Arábia
Saudita: Uma potência assustada pode ser perigosa
JORGE ALMEIDA
FERNANDES
10/01/2016 - PÚBLICO
O
Irão é a obsessão dos sauditas, que o encaram como uma ameaça
vital. Agora é a Casa de Saud que se sente cercada e se mostra mais
agressiva
A Arábia Saudita é
uma monarquia poderosa, vulnerável e perigosa porque assustada. A
execução de 47 pessoas no dia 2 de Janeiro, entre elas um líder
religioso xiita saudita, o xeque Nimr al-Nimr, teve uma repercussão
internacional. A reacção do Irão foi virulenta, cavando mais a
hostilidade entre o mundo sunita e o mundo xiita e criando alarme
sobre o risco de conflito militar entre sauditas e iranianos.
O pano de fundo não
é uma “guerra religiosa” entre sunitas e xiitas mas um conflito
entre potências que usam as bandeiras religiosas para mobilizar
aliados e legitimar a sua luta pela hegemonia. O pano de fundo é o
colapso da ordem regional após as “primaveras árabes” e o
distanciamento dos Estados Unidos. Morreu a ordem desenhada pelas
potências coloniais no fim da I Guerra Mundial.
Riad sente-se em
perigo. Com o acesso ao poder do rei Salman, em Janeiro de 2015,
lançou-se numa ofensiva para recuperar a supremacia e afirmar
perante os EUA a sua autonomia estratégica, a começar pelo intento
de torpedear o acordo nuclear com Teerão.
A execução de Nimr
não foi um acto precipitado. Teerão fizera repetidos avisos a Riad
para não tocar em Nimr. O novo rei quis fazer perder a face ao
ayatollah Khamenei. Este respondeu à letra, augurando uma “vingança
divina” sobre a Casa de Saud. Cresce de parte a parte uma retórica
bélica.
No entanto, as 47
execuções têm outra face. Se foram mortos quatro xiitas, os
restantes 43 serão jihadistas sunitas, entre eles Faris al-Zaharani,
preso desde 2004 e retratado pela imprensa saudita como o “principal
ideológo da Al-Qaeda”. Explica Angus McDowall, da Reuters, que a
mensagem é clara: para lá do Irão, os sauditas temem a ameaça
ideológica dos jihadistas que reivindicam a liderança das correntes
fundamentalistas e desafiam o estatuto dos Saud como “árbitros da
ortodoxia religiosa e legítimos governantes do país”.
O declínio árabe
Um editorial do Le
Monde, no dia 4, ilustra o alarme. “Como os sonâmbulos de 1914, a
Arábia Saudita e o Irão parecem avançar inexoravelmente para o
abismo da guerra. Cada acção de um provoca a reacção do outro, e
nenhum encara abdicar da última palavra na escalada em curso.”
O alarme será algo
exagerado. Iranianos e sauditas preferem confrontar-se fora dos seus
territórios, sem envolver os seus exércitos e sacrificar as suas
populações, em “guerras por procuração”, como na Síria.
Os
sauditas não são capazes de aceitar um mundo em que o secretário
de Estado americano [John Kerry] fala com o seu homólogo iraniano no
seu BlackBerry
Vali Nasr, analista
americano
Os sauditas têm
motivos de preocupação. As potências árabes parecem em declínio.
O Egipto desapareceu como líder regional. O Iraque permanece
dividido e a Síria em guerra civil. Para Salman, só a Arábia
Saudita pode exercer a liderança do mundo árabe e travar o Irão.
Entretanto, a
posição americana está a mudar e não só devido à sua “fadiga
militar” no Médio Oriente. Barack Obama deu prioridade ao acordo
nuclear com o Irão e à viragem para a Ásia. E há outro factor:
“Num Médio Oriente em rápida mudança, os EUA vislumbram uma
diminuição da influência árabe pela erosão do sistema estatal,
decorrente da falta de legitimidade política, de décadas de
autocracia, da ascensão de políticas identitárias que estão a
desencadear um sectarismo sangrento e sem precedentes numa larga
frente, do Golfo ao Mediterrâneo” (Al-Arabiya, 8 de Novembro de
2014).
Washington admite
que a cooperação com o Irão poderia atenuar as linhas de fractura
entre os mundos sunita e xiita. Mas observa o analista americano Vali
Nasr: “Os sauditas não são capazes de aceitar um mundo em que o
secretário de Estado americano [John Kerry] fala com o seu homólogo
iraniano no seu BlackBerry.”
