quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

“Não foi preciso bater no homem porque ele já estava numa posição de fragilidade”, defende-se inspector do SEF

 


SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS

“Não foi preciso bater no homem porque ele já estava numa posição de fragilidade”, defende-se inspector do SEF

 

Inspectores do SEF foram “bodes expiatórios” sem direito a “presunção de inocência”, diz defesa. Julgamento decorre em Lisboa, quase um ano depois da morte de Ihor Homenyuk no centro do aeroporto de Lisboa.

 


Joana Gorjão Henriques

2 de Fevereiro de 2021, 13:02

https://www.publico.pt/2021/02/02/sociedade/noticia/-nao-preciso-bater-homem-ja-posicao-fragilidade-defendese-inspector-sef-1948940

 

Chegaram ao tribunal pelo seu pé, sem escolta policial, apesar de estarem em prisão domiciliária, confundindo-se com as dezenas de pessoas à porta do Tribunal Criminal de Lisboa, no Campus de Justiça, a maioria jornalistas. Os três inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), acusados do homicídio de Ihor Homenyuk no dia 12 de Março no centro de instalação temporária (CIT) do aeroporto, ficaram sentados no banco reservado aos arguidos, lado a lado, mas com a distância de segurança. Foi a primeira vez que falaram desde que a 30 de Março ficaram em prisão preventiva.

 

Ihor Homenyuk morreu a 12 de Março de 2020, no Centro de Instalação Temporária do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras do Aeroporto de Lisboa, onde esteve manietado, numa sala, durante pelo menos 15 horas.

 

 

Luís Silva foi o primeiro a falar, referiu trabalhar na segunda linha do aeroporto onde, a 12 de Março de 2020, diz ter entrado às 6h. Segundo contou em tribunal, foi chamado pelo inspector-chefe para assistir um indivíduo que estava a ter um “comportamento autodestrutivo”. “Quando chegámos ao CIT [Centro de Instalação Temporária], os seguranças abriram-nos a porta e alertaram-nos que estava lá um cidadão violento que tinha tentado fugir durante a noite. Um segurança alegou que ele tinha atirado um sofá e que gostava de morder”, disse Luís Silva. “Quando abrimos a porta, [Ihor Homenyuk] estava deitado no chão, com fita-cola nos pés e nos braços e mãos presas atrás das costas. Estava deitado no chão e a tentar rebentar a fita contra a parede — uma fita castanha com que se prende os caixotes — que estava esticada em fio.”

 

O inspector Luís Silva alega que o mais demorado durante a intervenção — que, segundo a acusação, durou cerca de 20 minutos — foi a retirada das fitas das calças de ganga de Ihor Homenyuk. Segundo a sua versão, “o passageiro” estava a tentar “pontapear” e a gritar. Luís Silva levou umas fitas de tecido, mas como Ihor Homenyuk “conseguiu rebentar as algemas médicas”, acabaram por o algemar com as metálicas. “Perante o comportamento dele, foi necessário ficar com as algemas de metal que eram minhas”, disse. Referiu também que o inspector de turno entrou na sala a dada altura “e presenciou o nosso comportamento”.

 

Questionado pelo presidente do colectivo de juízes, Rui Coelho, o arguido disse que não tinha tido contacto com lhor Homenyuk antes disso. Referiu ainda que não havia nada dentro da sala onde algemar Ihor, já que os seguranças tinham retirado todos os móveis e objectos devido ao alegado comportamento agressivo do “passageiro”, como lhe chamou durante o seu depoimento. Explicou que no CIT há muitas situações que podem “descambar” porque há imigrantes que saem da cadeia para serem deportados e em “determinadas circunstâncias” é preciso actuar: “Temos passageiros que comem lâmpadas fluorescentes para não saírem do país”.

 

Recorde-se que, segundo a investigação, à hora em que os arguidos contactaram com Ihor Homenyuk, pelas 8h15, ele já tinha tomado um calmante.

 

Já a procuradora Maria Leonor Machado quis saber por que é que Luís Silva fechou a porta da sala dos Médicos do Mundo, onde se encontravam, durante a intervenção. “Porque tinham dito que o passageiro já tinha tentado fugir.”

 

Bruno Sousa, outro dos arguidos, referiu igualmente ter sido avisado pelo coordenador de que o passageiro estava a ter comportamentos violentos. Mas afirmou: “Foi-nos omitida a questão do senhor já estar completamente imobilizado com fita adesiva. Obviamente que é um meio inadmissível.” A algemagem com fita adesiva tinha sido feita durante a noite por seguranças. Descreveu também Ihor Homenyuk “a tentar soltar-se através da parede”. E respondeu sobre se bateu nele quando o tentaram manietar: “Não foi preciso bater no homem porque ele já estava numa posição de fragilidade.”

