sábado, 1 de outubro de 2022

Putin joga a sua última cartada. Para disfarçar a derrota / Putin plays his last card. To disguise defeat

 



ANÁLISE

Putin joga a sua última cartada. Para disfarçar a derrota

 

O contrato que fez com os russos, de que continuariam a viver as suas vidas desde que o apoiassem, foi quebrado. Resta-lhe a fuga para a frente: dizer que está a travar uma guerra “defensiva” contra o Ocidente.

 

Teresa de Sousa

30 de Setembro de 2022, 18:17

https://www.publico.pt/2022/09/30/mundo/analise/putin-joga-ultima-cartada-disfarcar-derrota-2022464

 

1. Há duas partes distintas no discurso de Vladimir Putin durante a cerimónia de anexação “oficial” de quatro regiões da Ucrânia à Federação Russa. Uma delas, já a conhecemos bem. Dirige-se ao Ocidente, com especial relevância para os Estados Unidos e para a NATO. Repetiu a doutrina que pôs de pé ao longo da última década e que enforma a sua acção política e militar desde 2012. O Ocidente está em acelerado declínio, porque professa uma ideologia decadente, que abandonou os valores cristãos e caiu na devassa da homossexualidade, da libertinagem, do abandono dos valores tradicionais da família, que só valoriza os direitos dos indivíduos em detrimento da sociedade e da nação. Esquecemo-nos muitas vezes deste lado ultraconservador da doutrina revisionista de Putin da ordem interna e internacional, que esteve mais uma vez presente na sua alocução na cerimónia de anexação de quatro províncias ucranianas e que as Nações Unidas e as democracias já classificaram de farsa ilegal.

 

Na dimensão antiocidental do seu discurso, há dois inimigos principais: os Estados Unidos e a NATO, que classificou de imperialistas e russófobos, cujo fim é transformar a Rússia numa “colónia”. Voltou a acusar a NATO de expandir as suas fronteiras até às fronteiras da Rússia, forçando-a a defender-se. Nem sequer se esqueceu de repetir que a queda da União Soviética foi “a maior tragédia geopolítica do século XX”. Finalmente, mostrou-se disposto a negociar, acrescentando que as quatro regiões anexadas são “inegociáveis”.

 

O discurso de Putin é, nesta dimensão, uma espécie de espelho invertido das suas próprias ambições. Foi a Rússia que invadiu a Ucrânia. É a Rússia que viola sistematicamente a lei internacional, quando quer alterar as suas fronteiras pela força. É a Rússia que defende uma ordem imperial anacrónica, segundo a qual as nações mais pequenas apenas podem existir se se subordinarem à vontade das grandes potências, aceitando pertencer à sua “zona de influência”. É o Presidente russo que quer repor as fronteiras do império soviético. Nada disto é novo.

 

2. Depois, há a parte do seu discurso que justifica a anexação de quatro províncias da Ucrânia, em resultado de “referendos” em que votaram “milhões” de pessoas, exprimindo esmagadoramente “a sua vontade de pertencer à Rússia”. Parte dos territórios agora anexados estão nas mãos da Ucrânia ou são zonas de conflito.

 

A primeira pergunta que se pode colocar é a quem Vladimir Putin pretende enganar. Não é a comunidade internacional que, seja qual for a sua posição, reconhece a farsa e a violação das leis internacionais. Não, muito menos, os ucranianos que ainda vivem ou já viveram nessas regiões. E também não as lideranças ocidentais, que não vão alterar o seu apoio à Ucrânia, a não ser para reforçá-lo.

 

 

 

 

 

Resta o seu próprio povo, fechado ao mundo e sujeito quase só à informação que lhe chega através dos órgãos de comunicação oficiais que o Kremlin controla totalmente. Sem nada de significativo para lhes apresentar na frente militar, resta-lhe a fábula da “libertação” dos ucranianos do jugo “nazi” de Kiev, que lhes vende desde o início da “operação militar especial”. Não foi recebido na Ucrânia com bandeiras e flores, mas com uma resistência inesperada, heróica e eficaz, graças ao armamento ocidental. Está a perder a guerra, incluindo nas regiões que acaba de declarar parte integrante da Rússia. A mobilização de reservistas não lhe podia estar a correr pior. O contrato que fez com os russos, de que continuariam a viver as suas vidas desde que o apoiassem, foi quebrado. Resta-lhe a fuga para a frente: dizer que está a travar uma guerra “defensiva” contra o Ocidente. Enquanto milhares de russos fogem como podem da mobilização, organiza uma grande festa na Praça Vermelha em homenagem às novas regiões regressadas à mãe-pátria.

 

3. O que vem a seguir, ainda não sabemos. Putin já tem poucas cartas para jogar. Com as anexações, pode dizer que a Ucrânia, armada pelo Ocidente, está a atacar território russo e que a Rússia tem direito “legal” a defender-se. É mais uma peça de ficção na qual ninguém acreditará. Já jogou a cartada do medo, com a ameaça de recurso às armas nucleares, que não teve ainda qualquer efeito. A sabotagem dos gasodutos Nord Stream 1 e 2 (nenhum dos dois estava a funcionar) é uma espécie de aviso de que pode atingir infra-estruturas vitais para a Europa. Aconteceu, no entanto, fora das águas territoriais da Dinamarca e da Suécia. Dentro das águas territoriais, seria motivo para equacionar o Artigo 5.º do Tratado de Washington. Está prestes a entrar em funcionamento um novo gasoduto que liga a Noruega, grande produtora de gás, à Polónia através do Báltico. É mais uma ameaça velada.

