Colecção Miró do BPN saiu ilegalmente de Portugal e
leilão está em causa
CLÁUDIA CARVALHO e JOANA AMARAL CARDOSO 04/02/2014 – in Público
Ministério Público pediu suspensão da venda em Londres e já
ouviu testemunhas e decisão do tribunal é conhecida nas próximas horas.
Direcção-Geral do Património denuncia saída ilícita das 85 obras do catalão.
A colecção Miró do Banco Português de Negócios (BPN), que
desde a nacionalização do BPN é propriedade do Estado e cuja venda em leilão
foi agendada com a Christie’s para esta terça e quarta-feira, saiu ilegalmente
de Portugal, diz a Direcção-Geral do Património. O Tribunal Administrativo do
Círculo de Lisboa ouviu nas últimas horas testemunhas na sequência da
providência cautelar do Ministério Público que pede a suspensão da venda de 85
obras do artista catalão — uma delas é a directora-geral do Património, que
denunciou num documento enviado ao Parlamento que a expedição das obras para
Londres foi ilícita.
A decisão do tribunal não é ainda conhecida, apontando
fontes judiciais à Lusa, bem como fontes próximas do processo ouvidas pelo
PÚBLICO, que a decisão do tribunal deve ser conhecida ao final da manhã de
terça-feira, horas antes do início do leilão em Londres. No Tribunal
Administrativo do Círculo de Lisboa estiveram presentes, além de Isabel
Cordeiro, representantes da Parvalorem, sociedade criada no âmbito do
Ministério das Finanças para recuperar créditos do BPN e que é proprietária das
obras, da Christie’s e do Ministério das Finanças. Na sessão foi também ouvida
por videoconferência a deputada socialista Gabriela Canavilhas, que se
encontrava nos Açores.
A ex-ministra da Cultura foi, com Inês de Medeiros, José
Magalhães, Pedro Delgado Alves e Vitalino Canas, uma das deputadas autoras de
uma exposição à Procuradoria-Geral da República (PGR) que originou o pedido do
Ministério Público para impedir a venda da colecção. O pedido, com carácter de
urgência, foi conhecido segunda-feira e resultou na sessão em tribunal, que
começou ao final da tarde e que foi presidida pela juíza Guida Jorge. No mesmo
dia, o PÚBLICO teve acesso a um documento da Direcção-Geral do Património
Cultural, assinado por Isabel Cordeiro, que denuncia que “não foram cumpridos”
os “procedimentos legais” para a expedição da colecção de Portugal rumo a
Londres.
O socialista José Magalhães disse ao PÚBLICO que os
deputados se dirigiram à PGR, e não ao tribunal, porque desta forma o processo
avançaria mais rapidamente. “A PGR tem meios muito importantes de avaliação e
representa uma entidade com um peso institucional muito grande”, diz Magalhães,
para quem a PGR “empresta uma autoridade especial às iniciativas de defesa do
interesse público” — o Ministério Público representa o Estado e está aqui a
interceder num caso no qual o papel do Estado é posto em causa.
Isso seguramente pesa também no processo de avaliação do
tribunal, que é muito melindroso e difícil”, acrescentou o deputado, defendendo
que “será um imbróglio consumar o leilão”, marcado para esta terça e
quarta-feira a partir das 19h.
José Magalhães acredita ainda que a realização do leilão
representa “um enorme risco” para a leiloeira, para um eventual comprador ou
para o Estado português. Isto porque, lembra, “no Direito o que se faz de mal
desfaz-se. A Christie’s está ciente do risco em que incorre ao participar na
consumação de um facto que é controverso”.
Ao PÚBLICO, a responsável pela comunicação da Christie’s,
Hannah Schweiger, disse que a leiloeira está a par dos acontecimentos em
Portugal, escusando-se a fazer mais comentários. O PÚBLICO questionou o
Ministério das Finanças sobre a audição em tribunal e sobre a presença,
segunda-feira ao final da tarde, do presidente da Parvalorem Francisco Nogueira
Leite na Secretaria de Estado das Finanças, mas não obteve resposta. Também o
secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, não esteve disponível
para comentar o caso.
Uma colecção única
Para Gabriela Canavilhas, esta acção do Ministério Público
prova “que as instituições funcionam”, “reforçando a confiança dos cidadãos”.
De “consciência tranquila” por ter feito o que acha correcto, a ex-ministra da
Cultura dissera na semana passada ao PÚBLICO que a iniciativa da providência
cautelar para impedir o leilão surge na esteira do caso Crivelli — o actual
Governo autorizou o empresário Miguel Pais do Amaral a vender no estrangeiro
uma obra para a qual vários especialistas emitiram pareceres em que pediam que
a pintura Virgem com o Menino e Santos fosse classificada como Tesouro
Nacional. A deputada socialista tem sido nas últimas semanas uma das vozes mais
críticas em relação à decisão do Governo de vender esta colecção que contempla
praticamente todas as fases da vida artística de Joan Miró.