 

Luís Silva viu um hematoma na face de Ihor, “uma grande marca na testa e estava extremamente exaltado”; Duarte Laja também viu “marcas, escoriações nos braços”. Disse que Ihor pontapeou e esperneou, sendo ele alvo “de investidas e pontapés”. Para o imobilizar, refere que colocou “pressão em cima dos joelhos” de Ihor Homenyuk. Também Bruno Sousa viu as mãos a ficarem roxas e o braço com zonas “bastante marcadas”.

 

“Uma vez que entrámos, nunca esteve calmo. Estava algemado, sentado e falava na língua dele, às vezes ficava calado.” “O tom de voz?”, questionou o juiz. “Era de quem estava alterado.” Depois da intervenção, Duarte Laja disse que lhe foi transmitido, mais tarde, que Ihor “estava bem e calmo” e presumiu que tinha sido desalgemado.

 

Duarte Laja disse que não tinha escrito nada sobre a sua intervenção em relatório a seguir, mas fê-lo depois de o chefe lho pedir. No relatório de ocorrência do SEF não vem referido nenhum sinal de agressão ou de danos físicos em Ihor Homenyuk. Esse relatório de ocorrência escrito à mão coloca a intervenção dos inspectores às 9h15, quando foi uma hora antes.

 

Advogados acusam: “Foram bodes expiatórios"

Nas suas intervenções, os advogados dos três arguidos criticaram a investigação do Ministério Público (MP) e acusaram comentadores e os media de terem feito um julgamento na praça pública — os inspectores remeteram-se ao silêncio até agora, e só recentemente é que juntaram ao processo a sua contestação.

 

Nas palavras do advogado Ricardo Sá Fernandes, que defende Bruno Sousa, os inspectores tornaram-se “os bodes expiatórios”, sem direito a “presunção de inocência”. Também Maria Manuel Candal, que defende Luís Silva, criticou o facto de ninguém ter dado o “benefício da dúvida”, tal como fez Ricardo Serrano Vieira, que representa Duarte Laja.

 

Ricardo Sá Fernandes considerou serem “questões fundamentais” apurar se as lesões foram provocadas de forma intencional ou se, pelo contrário, foram resultado de factos acidentais; e se, a serem intencionais, foram praticadas pelos arguidos que estiveram menos de meia hora com Ihor Homenyuk quando vários foram os profissionais que se cruzaram com ele entre 10 e 12 de Março. E acusou: “Foi arranjada em Março uma explicação para o que tinha acontecido” e os arguidos foram os “bodes expiatórios”.

 

 

O MP acusa os três inspectores em final de Setembro, e Luís Silva, de 44 anos, Bruno Sousa, de 42, e Duarte Laja, de 48 anos estão em prisão domiciliária desde 30 de Março. Luís Silva e Duarte Laja responderão ainda pelo crime de posse de arma proibida.

 

MP só acusa inspectores

 

O MP não acusou mais ninguém. A investigação da Polícia Judiciária apontava já nesta direcção, ilibando os seguranças ou qualquer outro interveniente. Mas, em despacho, o MP mandou extrair certidão com inquérito para averiguar a prática de outros crimes, nomeadamente falsificação de documento e a responsabilidade de mais intervenientes. Esta certidão abre, assim, o leque a outras investigações.

 

O despacho conclui que, além dos arguidos, “outros inspectores do SEF tudo fizeram para omitir” os factos ao MP, “chegando ao ponto de informar o magistrado do MP que o ofendido foi acometido de doença súbita”. No seu relatório sobre o sucedido, a Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI), a polícia dos polícias, vai mais longe e implica 12 inspectores, seguranças e até o enfermeiro. A descrição no relatório refere agressões brutais pelos três inspectores, a ausência de qualquer preocupação por parte dos seguranças e inspectores quanto ao estado de saúde de Ihor Homenyuk e até da satisfação das suas necessidades fisiológicas mais básicas; fala também em negligência e negação na prestação de auxílio permitindo que Homenyuk ficasse manietado de “forma indigna e desumana” durante horas, tanto da parte de inspectores como de seguranças.

 

Além disso, aponta o dedo ao enfermeiro que, acreditando que Homenyuk deveria ser observado no hospital e, percebendo que o SEF não o iria fazer, não equacionou chamar o INEM ou providenciar o transporte — e isto depois de ver que estava manietado com fita adesiva. Num relatório de 70 páginas, a IGAI afirmava que não restam dúvidas de que as lesões traumáticas que constam do relatório da autópsia só podiam ter sido perpetradas pelos três arguidos.

