Cansados
do caos noturno, moradores esperam pelas mudanças nos horários
POR O CORVO • 12 JANEIRO,
2016 • REPORTAGEM
Texto: Rita Neves Costa
Cais
do Sodré, Bica e Bairro Alto tornaram-se pontos obrigatórios de
diversão noturna. Mas para os residentes a vida ficou caótica. O
ruído, o vandalismo e a violência passaram a ser quotidianos. Por
isso, os moradores exigem soluções e reclamam direitos. A 19 de
janeiro, termina a consulta pública para a revisão do regulamento
dos horários dos estabelecimentos da cidade. Depois de, há um ano,
terem sido criadas restrições aos horários dos bares da zona, a
presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia pede o fim do
consumo de álcool na rua e a uniformização dos horários dos
estabelecimentos.
Isabel Sá da
Bandeira e Cristina Martins escolheram, há cerca de uma década,
morar no Cais do Sodré: perto do rio, com a Baixa mesmo ao lado e
numa altura em que a diversão noturna se realizava à porta fechada,
em discotecas. Hoje, deparam-se com um cenário diferente, mais
boémio, é certo, mas também menos acolhedor. A proliferação de
bares cresceu na Rua Nova de Carvalho, a chamada “rua cor-de-rosa”,
revitalizada em 2011, e o divertimento passou a ser feito fora de
portas. A rua tornou-se o local, por excelência, para a música, a
bebida e o convívio.
Há um antes e um
depois na história do Cais do Sodré. A rua que captou as atenções
do New York Times como a “rua festiva com mais movimento de Lisboa”
depressa mudou também a vida dos moradores. “O Cais do Sodré era
um bairro muito tradicional, também tinha discotecas, mas os
desacatos eram muito limitados e contidos”, afirma Cristina
Martins, moradora e membro da associação Aqui mora gente.
O tom cor-de-rosa
não suavizou os ânimos de ninguém. A nova vida da Rua Nova de
Carvalho fez crescer o descontentamento dos moradores e motivou a sua
organização num grupo, cujo objetivo seria alertar a autarquia e
promover abaixo-assinados para a resolução do problema do ruído
noturno. “O principal trabalho é fazer pressão junto da Câmara
Municipal de Lisboa para que a lei seja cumprida”, explica Isabel
Sá da Bandeira, presidente da associação e moradora do Cais do
Sodré.
O direito ao
descanso é reclamado por ambas as moradoras. Se o ruído noturno
traz as noites mal dormidas, o dia seguinte é encarado com receio.
“Não sabemos como vamos encontrar o nosso carro ou a nossa rua”,
desabafa Cristina Martins. Desde a vandalização da matrícula do
veículo pessoal até aos assentos repletos de cerveja, todos os dias
a moradora constata as consequências de madrugadas agitadas. Já
Isabel Sá da Bandeira verifica uma dualidade na vida do Cais do
Sodré: “Quando, às sete da manhã, os moradores e os comerciantes
começam a trabalhar, os grupos de jovens ainda continuam na rua com
copos de cerveja.”
É à porta de
casa, com o mau cheiro, a urina e a álcool, que um novo dia começa.
“As ruas são um mar de lixo e de copos de plástico”, acrescenta
Isabel Sá da Bandeira. As habitações refletem os danos de
permanecerem numa zona tão conotada com a diversão noturna. A
inevitabilidade de ter de proceder a alterações no seu interior
retira tempo e dinheiro aos moradores. “Quase todos temos vidros
duplos, pelo menos os que têm possibilidades”, reconhecem.
Mudar de casa e
viver noutra zona de Lisboa são decisões que nenhuma das duas
moradoras pretende tomar. Foi no Cais do Sodré que se “apaixonaram
pelas casas” e onde decidiram “formar família”. Logo, sucumbir
à noite lisboeta não é uma opção.
O Bairro Alto é um
“bairro de moradores”
As portas dos bares
estão fechadas. Os anúncios e os preços das bebidas alcoólicas
continuam expostos em plena luz do dia. Quem passar pela Rua da
Atalaia, no Bairro Alto, numa tarde de Inverno, encontrará um lugar
sossegado, onde reina a harmonia entre os moradores e os transeuntes.
