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EDITORIAL
Cá de baixo vos contemplamos
Lá do alto, Branson tanto pôde apreciar a maravilha do
universo como olhar para um planeta em sofrimento climatérico, assolado por uma
pandemia
David Pontes
11 de Julho de
2021, 21:00
https://www.publico.pt/2021/07/11/opiniao/editorial/ca-baixo-contemplamos-1969995
No domingo, o
magnata Richard Branson, durante cerca de quatro minutos, teve a oportunidade
de contemplar, como poucos ainda o puderam fazer, este ponto azul que é a nossa
casa comum. A sua viagem inaugura a era do turismo espacial, ultrapassando na
corrida os planos de outros multimilionários, como Jeff Bezos ou Elon Musk.
Lá do alto,
Branson tanto pôde apreciar a maravilha do universo como olhar para um
planeta em sofrimento climatérico, assolado por uma pandemia que tira vidas e
empobrece milhões, mas que, simultaneamente, ajudou a criar mais milionários e
enriquecer ainda mais os existentes. As centenas de reservas feitas para as
suas viagens, com bilhetes a 210 mil euros, mostram bem o potencial do mercado.
Olhando cá de
baixo, o empresário simboliza certamente o engenho do espírito humano, capaz de
ultrapassar fronteiras se a isso devotar o seu espírito criativo. A humanidade
avança muitas vezes graças a sonhadores como estes. Mas a distância que vai
entre os dois olhares é uma imagem demasiado poderosa para não evocar o fosso
que vai entre todos aqueles a quem a pandemia atirou um pouco mais para baixo
— só em Portugal, terão sido 400 mil — e os que embarcam em viagens
recreativas ao espaço e que pertencem ao 1% que viram durante o ano de 2020 a
sua fatia da riqueza mundial aumentar mais um ponto percentual, para 45%.
O alargar do
fosso entre ricos e pobres corrói a coesão social, com que se erguem sociedades
mais equilibradas e mais justas, numa tendência que se pode agravar em tempos
já de si polarizados politicamente. A crise financeira de 2008 criou fenómenos
como o Tea Party nos Estados Unidos e na Europa ainda se sentem os ecos da
radicalização que sobreveio, mas os efeitos económicos fizeram-se sentir tanto
nos ricos como nos pobres, o que não sucedeu com a pandemia. Sem medidas
correctoras, imagine-se o que pode sair da crise que ainda vivemos.
É por isso
salutar que, como constata a revista The Economist, os governadores dos bancos
centrais — que com as baixas taxas de juro ajudaram indirectamente muitas
fortunas a crescer — tenham começado a falar cada vez mais de desigualdade e a
tê-la como uma das suas preocupações, em vez de simplesmente a atribuir a
fenómenos como a globalização ou a automação.
É bom que ricos e
poderosos se preocupem, que haja, como diz Mário Centeno ao PÚBLICO, um “grande
sentido de pragmatismo”, porque será sempre melhor resolver os problemas dentro
do sistema do que deixar espaço para voltarmos a trilhar, no século XXI, as
utopias delirantes ou os populismos simplistas que fizeram a desgraça do século
XX.
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