírito criativo. A humanidade avança muitas vezes graças a sonhadores como estes. Mas a distância que vai entre os dois olhares é uma imagem demasiado poderosa para não evocar o fosso que vai entre todos aqueles a quem a pandemia atirou um pouco mais para baixo —​ só em Portugal, terão sido 400 mil — e os que embarcam em viagens recreativas ao espaço e que pertencem ao 1% que viram durante o ano de 2020 a sua fatia da riqueza mundial aumentar mais um ponto percentual, para 45%.

 

O alargar do fosso entre ricos e pobres corrói a coesão social, com que se erguem sociedades mais equilibradas e mais justas, numa tendência que se pode agravar em tempos já de si polarizados politicamente. A crise financeira de 2008 criou fenómenos como o Tea Party nos Estados Unidos e na Europa ainda se sentem os ecos da radicalização que sobreveio, mas os efeitos económicos fizeram-se sentir tanto nos ricos como nos pobres, o que não sucedeu com a pandemia. Sem medidas correctoras, imagine-se o que pode sair da crise que ainda vivemos.

 

É por isso salutar que, como constata a revista The Economist, os governadores dos bancos centrais — que com as baixas taxas de juro ajudaram indirectamente muitas fortunas a crescer — tenham começado a falar cada vez mais de desigualdade e a tê-la como uma das suas preocupações, em vez de simplesmente a atribuir a fenómenos como a globalização ou a automação.

 

É bom que ricos e poderosos se preocupem, que haja, como diz Mário Centeno ao PÚBLICO, um “grande sentido de pragmatismo”, porque será sempre melhor resolver os problemas dentro do sistema do que deixar espaço para voltarmos a trilhar, no século XXI, as utopias delirantes ou os populismos simplistas que fizeram a desgraça do século XX.

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