SERVIÇO DE
ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS
“Não foi preciso bater no homem porque ele já estava numa
posição de fragilidade”, defende-se inspector do SEF
Inspectores do SEF foram “bodes expiatórios” sem direito
a “presunção de inocência”, diz defesa. Julgamento decorre em Lisboa, quase um
ano depois da morte de Ihor Homenyuk no centro do aeroporto de Lisboa.
Joana Gorjão
Henriques
2 de Fevereiro de
2021, 13:02
Chegaram ao
tribunal pelo seu pé, sem escolta policial, apesar de estarem em prisão
domiciliária, confundindo-se com as dezenas de pessoas à porta do Tribunal
Criminal de Lisboa, no Campus de Justiça, a maioria jornalistas. Os três
inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), acusados do
homicídio de Ihor Homenyuk no dia 12 de Março no centro de instalação
temporária (CIT) do aeroporto, ficaram sentados no banco reservado aos
arguidos, lado a lado, mas com a distância de segurança. Foi a primeira vez que
falaram desde que a 30 de Março ficaram em prisão preventiva.
Ihor Homenyuk
morreu a 12 de Março de 2020, no Centro de Instalação Temporária do Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras do Aeroporto de Lisboa, onde esteve manietado, numa
sala, durante pelo menos 15 horas.
Luís Silva foi o
primeiro a falar, referiu trabalhar na segunda linha do aeroporto onde, a 12 de
Março de 2020, diz ter entrado às 6h. Segundo contou em tribunal, foi chamado
pelo inspector-chefe para assistir um indivíduo que estava a ter um
“comportamento autodestrutivo”. “Quando chegámos ao CIT [Centro de Instalação
Temporária], os seguranças abriram-nos a porta e alertaram-nos que estava lá um
cidadão violento que tinha tentado fugir durante a noite. Um segurança alegou
que ele tinha atirado um sofá e que gostava de morder”, disse Luís Silva. “Quando
abrimos a porta, [Ihor Homenyuk] estava deitado no chão, com fita-cola nos pés
e nos braços e mãos presas atrás das costas. Estava deitado no chão e a tentar
rebentar a fita contra a parede — uma fita castanha com que se prende os
caixotes — que estava esticada em fio.”
O inspector Luís
Silva alega que o mais demorado durante a intervenção — que, segundo a
acusação, durou cerca de 20 minutos — foi a retirada das fitas das calças de
ganga de Ihor Homenyuk. Segundo a sua versão, “o passageiro” estava a tentar
“pontapear” e a gritar. Luís Silva levou umas fitas de tecido, mas como Ihor
Homenyuk “conseguiu rebentar as algemas médicas”, acabaram por o algemar com as
metálicas. “Perante o comportamento dele, foi necessário ficar com as algemas
de metal que eram minhas”, disse. Referiu também que o inspector de turno
entrou na sala a dada altura “e presenciou o nosso comportamento”.
Questionado pelo
presidente do colectivo de juízes, Rui Coelho, o arguido disse que não tinha
tido contacto com lhor Homenyuk antes disso. Referiu ainda que não havia nada
dentro da sala onde algemar Ihor, já que os seguranças tinham retirado todos os
móveis e objectos devido ao alegado comportamento agressivo do “passageiro”,
como lhe chamou durante o seu depoimento. Explicou que no CIT há muitas
situações que podem “descambar” porque há imigrantes que saem da cadeia para
serem deportados e em “determinadas circunstâncias” é preciso actuar: “Temos
passageiros que comem lâmpadas fluorescentes para não saírem do país”.
Recorde-se que,
segundo a investigação, à hora em que os arguidos contactaram com Ihor
Homenyuk, pelas 8h15, ele já tinha tomado um calmante.
Já a procuradora
Maria Leonor Machado quis saber por que é que Luís Silva fechou a porta da sala
dos Médicos do Mundo, onde se encontravam, durante a intervenção. “Porque
tinham dito que o passageiro já tinha tentado fugir.”
Bruno Sousa,
outro dos arguidos, referiu igualmente ter sido avisado pelo coordenador de que
o passageiro estava a ter comportamentos violentos. Mas afirmou: “Foi-nos
omitida a questão do senhor já estar completamente imobilizado com fita
adesiva. Obviamente que é um meio inadmissível.” A algemagem com fita adesiva
tinha sido feita durante a noite por seguranças. Descreveu também Ihor Homenyuk
“a tentar soltar-se através da parede”. E respondeu sobre se bateu nele quando
o tentaram manietar: “Não foi preciso bater no homem porque ele já estava numa
posição de fragilidade.”