A Casa de Saud
A Arábia Saudita
não é um país “como os outros”. O próprio nome a liga
indissoluvelmente a uma família. Tem as maiores reservas de petróleo
do planeta. As peregrinações a Meca ilustram o seu lugar central no
mundo muçulmano.
O Estado foi fundado
por Abdulaziz ibn Saud (1875-1953). O clã Saud, que dominava a
região de Riad, foi expulso no século XIX pelos otomanos e um clã
rival. Em 1902, Ibn Saud abandona o seu refúgio do Kuwait e, numa
operação audaz, reconquista Riad. Aproveitando a derrocada do
Império Otomano no fim da I Guerra Mundial, ocupa a maior parte da
Península Arábica. Em 1925 conquista o Hejaz, a ocidente, o que lhe
dá a guarda dos lugares sagrados: Meca e Medina. Em 1932, reúne os
seus territórios no Reino da Arábia Saudita.
Há um traço
particular na Casa de Saud: a aliança, inclusive familiar, desde o
fim do século XVIII, com um movimento religioso, o wahhabismo, que
defende o regresso a uma interpretação literal do islão. O regime
saudita não é uma teocracia, é uma osmose “entre o sabre e o
turbante”.
Em 1945, Ibn Saud e
o Presidente americano, Franklin Roosevelt, assinam junto do Canal do
Suez uma aliança estratégica: acesso privilegiado dos americanos ao
petróleo saudita em troca da segurança militar do reino garantida
pelos EUA.
Faisal, filho e
sucessor de Ibn Saud, acabará por nacionalizar a companhia
petrolífera, Aramco. Promove uma nova diplomacia. Graças aos
petrodólares, multiplicados nas crises petrolíferas, sobretudo em
1973-74, Riad lança a exportação do wahhabismo em todo o mundo,
construindo mesquitas e centros culturais, pagando madrassas (escolas
corânicas) e pregadores, comprando a influência em estados
clientes. O islão salafista expande-se nos países muçulmanos e na
Europa.
“Faisal
foi o arquitecto da moderna Arábia Saudita. Herdou um reino pobre
com um governo quase medieval e transformou-o num Estado moderno com
uma dimensão mundial”, escreve o analista americano Bruce Riedel.
Bruce Riedel,
analista americano
Agora a Casa de Saud
paga o preço. O Estado Islâmico (EI) é olhado no mundo como um
“filho ideológico” da Arábia Saudita. Os atentados de Paris
agravaram esta percepção.
A obsessão iraniana
Arivalidade com o
Irão remonta à revolução islâmica de Khomeini de 1979 e ao seu
desígnio de espalhar a nova ideologia revolucionária, com
sangrentos confrontos inclusive em Meca. O alarme volta a soar em
2003, quando a invasão americana do Iraque abre as portas a um
governo xiita e à influência do Irão, inaugurando nova etapa na
rivalidade entre os blocos sunita e xiita. Em 2011, eclodem as
“primaveras árabes” que geram uma instabilidade geral e se
propõem varrer os governantes tradicionais — o que a Casa de Saud
não tolera.
A Arábia Saudita
teve um papel central na sua liquidação. O caso emblemático é o
Egipto, em que Riad apoiou a destituição do Presidente Morsi, da
Irmandade Muçulmana, e financia a ditadura militar do general Sissi.
Faisal foi o
arquitecto da moderna Arábia Saudita. Herdou um reino pobre com um
governo quase medieval e transformou-o num Estado moderno com uma
dimensão mundial
Seguiu-se o caos:
guerras civis na Síria, Líbia e Iémen. Cresceu a instabilidade no
Líbano, na Jordânia, na Tunísia e até no Kuwait. O Irão foi a
potência que melhor explorou a situação, aumentando a sua
influência.
A grande
contra-ofensiva saudita começou em Dezembro de 2014, no fim do
reinado de Abdullah, com a descida do preço do petróleo. Foi uma
prova de força. Ao aumentar a produção e fazer cair os preços,
Riad terá visado limitar a produção do petróleo de xisto nos EUA.
Acima da renda petrolífera pôs a manutenção da sua quota no
mercado mundial, mantendo o estatuto de “árbitro” do mercado do
crude. Outro objectivo seria modernizar e diversificar a economia,
rompendo com a total dependência do petróleo. E, ao mesmo tempo,
foi um golpe para estrangular a economia iraniana.
