Morte de
Soleimani: “Catastrófico para todos”
O Irão jura
vingança, Trump quer mostrar que é “imprevisível”. Os próximos dias trazem o
risco de uma escalada em que os actores se arriscam a perder o controlo da
situação.
Jorge Almeida
Fernandes
Jorge Almeida
Fernandes 3 de Janeiro de 2020, 21:01
O general
iraniano Qassem Soleimani, comandante da Força al-Quds, foi morto por um drone
americano na madrugada de sexta-feira, quando saía do aeroporto de Bagdad, onde
chegara vindo da Síria ou do Líbano. Não era “mais um general”, mas o estratega
que redesenhou o mapa geopolítico do Médio Oriente em proveito do Irão. Era a
figura mais importante do regime iraniano a seguir ao ayatollah Ali Khamenei.
Teme-se o risco de um ciclo de acção-retaliação no Médio Oriente, numa escalada
em que os actores se arriscam a perder o controlo da situação.
O assassínio de
Soleimani é, em si mesmo, um eloquente exemplo da engrenagem. No dia 27 de
Dezembro, uma milícia pró-iraniana do Iraque atacou com rockets uma base
militar, perto de Kirkuk, matando um americano. Os Estados Unidos responderam
bombardeando cinco bases da milícia Kataeb Hezbollah, matando 25 pessoas. Em
retaliação, centenas de manifestantes atacaram a embaixada norte-americana em
Bagdad. O ataque terá sido incentivado pelo Irão.
O Presidente dos
Estados Unidos, Donald Trump, despachou mais tropas para o Iraque. E ordenou a
operação contra Soleimani, cuja responsabilidade imediatamente assumiu. O
secretário de Estado, Mike Pompeo, disse ter sido uma “acção preventiva”
perante um “ataque iminente” a cidadãos americanos. Trump volta a revelar-se
“imprevisível”. Se os Guardas da Revolução responderem é impossível prever o
que decidirá. É uma forma de dissuasão. Ao que o Irão responde: “Preparai os
caixões.”
A morte de
Soleimani não é equiparável à eliminação de Bin Laden, fundador da Al-Qaeda, ou
de Abu Bakr al-Baghdadi, líder do Daesh. Estes não tinham um Estado por trás. O
Irão usa a arma do terrorismo mas não no mesmo plano que o Daesh. Explica Abbas
Kadhim, director da secção iraquiana do Conselho Atlântico: “Uma coisa é matar
alguém que é considerado terrorista em toda a parte, incluindo no seu próprio
país. Outra coisa é matar alguém que é designado como terrorista pelos EUA mas
que o não é no país que o recebe – neste caso o Iraque.”
As consequências
são diferentes. Sublinha no diário israelita Haaretz o analista Anshel Pfeffer:
“É impossível exagerar as repercussões deste acontecimento e os apoiantes
incondicionais de Trump deveriam lamentar a ausência de um maduro conselho de Segurança
Nacional.”
A rota de colisão
começou quando, em 2018, a Administração Trump retirou os EUA dos acordos de Viena
com Teerão sobre o programa nuclear iraniano. Não vale a pena repetir o que é
largamente conhecido. A tensão foi reactivada em Setembro passado, quando Trump
decidiu reforçar a sua política de “máxima pressão” e Teerão resolveu testá-lo
com a ameaça de caos na região.
Houve ataques a
petroleiros e, depois, a instalações petrolíferas sauditas que Riad e
Washington atribuíram à al-Quds. Seguiu-se o derrube de um drone americano no
espaço aéreo iraniano. Os iranianos mostraram que poderiam fechar o Estreito de
Ormuz, a maior rota do petróleo.
O senador
republicano Lindsey Graham avisou Trump de que se não respondesse militarmente
tal seria entendido pelo Irão como confissão de fraqueza. Trump negou e montou
um teatro ambíguo. Ordenou um ataque aéreo ao Irão, mas suspendeu-o “à última
hora”. Exibiu uma surpreendente prudência. Ao contrário do princípio do
Presidente Theodore Roosevelt, – “falar docemente com um cacete na mão” –
Donald Trump parecia falar agressivamente mas sem cacete. E, no mês seguinte,
anunciava a retirada das tropas americanas da Síria.
O ataque à Arábia
Saudita foi uma humilhação para Mohamed Bin Salman, o arrogante príncipe
regente. Depois de ter gasto biliões em armamento sofisticado, descobria a
vulnerabilidade dos seus campos de petróleo. A resposta americana suscitava uma
redobrada inquietação: até que ponto podem as “petromonarquias” contar com os
Estados Unidos? E, nessa altura, Trump deu uma resposta ainda mais ambígua: “A
Arábia Saudita deveria travar as suas próprias guerras.”