Luís Silva viu um
hematoma na face de Ihor, “uma grande marca na testa e estava extremamente
exaltado”; Duarte Laja também viu “marcas, escoriações nos braços”. Disse que
Ihor pontapeou e esperneou, sendo ele alvo “de investidas e pontapés”. Para o
imobilizar, refere que colocou “pressão em cima dos joelhos” de Ihor Homenyuk.
Também Bruno Sousa viu as mãos a ficarem roxas e o braço com zonas “bastante
marcadas”.
“Uma vez que
entrámos, nunca esteve calmo. Estava algemado, sentado e falava na língua dele,
às vezes ficava calado.” “O tom de voz?”, questionou o juiz. “Era de quem estava
alterado.” Depois da intervenção, Duarte Laja disse que lhe foi transmitido,
mais tarde, que Ihor “estava bem e calmo” e presumiu que tinha sido
desalgemado.
Duarte Laja disse
que não tinha escrito nada sobre a sua intervenção em relatório a seguir, mas
fê-lo depois de o chefe lho pedir. No relatório de ocorrência do SEF não vem
referido nenhum sinal de agressão ou de danos físicos em Ihor Homenyuk. Esse
relatório de ocorrência escrito à mão coloca a intervenção dos inspectores às
9h15, quando foi uma hora antes.
Advogados acusam:
“Foram bodes expiatórios"
Nas suas
intervenções, os advogados dos três arguidos criticaram a investigação do
Ministério Público (MP) e acusaram comentadores e os media de terem feito um
julgamento na praça pública — os inspectores remeteram-se ao silêncio até
agora, e só recentemente é que juntaram ao processo a sua contestação.
Nas palavras do
advogado Ricardo Sá Fernandes, que defende Bruno Sousa, os inspectores
tornaram-se “os bodes expiatórios”, sem direito a “presunção de inocência”.
Também Maria Manuel Candal, que defende Luís Silva, criticou o facto de ninguém
ter dado o “benefício da dúvida”, tal como fez Ricardo Serrano Vieira, que
representa Duarte Laja.
Ricardo Sá
Fernandes considerou serem “questões fundamentais” apurar se as lesões foram
provocadas de forma intencional ou se, pelo contrário, foram resultado de
factos acidentais; e se, a serem intencionais, foram praticadas pelos arguidos
que estiveram menos de meia hora com Ihor Homenyuk quando vários foram os
profissionais que se cruzaram com ele entre 10 e 12 de Março. E acusou: “Foi
arranjada em Março uma explicação para o que tinha acontecido” e os arguidos
foram os “bodes expiatórios”.
O MP acusa os
três inspectores em final de Setembro, e Luís Silva, de 44 anos, Bruno Sousa,
de 42, e Duarte Laja, de 48 anos estão em prisão domiciliária desde 30 de
Março. Luís Silva e Duarte Laja responderão ainda pelo crime de posse de arma
proibida.
MP só acusa
inspectores
O MP não acusou
mais ninguém. A investigação da Polícia Judiciária apontava já nesta direcção,
ilibando os seguranças ou qualquer outro interveniente. Mas, em despacho, o MP
mandou extrair certidão com inquérito para averiguar a prática de outros
crimes, nomeadamente falsificação de documento e a responsabilidade de mais
intervenientes. Esta certidão abre, assim, o leque a outras investigações.
O despacho
conclui que, além dos arguidos, “outros inspectores do SEF tudo fizeram para
omitir” os factos ao MP, “chegando ao ponto de informar o magistrado do MP que
o ofendido foi acometido de doença súbita”. No seu relatório sobre o sucedido,
a Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI), a polícia dos polícias, vai
mais longe e implica 12 inspectores, seguranças e até o enfermeiro. A descrição
no relatório refere agressões brutais pelos três inspectores, a ausência de
qualquer preocupação por parte dos seguranças e inspectores quanto ao estado de
saúde de Ihor Homenyuk e até da satisfação das suas necessidades fisiológicas
mais básicas; fala também em negligência e negação na prestação de auxílio
permitindo que Homenyuk ficasse manietado de “forma indigna e desumana” durante
horas, tanto da parte de inspectores como de seguranças.
Além disso,
aponta o dedo ao enfermeiro que, acreditando que Homenyuk deveria ser observado
no hospital e, percebendo que o SEF não o iria fazer, não equacionou chamar o
INEM ou providenciar o transporte — e isto depois de ver que estava manietado
com fita adesiva. Num relatório de 70 páginas, a IGAI afirmava que não restam
dúvidas de que as lesões traumáticas que constam do relatório da autópsia só
podiam ter sido perpetradas pelos três arguidos.
