OPINIÃO
Sim, há um problema de regime, e só os cegos não vêem
O grande problema em Portugal não é a existência de
corruptos. O grande problema é a cultura de corrupção, porque ela corrompe
indivíduos que noutros ecossistemas não seriam corrompíveis.
João Miguel
Tavares
10 de Julho de
2021, 0:00
https://www.publico.pt/2021/07/10/opiniao/opiniao/sim-ha-problema-regime-so-cegos-nao-veem-1969768
Vamos actualizar
a lista? Desde 2014, em Portugal, foram detidos, acusados ou investigados por
crimes graves um primeiro-ministro (José Sócrates), o presidente do maior banco
público e, depois, do maior banco privado (Carlos Santos Ferreira), o
presidente do segundo maior banco privado (Ricardo Salgado), o presidente e o
CEO da maior empresa de telecomunicações (Henrique Granadeiro e Zeinal Bava), o
presidente da maior eléctrica nacional (António Mexia), vários juízes do
Tribunal da Relação de Lisboa, incluindo dois dos seus presidentes (Rui Rangel,
Fátima Galante, Vaz das Neves, Orlando Nascimento), e, agora, o presidente do
maior clube de futebol (Luís Filipe Vieira).
Estamos a falar
dos cargos mais elevados da política, da finança, da economia, da justiça e do
desporto em Portugal. Até lhe podemos juntar a cultura, se quisermos contar com
os museus de Joe Berardo. Tudo isto em sete anos. Não se trata de uma opinião –
são factos. E estes factos, que não devem ter paralelo noutro país do mundo
ocidental, impõem conclusões óbvias: sim, há um problema gravíssimo de regime
em Portugal; sim, há uma cultura de corrupção que chegou às esferas mais
elevadas dos poderes executivo, legislativo e judicial; sim, há um desejo
evidente do poder político em considerar tais factos como emanações de
comportamentos individuais, e não como o resultado de falhas institucionais, de
profundos desequilíbrios de sistema e de um capitalismo de compadrio que
continua a olear as relações entre a política e a economia, e que, em última
análise, sustenta o poder.
A coragem que Passos Coelho teve em deixar cair Salgado
em 2014 é um gesto pelo qual o país lhe estará eternamente grato, mas a
recaptura do poder por António Costa em 2015 permitiu que a tragédia do BES (e
de Sócrates) permanecesse como um grande impensado
O grande problema
em Portugal não é a existência de corruptos. Corruptos há em todo o lado,
incluindo na Noruega e na Dinamarca. O grande problema é a cultura de
corrupção, porque ela corrompe indivíduos que noutros ecossistemas não seriam
corrompíveis. Alguns dos nomes que abrem este artigo são gestores altamente
qualificados, que teriam emprego em qualquer país. Eles não se deixaram
corromper ao chegarem ao topo das suas empresas. É o contrário disso, e é este
contrário que é terrivelmente pernicioso: eles não teriam chegado ao topo das
suas empresas se não se tivessem deixado corromper. Queres ser um escuteiro ou
um menino de coro? Então vai ser CEO para a Noruega ou para a Dinamarca.
Esta cultura
mafiosa, personificada pela dupla Sócrates-Salgado mas que até à queda do BES
se estendeu a todos os interstícios do regime, só tem uma diferença
significativa em relação à Itália da década de 90: não recorre à violência e às
bombas. Aquilo a que estamos a assistir no presente – de Joe Berardo a Luís
Filipe Vieira – ainda são ondas de choque da queda do BES, mas aqueles tempos
não ficaram para trás. A coragem que Passos Coelho teve em deixar cair Salgado
em 2014 é um gesto pelo qual o país lhe estará eternamente grato, mas a
recaptura do poder por António Costa em 2015 permitiu que a tragédia do BES (e
de Sócrates) permanecesse como um grande impensado.
Não, o governo de
Costa não é o governo de Sócrates. Os banqueiros de 2021 não são os de 2011.
Nesse aspecto, o país está melhor. Mas só está melhor até voltar a estar pior,
porque não ficámos vacinados – limitámo-nos a tomar um analgésico. As
estruturas de corrupção não foram destruídas. A democracia continua a não estar
interessada em corrigir as suas falhas. E no dia em que aparecer um novo DDT, o
regime estará outra vez disponível para se vender ao melhor preço, porque é
esse o seu fado e a sua vocação.
Sem comentários:
Enviar um comentário