O estacionamento em cima dos passeios é uma das mais frequentes manifestações de falta de civismo
Por Ana Henriques in Público
"Dos lisboetas reclama-se um maior cuidado na protecção da sua cidade, uma atitude activa na preservação do espaço público, maior civismo na segurança e na limpeza das ruas", disse o Presidente
Arrepiada, a merceeira que abastece a casa de Cavaco Silva afasta uma mão da outra até ter uns bons 20 centímetros de distância entre elas: "Eram deste tamanho e estavam mortas no chão. As ratazanas devem ter ido comer aos sacos de lixo que se acumularam junto à casa do Presidente." A pacata Travessa do Possolo, onde mora Cavaco, não escapou à avalancha de detritos ensacados na via pública, durante a semana que durou, este mês, a greve parcial da recolha do lixo em Lisboa. "Vivo aqui há 50 anos e nunca vi uma coisa assim. Era lixo por todo o lado", descreve uma reformada, Josefa Guedes. "A porteira do prédio do Presidente teve o cuidado de tirar os sacos de lixo que se foram juntando à porta dele e de os levar para ali mais à frente, para aquele intervalo entre as árvores."
Cavaco parece que adivinhava, mas as suas palavras caíram em saco roto. Dois dias antes de a greve começar tinha feito um apelo no âmbito das comemorações do 10 de Junho, este ano celebradas em Lisboa: "Dos lisboetas reclama-se um maior cuidado na protecção da sua cidade. Uma atitude activa na preservação do espaço público e dos equipamentos colectivos, maior civismo na segurança e na limpeza das ruas, um empenhamento esclarecido na salvaguarda do património histórico e arquitectónico. Sem o contributo e o brio dos lisboetas, Lisboa não cumprirá o seu desígnio de grande capital europeia."
Maior clareza era difícil. No seu discurso, feito na qualidade de lisboeta vindo do Algarve há mais de meio século, o Presidente insistiu no papel fundamental da cidadania. "Não tenhamos dúvidas: sem a participação activa dos lisboetas, sem o envolvimento permanente dos seus moradores, os autarcas desta cidade não poderão construir uma capital de futuro que respeite e defenda a herança do passado."
E se ao longo dos últimos anos se registaram mudanças positivas na relação dos habitantes da cidade com o espaço público, muito falta ainda fazer no que à higiene e ao civismo diz respeito. À frente da pasta da higiene urbana na Câmara de Lisboa durante mais de uma década, nos anos 90, o ex-vereador Rui Godinho fala da necessidade de construir um sentimento de pertença dos cidadãos ao local onde vivem e trabalham. "Se não deixamos dejectos caninos no chão de casa por que razão os deixamos na rua, que é a casa de todos?", interroga.
Mais do que o lixo fora do sítio onde devia ser colocado, os dejectos caninos são uma das pragas que causa mais irritação a quem tem ou teve responsabilidades na autarquia. "Beatas, dejectos dos cães e graffiti são três coisas que dão à cidade um aspecto miserável", observa o vereador responsável pelos espaços públicos e pela recolha do lixo, José Sá Fernandes. "Todos os dias interpelo cidadãos que atiram cigarros para o chão. É uma coisa inacreditável, feita por todo o tipo de pessoas." No caso dos tags e outro graffiti considerados poluição visual, a única maneira de acabar com o problema é fazer limpezas diárias, advoga o autarca. Só que isso custa dinheiro. Em 2012 vão ser gastos 200 mil euros em operações de remoção das pichagens. "Seria necessário à volta de um milhão e tal", estima Sá Fernandes. "O Presidente tem razão, mas as coisas não se resolvem de um dia para o outro", resume, elogiando o comportamento dos lisboetas durante a greve do lixo: "Muitos guardaram lixo em casa; outros acondicionaram-no da melhor maneira que puderam na rua", à espera de serem bafejados pelo escasso pessoal da recolha que não aderira à paralisação.
"A maior demonstração de falta de civismo de muitos lisboetas é levarem os cães a fazer as necessidades aos jardins onde brincam crianças", aponta o vereador social-democrata Victor Gonçalves. "O que a Câmara de Lisboa devia fazer era vedá-los com gradeamentos e colocar lá placas proibindo a entrada de cães, à semelhança do que acontece em muitas cidades europeias."
