A perigosa obsessão nuclear da Turquia
Mesmo sendo apenas para fins civis, a obsessão nuclear da
Turquia é perigosa em termos de segurança humana e ambiental. Se futuramente
for militar também — o que não é uma hipótese absurda —, a Europa terá mais um
grave problema nuclear às suas portas.
José Pedro
Teixeira Fernandes
12 de Julho de
2021, 7:40
https://www.publico.pt/2021/07/12/mundo/opiniao/perigosa-obsessao-nuclear-turquia-1969956
1. Se
perguntarmos às grandes potências mundiais, membros permanentes do Conselho de
Segurança das Nações Unidas, se desejam ver outros Estados no mundo com um
poder nuclear-militar, certamente a resposta unânime será um rotundo não.
Apesar da política internacional ser um domínio marcado pela falta de sinceridade
— e por declarações ambíguas e mutáveis — tal resposta provavelmente traduz uma
oposição real. Por isso, perceber a forma como vários Estados — Índia,
Paquistão, Israel e Coreia do Norte — conseguiram transformar-se em potências
nucleares-militares à margem do Tratado de não Proliferação das Armas Nucleares
(TNP), é algo particularmente importante. (Apenas no caso da África do Sul
houve uma reversão voluntária desse programa, acedendo depois ao TNP.)
Permite-nos compreender como é possível contornar os obstáculos e, mais cedo ou
mais tarde, chegar ao nuclear-militar. Quatro estratégias merecem aqui
particular atenção: (i) a realização de avanços críticos num adequado timing
político; (ii) o aproveitamento da proximidade com uma potência nuclear
estabelecida e o tirar partido das rivalidades entre grandes potências; (iii) a
obtenção do máximo possível de tecnologia nuclear de duplo uso civil-militar;
(iv) negociar para ganhar tempo e obter vantagens em troca.
2. Relativamente
à primeira estratégia, o caso clássico é o da Coreia do Norte. Quando em 2003 o
mundo estava distraído com a invasão norte-americana do Iraque, a Coreia do
Norte dava os passos decisivos, incluindo a saída do TNP, para chegar ao seu
objectivo nuclear-militar. A segunda estratégia é também uma das mais usadas.
Ocorreu no caso de Israel, que usou a proximidade com a França após a crise do
canal do Suez de 1956 e, mais tarde, com os EUA. Algo similar aconteceu com o
Paquistão e a Coreia do Norte, onde a proximidade política com a China foi instrumental
para obterem tecnologia e assistência técnica. Quanto à Índia e Paquistão
jogaram com as rivalidades soviético-americanas da Guerra-Fria. A Índia
conseguiu um certo apoio tecnológico e, sobretudo, benevolência política da
União Soviética, que via na Índia um contrapeso à tríade nuclear ocidental —
EUA, Reino Unido e França. O Paquistão obteve a complacência política
norte-americana, numa altura em que os EUA precisavam do país para uma guerra
por procuração contra os soviéticos no Afeganistão. Quanto à terceira
estratégia, aproveita-se do duplo uso civil-militar da tecnologia de fissão
nuclear, a qual para fins civis é conforme à legalidade internacional. Acrescem
ainda as redes ilegais de produtos e de tecnologia nuclear, sendo o caso mais
conhecido a rede implementada pelo cientista nuclear paquistanês Abdul Qadeer
Khan. No caso da quarta e última estratégia, a Coreia do Norte e o Irão mostram
com se pode ganhar tempo em negociações internacionais e obter vantagens em
troca.
3. No actual
Médio Oriente, para além do Irão, existe uma declarada ambição nuclear na
Turquia. Há ainda casos como a Arábia Saudita aqui não tratados. No caso da
Turquia, se levarmos a sério as declarações de Recep Tayyip Erdogan —
frequentemente uma mera retórica bombástica — somos levados a pensar que a
ambição nuclear turca poderá incluir finalidades militares. Em 2019, criticou a
actual ordem mundial perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, afirmando,
entre outras coisas, que o TNP proíbe Estados como a Turquia de desenvolverem
armas nucleares, mas ignora outros Estados que dispõem de tais armas à margem
do TNP. Pouco tempo antes, para consumo interno, no Fórum Económico da Anatólia
Central, tinha afirmado que era inaceitável que as grandes potências com armas
nucleares proibissem a Turquia adquirir o seu próprio armamento nuclear. Mas há
constrangimentos importantes para esse caminho. A Turquia é parte do TNP e
ratificou o Tratado de Interdição Completa de Ensaios Nucleares. Na base
aérea de Incirlik, situada no seu território, existe armamento nuclear dos
EUA-NATO que está aí desde os tempos da Guerra Fria (na altura para a proteger
da ameaça russa). Todavia, pode ser visto como um resquício de outra época,
sendo do interesse dos EUA retirarem esse armamento.
4. Nesta altura a
Turquia tem em marcha um programa nuclear, mas para fins civis. Prevê a
construção de três centrais nucleares: uma em Akkuyu, já em fase avançada de
edificação, a qual está situada no litoral mediterrânico perto da cidade de
Mersin, a menos de 100 km da ilha de Chipre; outra em Sinop no litoral do Mar
Negro, a Norte; e a terceira em Igneada na Trácia Oriental, também na zona
costeira do Mar Negro e a escassas dezenas de quilómetros da Bulgária. Na
explicação do Governo da Turquia a energia nuclear visa reduzir a dependência
face aos fornecedores estrangeiros — a Rússia e o Irão. Todavia, os
investimentos feitos na última década no sector da produção da energia e o
crescimento económico baixo dos últimos anos não sugerem a rentabilização do investimento
em centrais nucleares. Também o argumento da independência energética é pouco
convincente. É a Rosatom, a empresa estatal de energia nuclear da Rússia, quem
a está a construir a central de Akkuyu e fornecerá o combustível nuclear
durante toda a vida útil, assegurando a sua operacionalização. Mais estranho
ainda, a central nuclear em Akkuyu está a ser feita numa zona costeira
mediterrânica turística situada entre a zona de falha geológica da Anatólia
oriental e a zona de falha da Anatólia central. Ao risco de danos ecológicos ao
acresce o histórico nada tranquilizador de sismos graves do país.
5. A pouca
racionalidade económica do investimento no nuclear ganha racionalidade
estratégica se o objectivo último for também militar. Para além das
referidas declarações de Erdogan, há vários indícios que apontam nesse sentido,
aproveitando a Turquia a proximidade com uma potência nuclear estabelecida
(EUA) e tirando partido das rivalidades entre grandes potências. O jogo que a
Turquia faz com os EUA-NATO e a Rússia — por exemplo, com a aquisição do
sistema de defesa aérea russo S-400 e o know-how de produção de energia
nuclear —, sugere querer explorar a rivalidade entre estas duas grandes
potências a seu favor. O objectivo é extorquir o máximo de concessões de cada e
usar uma para aplacar a outra. Existem ainda sinais de que procura adquirir
tecnologia nuclear de duplo uso usando um timing político que lhe é favorável
(as atenções estão concentradas no nuclear do Irão). Acresce a intensificação
da cooperação político-militar com o Paquistão, algo que é preocupante pelo
histórico de proliferação nuclear desse país. Mesmo sendo apenas para fins
civis, a obsessão nuclear da Turquia é perigosa em termos de segurança humana e
ambiental. Se futuramente for militar também — o que não é uma hipótese absurda
—, a Europa terá mais um grave problema nuclear às suas portas.
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