Sobre a
estratégia iraniana, escreveu a analista Mahsa Rouhi, do Instituto
Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), de Londres: “Quanto mais pressão
for exercida, mais Teerão apostará numa estratégia de risco, porque fica mais
desesperada e sente que tem menos a perder.” Ou seja, a “máxima pressão”
incentivaria o Irão a subir a parada.
O Irão não
procura uma guerra com os EUA. Não tem capacidade militar. Confia antes nas
tácticas da “guerra assimétrica”, de que Soleiman era especialista. Os seus mísseis
têm a mesma função de ameaça. Podem atingir as infraestruturas dos países do
Golfo. E conta, também, com a capacidade de flagelação de forças como o
Hezbollah libanês e outras milícias xiitas, aptas a atacar objectivos fora das
suas fronteiras.
Precisa Ali Vaez,
director do dossier Irão no International Crisis Group: “O que o Irão quer
mostrar é que, em vez de um desafio em que um vence e o outro perde, pode haver
um conflito em que todos acabam por perder.” Perderia o Irão mas também a
América. Esta atitude implica, naturalmente, correr riscos e a possibilidade de
uma escalada incontrolável.
Outra chave do
comportamento de Teerão terão sido as manifestações anti-corrupção e
anti-iranianas de Novembro, em Bagdad, que desafiaram a influência do Irão na
política iraquiana. Em menos de um mês, o grito “Fora, Irão” deu lugar ao mais
tradicional “Morte à América”. Para Teerão, a presença no Iraque é base da sua
influência regional.
Mas divergem os
analistas americanos. Na quarta-feira, sublinhava Ray Takeyh: “O Irão está em
vias de perder o Iraque. Os iraquianos não desejam que o seu país se torne num
campo de batalha entre os Estados Unidos e o Irão.” Richard N. Haass,
presidente do Council on Foreign Relations, tem uma diferente perspectiva.
Escreve num tweet: “O resultado seguro é que o ataque dos EUA marca o fim da
cooperação com o Iraque. A presença diplomática e militar americana terminará
[quando] o Iraque pedir a nossa partida ou a nossa presença se tornar num alvo,
ou ambas as coisas. O resultado será uma maior influência iraniana, do
terrorismo e das lutas internas iraquianas.”
Moral da
história: “Dezasseis anos depois de invadir o Iraque para país instalar um
governo amigo, os EUA mal conseguem garantir a segurança da sua embaixada”,
conclui The Economist.
O problema excede
o Iraque: todos os equilíbrios regionais estão em mutação. Explicava há dias,
no Financial Times, o analista Gideon Rachman que a política síria de Donald
Trump corresponde “ao rápido declínio da capacidade e da vontade de os EUA
moldarem os acontecimentos no Médio Oriente, deixando um vazio que está ser
preenchido por outras potências como a Rússia, o Irão e a Turquia”. Na Síria,
os americanos “abandonaram não só as suas bases, mas também os aliados curdos”,
ao mesmo tempo que se consolida a presença militar russa.
Por seu lado, a
Turquia desafia a Rússia ao decidir enviar tropas para a Líbia, a fim de
socorrer o governo de Trípoli, ameaçado pela ofensiva do general Khalifa
Haftar, apoiado por Moscovo e pelo Cairo, mas também pela França e por Israel.
Tendemos a esquecer que a Líbia fez parte do Império Otomano. Estas
movimentações não significam guerra mas a ocupação de posições para depois
repartir influências e tutelas.
É neste quadro
aparentemente caótico, que reflecte o fim da “ordem americana” no Médio Oriente,
que se desenrola o conflito irano-americano. Um quadro ainda mais
“imprevisível” do que Trump.
Fantasmas de
Sarajevo
Nas primeiras
reacções à morte de Soleimani, alguns analistas lembraram-se de Sarajevo em
1914: o assassínio do arquiduque austríaco Francisco Fernando punha em marcha a
engrenagem que levaria à eclosão da I Guerra Mundial. As pessoas gostam de
evocar as lições da História. “É um momento Francisco Fernando”, disse o acima
citado Ali Vaez.
A ideia de
repetição da História pode ser aliciante mas, neste caso, mas é um mau
paralelo. Não estamos perante um conflito entre a América e a China, mas entre
os EUA e o Irão. A morte do general Qassem Soleimani pode ser o detonador de
uma tragédia mas não de um cataclismo mundial.
O tenente-coronel
Daniel Davis, um veterano do Afeganistão, teme o pior: “Isto vai desembocar em
guerra. Será catastrófica para todos.”
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