 

A IGAI não tem dúvidas de que houve uma acção concertada para encobrimento dos factos, com a omissão de informações no relatório de ocorrência que dá a sua morte como natural, e demonstra a intenção de ocultar a verdade e de obstruir a instrução de processos de natureza criminal. Concluiu ainda que, desde que barrou a entrada a Ihor Homenyuk a 10 de Março, o SEF cometeu várias irregularidades — quem recusou a entrada não tinha “competência para a decisão”.

 

Na acusação, o procurador do MP, Óscar Ferreira, critica também seguranças e outros inspectores, além dos arguidos, mas optou por não os constituir como arguidos. Sublinha que, apesar de ter sido conduzido ao Hospital de Santa Maria, e de o SEF ter comunicado tardiamente à Embaixada da Ucrânia que Ihor Homenyuk ia embarcar, nenhum responsável fez qualquer contacto com a embaixada para que fosse prestada assistência médica e apoio jurídico.

 

Também refere que um enfermeiro (que assistiu o cidadão por volta da 1h30 de dia 12 de Março) sugeriu aos inspectores do SEF que o transportassem de novo ao hospital, depois de administrar um calmante, recomendação que não foi seguida. E, perante sinais de agitação de Ihor Homenyuk, sem que tivessem “autorização e competência para tal”, dois vigilantes “algemaram-no com fita adesiva à volta dos tornozelos e dos braços” e chamaram de novo os inspectores ao local. Há mais críticas aos inspectores do SEF que, durante a madrugada, pelas 4h41, viram o cidadão ucraniano imobilizado: substituíram as algemas de fita-cola por lençóis, “agravando dessa forma o seu suposto estado de ansiedade, o que constitui procedimento anómalo, dado que os passageiros com ordem de retorno não podem nem devem ser privados da liberdade, como era o caso”.

 

Procedimentos do SEF questionados

O despacho de acusação do MP coloca interrogações a vários procedimentos do SEF desde o momento em que Homenyuk foi impedido de entrar em Portugal. Sublinha que os ucranianos estão isentos de visto de turista, mas, mesmo assim, Ihor Homenyuk foi barrado, e refere que Portugal tem acolhido cidadãos ucranianos. Questiona a entrevista que lhe foi feita e que determinou a decisão do SEF, já que foi efectuada por um inspector que não domina a língua ucraniana e por uma inspectora que “dominará a língua ucraniana, mas que, sendo funcionária, não estava habilitada, por razões de imparcialidade, a efectuar qualquer tradução, existindo dúvidas sérias sobre se o referido cidadão declarou que pretendia trabalhar em Portugal”.

 

O despacho reproduz o que a investigação da PJ há tinha apurado: os arguidos chegaram à sala onde estava Homenyuk pelas 8h15 e um deles disse para a segurança: “Atenção: você não vá colocar aí os nossos nomes, OK?”

 

Alegadamente, Luís Silva trazia um bastão extensível e Bruno Sousa um par de algemas. Depois de o algemarem com as mãos atrás das costas e de lhe amarrarem os cotovelos com ligaduras, desferiram-lhe socos e pontapés. Já com Homenyuk  prostrado no chão, continuaram a dar-lhe pontapés e pancadas no tronco, “enquanto, aos gritos, lhe exigiam que permanecesse quieto”. Vinte minutos depois, abandonaram o local e disseram: “Agora ele está sossegado.” Um deles afirmou: “Isto hoje... já nem preciso de ir ao ginásio.”

 

O MP concluiu que os inspectores deixaram o ofendido num “estado de grande prostração e algemado”, sabendo que, como membros de um órgão de polícia criminal, “tinham o poder de impedir que os vigilantes actuassem e, face ao temor reverencial, denunciassem a terceiros o que se tinha passado na sala”.

 

O MP diz ainda, com base no relatório de autópsia, que “as fracturas dos arcos costais associadas às demais lesões contundentes foram provocadas pela aplicação de um peso tal nas costas” de Homenyuk que levou “o tórax a esmagar-se contra o solo”. E acrescenta: “Os pontapés e pancadas provocaram a fractura dos arcos costais, potenciados pela imobilização do ofendido, com os braços manietados nas costas, em posição de decúbito ventral, [que] causaram a violenta constrição do tórax, promovendo a asfixia mecânica que foi causa directa e necessária da morte.”

 

Os inspectores, sublinha o MP, sabiam, pela formação profissional que lhes é ministrada, que manietar alguém “com os braços atrás das costas e deitado em posição de decúbito ventral” pode provocar “dificuldades respiratórias” e “que, por essa razão, poderiam causar-lhe a morte”. Agiram em “comunhão de esforços e intentos”, sujeitando-o “a um tratamento desumano e violando gravemente os deveres inerentes às suas funções”.

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