HABITAÇÃO
Guia para perceber os sete argumentos de Marcelo para
vetar o Mais Habitação
Da “complexidade” de algumas medidas à inexistência de um
“acordo de regime”, o Presidente da República invoca sete argumentos para vetar
o “Mais Habitação”.
Rafaela Burd
Relvas
21 de Agosto de
2023, 16:43
Marcelo Rebelo de
Sousa decidiu devolver à Assembleia da República, sem promulgar, o diploma do
Mais Habitação, pacote legislativo lançado pelo Governo no início deste ano
para dar resposta à crise habitacional. O Presidente da República invoca sete
argumentos para vetar a legislação proposta pelo Governo e aprovada pela
maioria socialista no Parlamento, que vão desde a falta de intervenção do
Estado na construção de habitação até ao impacto que defende que as medidas
terão sobre o investimento privado.
Estado não vai construir
A primeira
crítica de Marcelo é dirigida à falta de intervenção do Estado no parque
habitacional. “Salvo de forma limitada, e com fundos europeus, o Estado não vai
assumir responsabilidade directa na construção de habitação”, observa o
Presidente da República.
O pacote proposto
pelo Governo assenta, de facto, em incentivos à promoção de construção privada,
mais do que em investimento público em habitação. Para além da cedência de
terrenos e imóveis públicos a cooperativas para que promovam habitação
acessível, é ainda criada uma linha de financiamento, no valor de 250 milhões
de euros, com garantia mútua e bonificação da taxa de juro, para apoiar a
promoção de habitação destinada ao arrendamento acessível por parte de
entidades privadas como cooperativas ou empresas do sector da construção (ainda
que os municípios e juntas de freguesia também possam aceder a esta linha de
crédito).
Noutro âmbito – e
não no Mais Habitação –, haverá investimento público em habitação, ainda que
manifestamente reduzido, dadas as necessidades já identificadas. E, tal como
diz Marcelo, esse é um investimento que será feito com recurso aos fundos do
Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). O PRR destina mais de três mil
milhões de euros para habitação, dos quais cerca de 1200 milhões serão
canalizados para o 1.º Direito, programa que financia soluções habitacionais
para famílias em situações consideradas indignas. O dinheiro do PRR vai
financiar casas para 26 mil famílias através do 1.º Direito, embora já tenham
sido identificadas 77 mil famílias em situações indignas de habitação.
Burocracia será entrave
De outra
perspectiva, o Presidente argumenta que “o apoio dado a cooperativas ou o uso
de edifícios públicos devolutos, ou prédios privados adquiridos ou contratados
para arrendamento acessível implicam uma burocracia lenta e o recurso a
entidades assoberbadas com outras tarefas, como o Banco de Fomento, ou sem
meios à altura do exigido, como o IHRU [Instituto da Habitação e da
Reabilitação Urbana]”.
Estas duas
entidades são chamadas a concretizar várias das medidas do Mais Habitação. O
Banco Português de Fomento vai operacionalizar a linha de crédito de 250
milhões destinada à promoção de habitação acessível, bem como uma outra linha,
no valor de 150 milhões de euros, destinada a apoiar os municípios para
realizarem obras coercivas em imóveis devolutos. Já o IHRU terá intervenção em
várias das medidas propostas, como a cedência de imóveis públicos às
cooperativas, o arrendamento forçado de casas devolutas ou o novo procedimento
de despejo.
Arrendamento forçado é “simbólico”
O arrendamento
forçado de imóveis devolutos foi uma das medidas que geraram maior discussão,
pelas dúvidas de constitucionalidade que se levantaram. Porém, na mensagem
agora transmitiu ao presidente da Assembleia da República, Marcelo Rebelo de
Sousa não mostra dúvidas sobre a constitucionalidade da medida e, pelo
contrário, até aponta que a mesma não terá um efeito prático.
“O arrendamento
forçado fica tão limitado e moroso que aparece como emblema meramente
simbólico, com custo político superior ao benefício social palpável”, diz o
Presidente.
Em causa estão as
mudanças que foram sendo feitas a esta medida desde que foi apresentada, até
que acabou por ficar praticamente esvaziada da sua intenção original. Desde
logo, só poderão ser abrangidos pelo novo regime do arrendamento forçado os
apartamentos que estejam considerados devolutos há pelo menos dois anos pelas
respectivas câmaras municipais e que se encontrem fora de territórios de baixa
densidade. Considerando os imóveis actualmente classificados como devolutos
pelas câmaras municipais, só 9366 casas preenchiam estes requisitos, um número
que representa uma pequena fatia das mais de 700 mil casas vazias que existem
por todo o país.
Ao mesmo tempo,
as câmaras municipais só poderão recorrer à figura do arrendamento forçado
“sempre que se revele necessário para garantir a função social da habitação” e
de forma “excepcional e supletiva”, dois pormenores que foram incluídos pelo
Partido Socialista no diploma já durante a fase de discussão na especialidade
parlamentar e que vêm limitar ainda mais as situações em que o regime poderá
vir a ser concretizado.
