sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Morte de Soleimani: “Catastrófico para todos” / VIDEO:Donald Trump says US will take 'whatever action is necessary' against Iran




Morte de Soleimani: “Catastrófico para todos”
O Irão jura vingança, Trump quer mostrar que é “imprevisível”. Os próximos dias trazem o risco de uma escalada em que os actores se arriscam a perder o controlo da situação.

Jorge Almeida Fernandes
Jorge Almeida Fernandes 3 de Janeiro de 2020, 21:01

O general iraniano Qassem Soleimani, comandante da Força al-Quds, foi morto por um drone americano na madrugada de sexta-feira, quando saía do aeroporto de Bagdad, onde chegara vindo da Síria ou do Líbano. Não era “mais um general”, mas o estratega que redesenhou o mapa geopolítico do Médio Oriente em proveito do Irão. Era a figura mais importante do regime iraniano a seguir ao ayatollah Ali Khamenei. Teme-se o risco de um ciclo de acção-retaliação no Médio Oriente, numa escalada em que os actores se arriscam a perder o controlo da situação.

O assassínio de Soleimani é, em si mesmo, um eloquente exemplo da engrenagem. No dia 27 de Dezembro, uma milícia pró-iraniana do Iraque atacou com rockets uma base militar, perto de Kirkuk, matando um americano. Os Estados Unidos responderam bombardeando cinco bases da milícia Kataeb Hezbollah, matando 25 pessoas. Em retaliação, centenas de manifestantes atacaram a embaixada norte-americana em Bagdad. O ataque terá sido incentivado pelo Irão.

O Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, despachou mais tropas para o Iraque. E ordenou a operação contra Soleimani, cuja responsabilidade imediatamente assumiu. O secretário de Estado, Mike Pompeo, disse ter sido uma “acção preventiva” perante um “ataque iminente” a cidadãos americanos. Trump volta a revelar-se “imprevisível”. Se os Guardas da Revolução responderem é impossível prever o que decidirá. É uma forma de dissuasão. Ao que o Irão responde: “Preparai os caixões.”

A morte de Soleimani não é equiparável à eliminação de Bin Laden, fundador da Al-Qaeda, ou de Abu Bakr al-Baghdadi, líder do Daesh. Estes não tinham um Estado por trás. O Irão usa a arma do terrorismo mas não no mesmo plano que o Daesh. Explica Abbas Kadhim, director da secção iraquiana do Conselho Atlântico: “Uma coisa é matar alguém que é considerado terrorista em toda a parte, incluindo no seu próprio país. Outra coisa é matar alguém que é designado como terrorista pelos EUA mas que o não é no país que o recebe – neste caso o Iraque.”

As consequências são diferentes. Sublinha no diário israelita Haaretz o analista Anshel Pfeffer: “É impossível exagerar as repercussões deste acontecimento e os apoiantes incondicionais de Trump deveriam lamentar a ausência de um maduro conselho de Segurança Nacional.”

A rota de colisão começou quando, em 2018, a Administração Trump retirou os EUA dos acordos de Viena com Teerão sobre o programa nuclear iraniano. Não vale a pena repetir o que é largamente conhecido. A tensão foi reactivada em Setembro passado, quando Trump decidiu reforçar a sua política de “máxima pressão” e Teerão resolveu testá-lo com a ameaça de caos na região.

Houve ataques a petroleiros e, depois, a instalações petrolíferas sauditas que Riad e Washington atribuíram à al-Quds. Seguiu-se o derrube de um drone americano no espaço aéreo iraniano. Os iranianos mostraram que poderiam fechar o Estreito de Ormuz, a maior rota do petróleo.

O senador republicano Lindsey Graham avisou Trump de que se não respondesse militarmente tal seria entendido pelo Irão como confissão de fraqueza. Trump negou e montou um teatro ambíguo. Ordenou um ataque aéreo ao Irão, mas suspendeu-o “à última hora”. Exibiu uma surpreendente prudência. Ao contrário do princípio do Presidente Theodore Roosevelt, – “falar docemente com um cacete na mão” – Donald Trump parecia falar agressivamente mas sem cacete. E, no mês seguinte, anunciava a retirada das tropas americanas da Síria.

O ataque à Arábia Saudita foi uma humilhação para Mohamed Bin Salman, o arrogante príncipe regente. Depois de ter gasto biliões em armamento sofisticado, descobria a vulnerabilidade dos seus campos de petróleo. A resposta americana suscitava uma redobrada inquietação: até que ponto podem as “petromonarquias” contar com os Estados Unidos? E, nessa altura, Trump deu uma resposta ainda mais ambígua: “A Arábia Saudita deveria travar as suas próprias guerras.”