À noite, tudo muda. O Bairro Alto transforma-se naquilo pelo qual é
mais conhecido: a intensa vida noturna.
“O ruído noturno
tornou-se mais grave quando fecharam o bairro ao trânsito”,
explica Vítor Silva, vice-presidente da Associação de Moradores do
Bairro Alto (AMBA). Os problemas da noite continuam a motivar a falta
de consenso entre os moradores e os donos de bares e as entidades,
pelo que o trabalho da associação passa por sensibilizar e
conciliar todos os envolvidos.
Vítor Silva mora
há 57 anos no Bairro Alto. O barulho na rua e nos estabelecimentos
fez com que apresentasse 88 queixas contra cinco bares. Para o
morador, o bairro esteve sempre conotado com a diversão noturna,
porém, a “gritaria dos visitantes”, associada ao elevado consumo
de álcool, não permite o descanso desejado e necessário. “Já
fui ameaçado por donos de bares, mas se me sinto incomodado, tenho
de apresentar queixa”, diz.
O vice-presidente da
associação de moradores teve também de recorrer aos vidros duplos,
para impedir que a música não o incomodasse dentro de casa. A
decisão fez com que o barulho diminuísse, mas a construção antiga
do Bairro Alto não permitiu eliminar totalmente o volume de som
dentro das habitações. Situações como esta fazem com que Carlos
Pinha, morador e membro da AMBA, saliente a “falta de liberdade”
que todos os que vivem no bairro enfrentam no dia-a-dia: “Eu não
posso escolher o quarto onde quero dormir. Tenho que me sitiar,
dentro da minha própria casa, num quarto sem janela”.
Todos os dias são
problemáticos para quem mora nesta zona de Lisboa: uma despedida de
solteiro, um jantar académico, um feriado ou um aniversário quebram
a rotina de uma semana de trabalho. A festa não fica apenas resumida
ao fim-de-semana e às sextas-feiras. “Em dois dias, podem passar
pelo Bairro Alto cerca de 100 mil pessoas e o bairro não foi feito
para receber esta densidade populacional”, refere Carlos Pinha.
A conjugação de
várias situações decorrentes da noite lisboeta, como a
vandalização de sinais de trânsito e as alegadas propostas de
agências imobiliárias para que os moradores mais idosos vendam as
suas casas no Bairro Alto, fazem com que se corra o risco de
“descaracterizar” este recanto de Lisboa, segundo o morador.
Tanto Vítor Silva
como Carlos Pinha acreditam que a identidade do Bairro Alto está
centrada nas pessoas e isso é o que os faz permanecer. Porque, mais
do que morar, muitos lisboetas nasceram e cresceram no conhecido
“bairro da bebida”. Um “bairro de moradores”, em primeiro
lugar – reivindicam.
Contactada pelo O
Corvo, a presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia, Carla
Madeira, recorda que a concentração de atividades noturnas no Cais
do Sodré e no Bairro Alto é “conhecida há muito tempo”. No
entanto, a autarca reconhece o desequilíbrio entre a função
turística e residencial verificado nos últimos anos. “Estas zonas
deixaram de ter as condições essenciais à função residencial, o
que não podemos, de forma alguma, aceitar”, diz.
Para Carla Madeira,
a solução passa por aliar esforços no incremento de comércio de
qualidade na freguesia, no qual se incluem a uniformização dos
horários dos estabelecimentos e a proibição do consumo de álcool
na rua, para que existam condições necessárias à residência. “O
que a Junta de Freguesia da Misericórdia defende é que estas
medidas sejam incluídas no novo regulamento. Este é um problema de
solução difícil, mas do qual não desistiremos”, afirma.
Até 19 de janeiro,
encontra-se em consulta pública o projecto de Revisão do
Regulamento de Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de
Venda ao Público e de Prestação de Serviços no Concelho de
Lisboa. O projecto promete reduzir os horários de funcionamento de
bares e lojas de conveniência em toda a cidade. As restrições a
estas últimas – que terão de passar a fechar à meia-noite, de
acordo com o que está no diploma apresentado pela CML – poderão
ter particular influência no Cais do Sodré e Bairro Alto, onde
existe um assinalável consumo de bebidas compradas em lojas de
conveniência.
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