Mudanças no alojamento local são “complexas”
Outra das áreas
em que as propostas do Mais Habitação geraram maior polémica foi a do
alojamento local, sector no qual o Governo pretende introduzir várias
alterações. O objectivo é simples – incentivar a mobilização de casas do
alojamento local para o arrendamento tradicional, aumentando a oferta no
mercado habitacional e, desta forma, levando a uma queda dos preços –, mas as
soluções encontradas para a concretização do mesmo são consideradas
“complexas”.
“A igual
complexidade do regime de alojamento local torna duvidoso que permita alcançar
com rapidez os efeitos pretendidos”, defende Marcelo.
São várias as
mudanças dirigidas ao alojamento local, mas, também aqui, houve recuos face às
propostas iniciais. Desde logo, haverá uma contribuição extraordinária sobre os
apartamentos em alojamento local, de 15%, menos de metade da taxa de 35% que,
inicialmente, foi proposta pelo Governo. Ao mesmo tempo, os titulares dos
registos de AL passarão a ser obrigados a fazer prova da manutenção da
actividade, ficando sujeitos a um cancelamento dos registos, caso os
alojamentos sejam considerados inactivos. Nestas duas medidas ficam isentas as
unidades de alojamento local exploradas em habitação própria e permanente,
desde que a exploração desses alojamentos não ultrapasse os 120 dias por ano.
Por outro lado,
os registos de alojamento local passarão a ter a duração de cinco anos. Aqueles
que já existem serão reapreciados em 2030 e, a partir desse ano, também
passarão a ser renováveis por cinco anos.
Do lado dos
incentivos, os alojamentos locais que sejam transferidos para o arrendamento
habitacional ficarão isentos de tributação em sede de IRS e IRC até ao final de
2029.
Há, em
contrapartida, uma alteração considerada mais drástica: os novos registos de
alojamento local em prédios que sejam destinados a habitação vão passar a
depender de uma autorização prévia e unânime do condomínio para alterar o uso a
que o prédio se destina, enquanto um registo já existente num prédio destinado
a habitação poderá ser cancelado por decisão de uma maioria de dois terços do
condomínio.
Embora não seja
possível avaliar, para já, os efeitos destas medidas, a sua rejeição por parte
do sector, bem como a convicção de que o efeito desejado não será alcançado, é
evidente. Um inquérito realizado pela Associação do Alojamento Local em
Portugal (ALEP) aponta para que, sem a opção do alojamento local, a maioria dos
proprietários deste tipo de unidade tem a intenção de passar o imóvel para casa
própria de férias, apostar no arrendamento de médio prazo ou vender, em vez de
passar para o arrendamento tradicional.
“Confiança perdida” no investimento privado
Os avisos quanto
ao impacto que o Mais Habitação teria sobre o investimento privado não são de
agora, nem partem do Presidente da República. Desde 16 de Fevereiro, quando o
Governo apresentou pela primeira vez este pacote legislativo, que os operadores
dos sectores afectados pela nova legislação, tanto no imobiliário como no
alojamento local, têm alertado para o golpe que estas medidas significam para
os investidores.
No caso do
alojamento local, a ALEP, pela voz do seu presidente, Eduardo Miranda, tem
insistido que as medidas apresentadas pelo Governo vêm “matar” este sector.
“Dificilmente haverá investimento, inovação ou sustentabilidade no sector”,
disse o responsável, ainda em Março. O mesmo tem sido transmitido pelos
senhorios: num inquérito realizado este mês pela Associação Lisbonense de
Proprietários, metade dos respondentes afirma que, se o Governo voltar a
intervir no mercado de arrendamento, “irá fazer uma reflexão sobre a sua
continuidade neste mercado”.
É este sentimento
que, agora, é utilizado como argumento por Marcelo Rebelo de Sousa. “O presente
diploma, apesar das correcções no arrendamento forçado e no alojamento local,
dificilmente permite recuperar alguma confiança perdida por parte do investimento
privado, sendo certo que o investimento público e social, nele previsto, é
contido e lento”, refere a mensagem do Presidente.
Até ver, contudo,
o que os dados (oficiais ou recolhidos pelo próprio mercado) mostram não é uma
retracção do investimento ou destas actividades; pelo contrário. Olhando para o
alojamento local: à data de 21 de Agosto de 2023, estavam registados junto do
Turismo de Portugal um total de 120.159 unidades de alojamento local, mais
11,5% do que a 15 de Fevereiro (o dia antes de o Governo ter apresentado o Mais
Habitação pela primeira vez), quando havia 107.736 registos.
Por várias vezes,
a ALEP tem dado conta de que os registos não correspondem à realidade da
actividade, uma vez que haverá muitos alojamentos-fantasma, isto é, registados
mas não activos no mercado. Mas os dados do próprio mercado também apontam para
um crescimento: a plataforma AirDNA, que agrega e analisa todos os anúncios
publicados no Airbnb e na Vrbo, mostra que, no final do segundo trimestre deste
ano, havia 14.945 anúncios activos de alojamento local na cidade de Lisboa,
mais 6% do que no trimestre anterior e um aumento de 10% face ao segundo
trimestre do ano passado. A tendência é idêntica no Porto, onde havia 9774
anúncios de alojamentos activos no segundo trimestre deste ano, mais 16% do que
há um ano.