A IGAI não tem
dúvidas de que houve uma acção concertada para encobrimento dos factos, com a
omissão de informações no relatório de ocorrência que dá a sua morte como
natural, e demonstra a intenção de ocultar a verdade e de obstruir a instrução
de processos de natureza criminal. Concluiu ainda que, desde que barrou a
entrada a Ihor Homenyuk a 10 de Março, o SEF cometeu várias irregularidades —
quem recusou a entrada não tinha “competência para a decisão”.
Na acusação, o
procurador do MP, Óscar Ferreira, critica também seguranças e outros
inspectores, além dos arguidos, mas optou por não os constituir como arguidos.
Sublinha que, apesar de ter sido conduzido ao Hospital de Santa Maria, e de o
SEF ter comunicado tardiamente à Embaixada da Ucrânia que Ihor Homenyuk ia
embarcar, nenhum responsável fez qualquer contacto com a embaixada para que
fosse prestada assistência médica e apoio jurídico.
Também refere que
um enfermeiro (que assistiu o cidadão por volta da 1h30 de dia 12 de Março)
sugeriu aos inspectores do SEF que o transportassem de novo ao hospital, depois
de administrar um calmante, recomendação que não foi seguida. E, perante sinais
de agitação de Ihor Homenyuk, sem que tivessem “autorização e competência para
tal”, dois vigilantes “algemaram-no com fita adesiva à volta dos tornozelos e
dos braços” e chamaram de novo os inspectores ao local. Há mais críticas aos
inspectores do SEF que, durante a madrugada, pelas 4h41, viram o cidadão
ucraniano imobilizado: substituíram as algemas de fita-cola por lençóis,
“agravando dessa forma o seu suposto estado de ansiedade, o que constitui procedimento
anómalo, dado que os passageiros com ordem de retorno não podem nem devem ser
privados da liberdade, como era o caso”.
Procedimentos do
SEF questionados
O despacho de
acusação do MP coloca interrogações a vários procedimentos do SEF desde o
momento em que Homenyuk foi impedido de entrar em Portugal. Sublinha que os
ucranianos estão isentos de visto de turista, mas, mesmo assim, Ihor Homenyuk
foi barrado, e refere que Portugal tem acolhido cidadãos ucranianos. Questiona
a entrevista que lhe foi feita e que determinou a decisão do SEF, já que foi
efectuada por um inspector que não domina a língua ucraniana e por uma
inspectora que “dominará a língua ucraniana, mas que, sendo funcionária, não
estava habilitada, por razões de imparcialidade, a efectuar qualquer tradução,
existindo dúvidas sérias sobre se o referido cidadão declarou que pretendia
trabalhar em Portugal”.
O despacho
reproduz o que a investigação da PJ há tinha apurado: os arguidos chegaram à
sala onde estava Homenyuk pelas 8h15 e um deles disse para a segurança:
“Atenção: você não vá colocar aí os nossos nomes, OK?”
Alegadamente,
Luís Silva trazia um bastão extensível e Bruno Sousa um par de algemas. Depois
de o algemarem com as mãos atrás das costas e de lhe amarrarem os cotovelos com
ligaduras, desferiram-lhe socos e pontapés. Já com Homenyuk prostrado no chão, continuaram a dar-lhe
pontapés e pancadas no tronco, “enquanto, aos gritos, lhe exigiam que
permanecesse quieto”. Vinte minutos depois, abandonaram o local e disseram:
“Agora ele está sossegado.” Um deles afirmou: “Isto hoje... já nem preciso de
ir ao ginásio.”
O MP concluiu que
os inspectores deixaram o ofendido num “estado de grande prostração e
algemado”, sabendo que, como membros de um órgão de polícia criminal, “tinham o
poder de impedir que os vigilantes actuassem e, face ao temor reverencial,
denunciassem a terceiros o que se tinha passado na sala”.
O MP diz ainda,
com base no relatório de autópsia, que “as fracturas dos arcos costais
associadas às demais lesões contundentes foram provocadas pela aplicação de um
peso tal nas costas” de Homenyuk que levou “o tórax a esmagar-se contra o
solo”. E acrescenta: “Os pontapés e pancadas provocaram a fractura dos arcos
costais, potenciados pela imobilização do ofendido, com os braços manietados
nas costas, em posição de decúbito ventral, [que] causaram a violenta
constrição do tórax, promovendo a asfixia mecânica que foi causa directa e
necessária da morte.”
Os inspectores,
sublinha o MP, sabiam, pela formação profissional que lhes é ministrada, que
manietar alguém “com os braços atrás das costas e deitado em posição de
decúbito ventral” pode provocar “dificuldades respiratórias” e “que, por essa
razão, poderiam causar-lhe a morte”. Agiram em “comunhão de esforços e
intentos”, sujeitando-o “a um tratamento desumano e violando gravemente os
deveres inerentes às suas funções”.
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