E é exactamente esta característica que faz desta colecção
“uma das mais extensas e impressionantes ofertas de trabalhos do artista que
alguma vez foi a leilão”, como escreveu a Christie’s quando anunciou o leilão
no final de 2013. São 85 obras que percorrem as diferentes fases da produção
artística do catalão, da sua vida e dos acontecimentos do seu tempo, motivo
também pelo qual a directora-geral do Património defendeu a sua permanência em
Portugal e a consequente integração num museu público português.
Considerando “indiscutíveis as potencialidades” da
permanência da colecção em Portugal para “o desenvolvimento do tecido
museológico, cultural e, inclusive, turístico do país”, a directora-geral do
Património Isabel Cordeiro pediu a classificação da colecção Miró e
desaconselhou “a saída definitiva” das obras do país. A 13 de Janeiro, a
Secretaria de Estado da Cultura disse ao PÚBLICO que a aquisição da colecção de
Joan Miró não era considerada “uma prioridade” no actual contexto de
organização das colecções do Estado.
No documento da DGPC enviado ao presidente da Comissão
Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura, Abel Baptista, do CDS-PP, e a que o
PÚBLICO teve acesso, detalha-se que a direcção-geral sugeriu à tutela há mais
de um ano, a 20 de Setembro de 2012,
a “incorporação em museu público da colecção de 85 obras
de Joan Miró ou, em alternativa, a aquisição das melhores obras da referida
colecção pelo Estado”.
Além de pedir a classificação das obras, explica-se que o
facto de não terem sido cumpridos os prazos legais para o pedido de autorização
de expedição das obras foi denunciado à Secretaria de Estado da Cultura a 15 de
Janeiro, apenas seis dias antes da inauguração, em Londres, da exposição
pública em que a Christie’s reuniu os 85 trabalhos. A Lei de Bases do
Património Cultural obriga a que a saída de bens culturais seja precedida de
uma comunicação à DGPC com pelo menos 30 dias de antecedência, o que não
aconteceu.
Na exposição assinada por Isabel Cordeiro, relata-se ainda
que a DGPC recebeu a 16 de Janeiro os pedidos de expedição para Londres dos
advogados da Parvalorem e da Parups (a outra sociedade criada para recuperar
créditos do BPN), estando o leilão agendado para daí a 18 dias. No dia
seguinte, a DGPC pediu às sociedades a “confirmação da actual localização” da
colecção, resposta que não obteve até à data do documento enviado ao
Parlamento. Uma autorização de saída só pode ser dada com a presença das obras
em causa em Portugal.
Isabel Cordeiro diz no documento que apenas teve
conhecimento da intenção de saída destas obras a 6 de Janeiro através da
imprensa. Data em que procedeu “de imediato a DGPC à solicitação de pareceres
especializados” sobre a relevância cultural deste conjunto artístico do catalão
e as “possibilidades efectivas da salvaguarda e valorização da colecção em
território nacional”.
Os pareceres foram pedidos a David Santos, o novo director
do Museu do Chiado, e a Pedro Lapa, director do Museu Berardo, como o PÚBLICO
noticiou. Ambos destacaram a “indiscutível relevância de que se reveste a
colecção”, assim como a “importância da sua protecção legal, designadamente
através da classificação”. Foram estas informações que seguiram depois para o
secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, a 15 de Janeiro. Dois
dias depois, a 17 de Janeiro, Isabel Cordeiro desaconselhou a Barreto Xavier “a
saída definitiva da colecção”, considerando que manter as obras em Portugal é
uma “oportunidade única que constitui para o Estado português de reforçar
significativamente o seu posicionamento estratégico enquanto detentor de uma
colecção de arte moderna de primeira importância”.
O Estado espera arrecadar 35 milhões de euros com a venda
das obras em Londres, segundo a avaliação da leiloeira. Mas caso a venda não
aconteça, o contrato entre as partes obrigará o Estado português a indemnizar a
leiloeira Christie’s, disse na última edição do semanário Expresso o presidente
da Christie’s Europa, Jussi Pylkkanen.
Não sendo conhecidos valores exactos dessa potencial
indemnização, a deputada socialista Inês de Medeiros diz ao PÚBLICO que se tal
acontecer, “deve ser imputado com gestão danosa quem no Governo tomou a
decisão” de deixar sair as obras do país num contexto de ilícito.
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