Especialista em planeamento regional e urbano, Pedro Costa, do Instituto de Ciências do Trabalho e da Empresa, pensa que a civilidade dos lisboetas é fundamental para o dinamismo e a qualidade de vida na cidade. "Mas não pode ser vista de forma cega e preconceituosa, nem partindo de uma retórica demasiado simplista", avisa. "Será fácil acusar o graffiter que se expressa ilegalmente numa parede da cidade. Mas se calhar o seu contributo para o ambiente cosmopolita, a qualidade de vida urbana e a integração social na cidade será bem mais importante que muitas outras "incivilidades" frequentes dos lisboetas - a do automobilista que deixa o carro estacionado em cima do passeio ou da passadeira; ou a do que pára o carro com quatro piscas no meio da rua e vai comprar o jornal; ou a do condutor do autocarro de turistas que pára no meio da rua a descarregar os passageiros e impede o trânsito na mesma rua todas as noites; ou a dos taxistas que se apropriam de uma faixa na via pública quando a praça de táxis está cheia."
São poucas as vezes em que o comportamento dos automobilistas não vem à baila quando se fala de civismo na cidade. Mas será a responsabilidade exclusivamente de quem se senta ao volante? Ex-presidente da Câmara de Cascais e antigo conselheiro de Estado, António Capucho justifica a "rebaldaria completa do estacionamento em Lisboa", os problemas de limpeza e outras maleitas com os milhares de pessoas que todos os dias chegam à cidade para trabalhar, regressando depois aos arrabaldes. "Às vezes é a própria câmara que dá os piores exemplos", acusa Fernando Jorge, da associação Forum Cidadania, para quem o discurso de Cavaco Silva peca por ilibar o poder autárquico. Explica melhor: "A EMEL [Empresa Municipal de Estacionamento de Lisboa] criou lugares de estacionamento numa zona de calçada à portuguesa da Alameda Afonso Henriques, quando no subsolo existe um estacionamento subterrâneo quase sempre vazio." Para o activista, o "desprezo dos portugueses pelo espaço colectivo" radica numa excessiva valorização da propriedade privada. "Ocupados por estacionamento privado, os largos da cidade são retratos perfeitos da falta de civismo", considera. "E o Presidente da República vem falar em civismo quando fez duas marquises em casa! Ora como cidadão tenho direito a não ver a arquitectura da minha cidade desfigurada. Atribuem este tipo de relação com o espaço público à Europa do Sul, mas a verdade é que em Atenas não encontrei uma única marquise. O desprezo pelo espaço público está ligado ao nível civilizacional da sociedade."
Costuma dizer-se que de pequenino é que se torce o pepino. E o desaparecimento da disciplina de Educação Cívica dos currículos escolares pode ter sido uma oportunidade perdida. Membro do Conselho Nacional de Educação, Emília Brederode Santos lamenta-o. "A aprendizagem do "civismo" é tanto melhor - mais eficaz, mais genuína, mais sentida - quanto mais resultar de uma verdadeira participação de quem aprende nas decisões que lhe digam respeito, directa ou indirectamente. Pode e deve começar muito cedo" na vida de cada sujeito, preconiza, ressalvando, no entanto, que a falta de civismo em Lisboa não será com certeza maior do que no resto do país. António Capucho conta como a Câmara de Cascais passou a contar com a ajuda dos chamados tutores de bairro - uma espécie de interlocutores privilegiados da autarquia para os problemas das zonas residenciais no que concerne à recolha de resíduos e à manutenção dos espaços verdes. Também Rui Godinho fala numa partilha de responsabilidades que envolva os responsáveis políticos aos mais diversos níveis, incluindo autarcas, organizações formais e informais da sociedade civil e cidadãos individuais.
A noite foi de arromba na Bica, como sucede sempre que Santo António inspira os festejos. Da avalancha de copos e garrafas com que a escadaria do bairro ficou pejada, nem sombra na tarde seguinte, apesar da greve: os cantoneiros ao serviço foram mobilizados para os bairros onde os arraiais duraram até ser dia. Ficou tudo num brinquinho. Foi já depois de terem varrido a porcaria toda que um punhado de habitantes reivindicou uma vez mais o seu direito a conspurcar o fundo da escadaria. Voltaram a amontoar os seus sacos de lixo a poucos metros do elevador em que todos os dias centenas de turistas sobem ao Bairro Alto.
No talude verdejante que separa a Travessa do Possolo das traseiras da Infante Santo o chilrear dos pássaros à hora de almoço é acompanhado por um pesado cheiro a fezes. O local é usado por homens e animais para urinar e defecar, aponta uma cliente da mercearia de Cavaco Silva. No impasse entre os prédios através do qual se acede à Infante Santo as moscas volteiam em redor dos excrementos de cão. O cartaz de venda de um prédio acabado de construir anuncia uma Lapa "cosmopolita e tranquila". Mas nem por isso mais limpa que o resto da cidade.
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