Seguiu-se a coroação
do novo rei, Salman, 79 anos. Procedeu à centralização do poder
num triunvirato: o rei, o príncipe herdeiro Mohammed bin Nayef, e o
vice-herdeiro, Mohammed bin Salman, filho do monarca, que ocupa a
Defesa. Depressa este lança a operação no Iémen, em que Riad se
assume, contra o Irão, como “gendarme regional”. Por fim,
organiza a “coligação antiterrorista” de 34 Estados,
formalmente dirigida contra o EI, mas que o Irão interpreta como uma
tentativa para o isolar.
Potência
desestabilizadora?
Muitos analistas e
algumas agências de informação, como o BND alemão, qualificam
como “desestabilizadora” a nova política intervencionista de
Riad. Durante décadas, o país quis ser “um pólo de estabilidade
na região”, papel inerente “à sua cultura interna
ultraconservadora”, sublinha David Rigoulet-Roze, especialista da
geopolítica saudita. Esta viragem começou com as “primaveras
árabes” e acentuou-se com Salman. “Há uma manifesta mudança,
tanto em termos de imagem como de política, porque a estratégia
mudou.” É uma política “errática” que é percebida como
“desestabilizadora”. Previne Rigoulet-Roze: “Toda a estratégia
saudita deve ser lida à luz da obsessão do Irão. (...) Antes, era
o Irão que se sentia cercado, hoje, é paradoxalmente a Arábia
Saudita.”
Assinala a analista
Xenia Wickett, do think tank britânico Chatham House, que as
notícias da turbulência no Médio Oriente inundam os media. “No
entanto, uma muito maior e mais fundamental mudança está a
acontecer: a reemergência do Irão na comunidade internacional. As
consequências desta mudança serão profundas, mas muita gente em
Washington parece cega perante elas.” As crescentes tensões dos
últimos dias entre iranianos e sauditas apenas realçam a
importância daquele facto. “[Os EUA] têm de saber gerir o recente
aventureirismo do seu aliado saudita perante a reemergência do Irão
como potência regional.”
“Os que sabem não
falam”
A monarquia saudita
está sob grande pressão noutras frentes. Caiu a receita do
petróleo. O Governo decretou uma redução das gigantescas
subvenções sociais e adoptou um orçamento de austeridade.
Propõe-se lançar uma radical reforma, incluindo privatizações e a
atracção de investimento estrangeiro, visando a diversificação da
economia. Mas o corte da despesa social tem um limite político. Os
sauditas não pagam impostos, têm educação e saúde gratuitas e
tudo é altamente subsidiado, da electricidade à habitação. Dois
terços dos habitantes são empregados pelo Estado. É um pacto de
“bem estar por obediência”.
Por outro lado, Riad
gasta milhões de milhões para evitar o colapso de estados aliados,
como o Egipto, para sustentar os combatentes sunitas no estrangeiro,
como na Síria, ou financiar a actividade religiosa no estrangeiro,
para lá da fortuna que custa a guerra iemenita.
Uma
muito maior e mais fundamental mudança está a acontecer: a
reemergência do Irão na comunidade internacional. As consequências
desta mudança serão profundas
Xenia Wickett,
Chatham House
Há outras
incógnitas. Salman será o último rei filho de Ibn Saud.
Seguir-se-á a geração dos netos: cerca de 200 príncipes
disputando honras e rendas. A centralização do poder por Salman
terá criado tensões na família real. Também o imenso e
ultraconservador establishment religioso não abdicará dos seus
privilégios. Por outro lado, a monarquia tem de ter em conta as
aspirações dos jovens, mais cultos do que ontem: 70% dos sauditas
têm menos de 30 anos. E se se fala em reformas económicas nenhuma
reforma do absolutismo é concebível.
“O que sobretudo
nos falta saber é como os sauditas olham os assuntos estrangeiros
que afectam as circunstâncias internas, criando ameaças domésticas
que consideram ainda mais assustadoras do que a própria ameaça
externa”, escreve o analista americano Kenneth M. Pollack. E cita
Greg Gause, especialista da Arábia Saudita: “Os que sabem não
falam e os que falam não sabem.”
Se a Arábia Saudita
está assustada também assusta, por outra razão. O desmoronamento
do regime seria inimaginável. Diz ao Financial Times um veterano
diplomata britânico: “Livrem-se da Casa de Saud e estarão a
gritar pelo seu regresso no prazo de seis meses.”
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