Sobre a estratégia iraniana, escreveu a analista Mahsa Rouhi, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), de Londres: “Quanto mais pressão for exercida, mais Teerão apostará numa estratégia de risco, porque fica mais desesperada e sente que tem menos a perder.” Ou seja, a “máxima pressão” incentivaria o Irão a subir a parada.

O Irão não procura uma guerra com os EUA. Não tem capacidade militar. Confia antes nas tácticas da “guerra assimétrica”, de que Soleiman era especialista. Os seus mísseis têm a mesma função de ameaça. Podem atingir as infraestruturas dos países do Golfo. E conta, também, com a capacidade de flagelação de forças como o Hezbollah libanês e outras milícias xiitas, aptas a atacar objectivos fora das suas fronteiras.

Precisa Ali Vaez, director do dossier Irão no International Crisis Group: “O que o Irão quer mostrar é que, em vez de um desafio em que um vence e o outro perde, pode haver um conflito em que todos acabam por perder.” Perderia o Irão mas também a América. Esta atitude implica, naturalmente, correr riscos e a possibilidade de uma escalada incontrolável.

Outra chave do comportamento de Teerão terão sido as manifestações anti-corrupção e anti-iranianas de Novembro, em Bagdad, que desafiaram a influência do Irão na política iraquiana. Em menos de um mês, o grito “Fora, Irão” deu lugar ao mais tradicional “Morte à América”. Para Teerão, a presença no Iraque é base da sua influência regional.

Mas divergem os analistas americanos. Na quarta-feira, sublinhava Ray Takeyh: “O Irão está em vias de perder o Iraque. Os iraquianos não desejam que o seu país se torne num campo de batalha entre os Estados Unidos e o Irão.” Richard N. Haass, presidente do Council on Foreign Relations, tem uma diferente perspectiva. Escreve num tweet: “O resultado seguro é que o ataque dos EUA marca o fim da cooperação com o Iraque. A presença diplomática e militar americana terminará [quando] o Iraque pedir a nossa partida ou a nossa presença se tornar num alvo, ou ambas as coisas. O resultado será uma maior influência iraniana, do terrorismo e das lutas internas iraquianas.”

Moral da história: “Dezasseis anos depois de invadir o Iraque para país instalar um governo amigo, os EUA mal conseguem garantir a segurança da sua embaixada”, conclui The Economist.

O problema excede o Iraque: todos os equilíbrios regionais estão em mutação. Explicava há dias, no Financial Times, o analista Gideon Rachman que a política síria de Donald Trump corresponde “ao rápido declínio da capacidade e da vontade de os EUA moldarem os acontecimentos no Médio Oriente, deixando um vazio que está ser preenchido por outras potências como a Rússia, o Irão e a Turquia”. Na Síria, os americanos “abandonaram não só as suas bases, mas também os aliados curdos”, ao mesmo tempo que se consolida a presença militar russa.


Por seu lado, a Turquia desafia a Rússia ao decidir enviar tropas para a Líbia, a fim de socorrer o governo de Trípoli, ameaçado pela ofensiva do general Khalifa Haftar, apoiado por Moscovo e pelo Cairo, mas também pela França e por Israel. Tendemos a esquecer que a Líbia fez parte do Império Otomano. Estas movimentações não significam guerra mas a ocupação de posições para depois repartir influências e tutelas.

É neste quadro aparentemente caótico, que reflecte o fim da “ordem americana” no Médio Oriente, que se desenrola o conflito irano-americano. Um quadro ainda mais “imprevisível” do que Trump.

Fantasmas de Sarajevo
Nas primeiras reacções à morte de Soleimani, alguns analistas lembraram-se de Sarajevo em 1914: o assassínio do arquiduque austríaco Francisco Fernando punha em marcha a engrenagem que levaria à eclosão da I Guerra Mundial. As pessoas gostam de evocar as lições da História. “É um momento Francisco Fernando”, disse o acima citado Ali Vaez.


A ideia de repetição da História pode ser aliciante mas, neste caso, mas é um mau paralelo. Não estamos perante um conflito entre a América e a China, mas entre os EUA e o Irão. A morte do general Qassem Soleimani pode ser o detonador de uma tragédia mas não de um cataclismo mundial.

O tenente-coronel Daniel Davis, um veterano do Afeganistão, teme o pior: “Isto vai desembocar em guerra. Será catastrófica para todos.”

Sem comentários: