ANÁLISE
A Europa tem um problema, que deixou de poder ignorar
Estamos perante um novo braço-de-ferro no qual,
provavelmente, Orbán acabará por perceber que é o lado mais fraco. Até lá, a UE
pode recorrer a vários mecanismos de pressão e previstos nos tratados, mas
também à regra da condicionalidade do acesso aos fundos europeus.
Teresa de Sousa
10 de Julho de
2021, 20:30
https://www.publico.pt/2021/07/10/mundo/opiniao/europa-problema-deixou-ignorar-1969862
1. Em 2000 houve
um breve episódio europeu em torno da questão dos valores fundamentais que
estão na génese da integração europeia. Portugal presidia à então Comunidade
Europeia. A Europa era apenas a 15. A Áustria tinha aderido há cinco anos, na
sequência do fim da Guerra Fria. Um partido de extrema-direita austríaco
ganhava força e chegava ao Governo conservador de Wolfgang Schüssel, provocando
uma onda de indignação e de críticas entre os seus pares europeus. A Áustria
sofreu sanções essencialmente de natureza diplomática. Foi há 21 anos. A extrema-direita
já voltou a integrar coligações de governo em Viena. Lideradas pelos mesmos
conservadores, e nada aconteceu. Há, no entanto, uma enorme diferença entre o
que aconteceu em 2000 e o que se passa hoje na Hungria, na Polónia e pode vir a
passar-se na Eslovénia. Na Áustria, a passagem da extrema-direita pelo governo
nunca se traduziu em leis que pusessem em causa os princípios básicos em que
assenta a democracia liberal, incluindo as regras de funcionamento do Estado de
direito. Na Polónia ou na Hungria, essas regras foram desvirtuadas por leis que
põem em causa a independência dos tribunais ou a liberdade de imprensa. O
primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, no poder há 11 anos, desafia
publicamente os fundamentos das democracias liberais europeias, nas quais os
direitos e liberdades individuais são tão importantes como o voto popular. O
mesmo conservadorismo iliberal está presente na forma como o Partido da Lei e
da Justiça (PiS) governa a Polónia.
2. Quando da
última revisão dos tratados, em 2007, a União Europeia teve o cuidado de
inscrever no Tratado de Lisboa um artigo segundo o qual o Conselho pode
“verificar a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores
referidos no Artigo 2.º por parte de um Estado-membro”. O mesmo artigo estabelece
os mecanismos de punição desse Estado. O Artigo 2.º enumera esses valores: “do
respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do
Estado de Direito e dos Direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas
pertencentes a minorias”. (Uma previsão semelhante já estava contemplada no
Tratado de Amesterdão, aprovado pelos líderes europeus em 1997).
Raras vezes estes
artigos do Tratado necessitavam de ser referidos. Eram um dado adquirido. Hoje
são matéria de debate intenso no Conselho Europeu, como aconteceu no último da
presidência portuguesa. A presidente da Comissão, Ursula von der Leyen,
invocou-os nos primeiros actos oficiais da presidência eslovena do Conselho da
União Europeia. A questão tornou-se, pela primeira vez, num problema sério que
a Europa não pode deixar de enfrentar.
3. O último
embate em torno dos direitos fundamentais aconteceu, uma vez mais, com a
Hungria, quando o Parlamento de Budapeste aprovou uma nova lei considerada
discriminatória dos direitos das pessoas LGBTI. Viktor Orbán, que não perde uma
ocasião para confrontar Bruxelas, não hesitou em travar mais uma “batalha” pela
“soberania” do seu país, argumentando que as políticas de educação e de família
são estrita competência nacional. A Comissão, guardiã dos tratados, já lhe
pediu explicações sobre a lei em questão e pode vir a desencadear mais um
procedimento ao abrigo do Artigo 7.º contra a Hungria. Orbán já respondeu que
não tenciona mudar a lei.
Estamos perante
um novo braço-de-ferro no qual, provavelmente, o primeiro-ministro húngaro
acabará por perceber que é o lado mais fraco. Até lá, a União Europeia pode
recorrer a vários mecanismos de pressão e previstos no Tratado, mas também à
regra da condicionalidade do acesso aos fundos europeus provenientes do
orçamento plurianual. De acordo com esta regra, esse acesso pode ser suspenso,
caso o Estado em questão viole as regras do Estado de direito. O próprio poder
de fiscalização da Comissão sobre os Planos Nacionais que dão acesso ao novo
Fundo de Recuperação dá-lhe ampla margem de manobra para pressionar a Hungria
ou outro Estado que infrinja os valores fundamentais por que se rege a União.
Esta semana, o Parlamento Europeu manifestou-se por uma larga maioria a favor
da aplicação deste princípio de condicionalidade a Budapeste, que tem uma
vantagem sobre as sanções previstas no Artigo 7.º do Tratado, que devem ser
aprovadas no Conselho por unanimidade menos um – o país sancionado, que
encontra sempre um “amigo” para vetar a decisão. A condicionalidade exige
apenas maioria qualificada.
O que fará Orbán
é ainda uma incógnita. O que se sabe até agora é que o Plano Nacional de
Recuperação da Hungria deveria ter sido aprovado pela Comissão no passado dia 8
(antes de ir ao Conselho), com a habitual visita de Von der Leyen a Budapeste.
Nada disto aconteceu. A Comissão já fez saber que pretende mais esclarecimentos
do Governo húngaro sobre vários pontos do seu plano. Tem duas opções: pode dar
mais tempo à Hungria antes da aprovação final; ou pode enviá-lo para o Conselho
com uma recomendação de chumbo. É dinheiro suficiente para o primeiro-ministro
húngaro pensar duas vezes. Não é uma solução definitiva porque não vai à raiz
do problema: a Europa é uma associação livre de democracias, que aceitam
partilhar a sua soberania de acordo com normas comuns estabelecidas por
tratados, não sendo, portanto, compatível com desvios iliberais ou autoritários
de qualquer dos seus Estados-membros.
4. No dia 1 de
Julho, a pequena Eslovénia (2 milhões de habitantes) assumiu a presidência
rotativa do Conselho da União Europeia. O seu primeiro-ministro, Janez Jansa, é
um admirador confesso de Viktor Orbán e de Donald Trump. Os primeiros actos
oficiais da presidência eslovena não foram propriamente animadores. Jansa quis
demonstrar duas coisas perante os comissários e perante a imprensa estrangeira.
Primeiro, que não viola as regras do Estado de direito, nem em relação à
independência dos tribunais nem à liberdade de imprensa, embora antes do início
da presidência tenha cortado as verbas à agência de notícias eslovena. Segundo,
que a União tem “dois pesos e duas medidas”, quando se trata dos países
ocidentais ou dos países de Leste. Invoca a conversão mais recente destes
últimos à democracia para acusar a União de falta de compreensão pelos seus
problemas específicos. Insiste, como faz de resto o PiS na Polónia, que a
infiltração dos “comunistas” nos tribunais justificam medidas vistas como
ataques à sua independência. Até agora, o seu Governo ainda não fez
aprovar nenhuma lei que viole as regras do Estado de direito. Ainda conta com o
apoio do PPE (centro-direita), no qual o seu partido tem assento. Orbán só
abandonou o PPE há seis meses, quando percebeu que ia ser expulso.
Cada caso é um
caso. O problema é o mesmo. Até que ponto a União pode ser tolerante com estes
novos “homens fortes iliberais” para quem a democracia se limita ao voto. A
resposta não pode ser eternamente adiada.
Sem comentários:
Enviar um comentário