Também no
imobiliário a tendência é de crescimento. No primeiro semestre deste ano, o
investimento em imobiliário terá totalizado 740 milhões de euros, um aumento de
4% face ao ano passado, de acordo com os dados recolhidos pela consultora CBRE.
A Cushman & Wakefield aponta para números semelhantes, estimando que o
investimento em imobiliário tenha totalizado 749 milhões de euros no primeiro
semestre e especificando que, deste montante, 499 milhões foram transaccionados
só no segundo trimestre deste ano (ou seja, já depois de conhecidas as medidas
que o Governo pretende promover para equilibrar o mercado de habitação). E isto
num cenário de receios quanto à evolução macroeconómica e de subida das taxas
de juro, dois factores que as consultoras admitem que levam a uma maior
“cautela” por parte dos investidores.
Medidas para rendas e juros
O Presidente da
República argumenta que, no diploma proposto pelo Governo, “não se vislumbram
novas medidas, de efeito imediato, de resposta ao sufoco de muitas famílias em
face do peso dos aumentos nos juros e, em inúmeras situações, nas rendas”.
Marcelo Rebelo de Sousa não está sozinho nesta crítica.
Mas não é verdade
que não existam medidas destinadas a minimizar o impacto da subida dos juros e
das rendas. Por um lado, há aquelas que já entraram em vigor e abrangeram
milhares de famílias: é o caso do apoio extraordinário à renda, através do qual
mais de 185 mil agregados com taxas de esforço superiores a 35% com o pagamento
das rendas estão a receber um apoio no valor máximo de 200 euros por mês, e da
bonificação de juros no crédito à habitação, apoio destinado às famílias com
créditos até 250 mil euros que tenham sido contraídos até 15 de Março de 2023.
Por outro, e ao
contrário do que diz o Presidente, há novas medidas a avançar em breve, quer já
incluídas no pacote Mais Habitação, quer outras que ainda estão a ser pensadas.
No caso do crédito à habitação, e segundo avançou ao PÚBLICO o ministro das Finanças,
Fernando Medina, o Governo está a trabalhar com os bancos e com o Banco de
Portugal para apresentar, em Setembro, uma medida que visa alargar
“significativamente” a oferta de regimes de taxa fixa ou taxa mista, para
permitir que estas sejam disponibilizadas a todos os que o queiram, incluindo
quem já tem crédito à habitação e não apenas aqueles que estão a contrair novos
empréstimos.
Já no que diz
respeito ao arrendamento, o Mais Habitação prevê que as rendas de novos
contratos, relativos a imóveis que já se encontrassem no mercado de
arrendamento nos últimos cinco anos, passem a ficar sujeitas a um tecto máximo,
que implica que o valor das novas rendas só poderá ser até 2% superior em
relação à renda anterior (um limite que vai vigorar até 31 de Dezembro de 2029,
mas que não terá efeitos retroactivos).
Não há acordo de regime
Por fim, Marcelo
realça que não existe um “acordo de regime” e que, “sem mudança de percurso,
porventura, não existirá até 2026”, ano em que, não havendo eleições
antecipadas termina a actual legislatura.
O Mais Habitação
foi, de facto, um pacote legislativo incapaz de reunir consenso entre os
partidos com assento parlamentar, tendo sendo criticado da direita (sobretudo
pelas medidas que vêm limitar a actividade de alojamento local e pelo
arrendamento forçado) à esquerda (que vê um pacote legislativo ineficaz no seu
propósito e sem aquela que considerava ser a necessária intervenção do Estado).
No fim, o PS, em
maioria absoluta no Parlamento, acabou por ficar isolado, depois de, durante a
discussão na especialidade parlamentar, ter rejeitado quase todas as propostas
de alteração ao pacote legislativo que tinham sido feitas pela oposição, ao mesmo
tempo que aprovou, quase sempre sozinho, as suas próprias propostas de
alteração. A 19 de Julho, a Assembleia da República aprovou, em votação final
global, a versão final do Mais Habitação, apenas com a aprovação do PS, a
abstenção do Livre e do PAN e os votos contra do PSD, Bloco de Esquerda,
Iniciativa Liberal, Chega e PCP.
Agora, com o veto
do Presidente, os partidos aproveitaram para reforçar as críticas, com o PSD a
propor que o Governo “rasgue” o diploma e comece “do zero”, enquanto o Bloco de
Esquerda acusa os socialistas de assumir uma posição “arrogante e prepotente”.
Mas o PS mantém a posição, com ou sem o “acordo de regime” pedido por Marcelo:
esta segunda-feira, o líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, já
anunciou que a maioria socialista vai confirmar o diploma, “tal como ele está”,
em Setembro, quando se retomarem os trabalhos parlamentares.
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