 

Resta-lhe a sua derradeira aposta: tentar prolongar a guerra no terreno o tempo suficiente para que a Europa enfrente um Inverno difícil e se vá cansando da guerra. Espera uma derrota de Joe Biden nas eleições de meio mandato, em Novembro, contando com o único ás de trunfos que ainda lhe resta na mão: Donald Trump. Continua à espera de que o Ocidente se divida e, para isso, Trump e os seus partidários seriam uma ajuda preciosa.

 

O Governo de Zelensky acaba de pedir a adesão da Ucrânia à NATO. É a resposta à nova escalada de Putin. No início do conflito, Kiev mostrou disponibilidade para abdicar da pretensão à NATO, aceitando até um estatuto de neutralidade garantida. Não lhe serviu de nada. Subiu a parada. Está a ganhar a guerra. Cabe ao Ocidente responder.


ANALYSIS

Putin plays his last card. To disguise defeat

 

The contract you made with the Russians, that they would continue to live their lives as long as they supported you, was broken. He remains to escape to the front: to say that he is waging a "defensive" war against the West.

 

Teresa de Sousa

September 30, 2022, 18:17

https://www.publico.pt/2022/09/30/mundo/analise/putin-joga-ultima-cartada-disfarcar-derrota-2022464

 

1. There are two distinct parts to Vladimir Putin's speech during the "official" annexation ceremony of four regions of Ukraine to the Russian Federation. One of them, we know her well. It is addressing the West, with particular relevance to the United States and NATO. He repeated the doctrine he has set up over the last decade and has shaped his political and military action since 2012. The West is in rapid decline because it professes a decadent ideology, which has abandoned Christian values and fallen into the debauchery of homosexuality, libertinism, the abandonment of traditional family values, which only values the rights of individuals to the detriment of society and the nation. We often forget this ultraconservative side of Putin's revisionist doctrine of the internal and international order, which was once again present in his speech at the annexation ceremony of four Ukrainian provinces and which the United Nations and democracies have already called an illegal farce.

 

In the anti-Western dimension of his speech, there are two main enemies: the United States and NATO, which he called imperialists and Russophobes, whose purpose is to turn Russia into a "colony". He again accused NATO of expanding its borders to Russia's borders, forcing it to defend itself. He did not even forget to repeat that the fall of the Soviet Union was "the greatest geopolitical tragedy of the 20th century". Finally, he was willing to negotiate, adding that the four annexed regions are "non-negotiable".

 

Putin's speech is, in this dimension, a kind of inverted mirror of his own ambitions. It was Russia that invaded Ukraine. It is Russia that systematically violates international law when it wants to change its borders by force. It is Russia that advocates an anachronistic imperial order, according to which the smaller nations can only exist if they subordinate themselves to the will of the great powers, accepting to belong to their "zone of influence". It's the Russian President who wants to reset the borders of the Soviet Empire. None of this is new.

 

2. Then there is the part of his speech that justifies the annexation of four provinces of Ukraine as a result of "referendums" in which "millions" of people voted, overwhelmingly expressing "their will to belong to Russia". Some of the territories now annexed are in Ukraine's hands or are conflict zones.

 

The first question that can be asked is who Vladimir Putin intends to deceive. It is not the international community that, whatever its position, recognises the farce and violation of international law. No, much less, Ukrainians who still live or have lived in these regions. Nor will the Western leaders, who will not alter their support for Ukraine, unless to strengthen it.

 

 

 

 

 

It remains its own people, closed to the world and subject almost only to the information that arrives at them through the official media that the Kremlin fully controls. With nothing significant to present to them on the military front, he remains the fable of the "liberation" of the Ukrainians from the "Nazi" yoke of Kiev, which has been selling them since the beginning of the "special military operation". It was not received in Ukraine with flags and flowers, but with an unexpected, heroic and effective resistance, thanks to Western armament. He is losing the war, including in the regions he has just declared an integral part of Russia. The mobilization of reserts couldn't be going any worse. The contract you made with the Russians, that they would continue to live their lives as long as they supported you, was broken. He remains to escape to the front: to say that he is waging a "defensive" war against the West. As thousands of Russians flee as they can from the mobilization, he organizes a large party in Red Square in honor of the new regions returned to their motherland.

 

3. What comes next, we don't know yet. Putin already has few cards to play. With the annexations, you can say that Ukraine, armed by the West, is attacking Russian territory and that Russia has a "legal" right to defend itself. It's more of a piece of fiction that no one will believe. He has already played the wave of fear, with the threat of recourse to nuclear weapons, which has not yet had any effect. The sabotage of nord stream 1 and 2 pipelines (neither was working) is a kind of warning that it could reach vital infrastructure for Europe. It happened, however, outside the territorial waters of Denmark and Sweden. Within territorial waters, it would be grounds for equating Article 5 of the Washington Treaty. A new gas pipeline connecting Norway, the major gas producer, to Poland via the Baltic is about to start operating. It's more of a veiled threat.

 

He remains his ultimate bet: to try to prolong the war on the ground long enough for Europe to face a difficult winter and get tired of the war. He expects a defeat of Joe Biden in the midterm elections in November, counting on the only ace of trump shading left in his hand: Donald Trump. He continues to wait for the West to divide, and for that, Trump and his supporters would be a precious help.

 

The Government of Zelensky has just asked for Ukraine's membership of NATO. It's the answer to Putin's new escalation. At the beginning of the conflict, Kiev showed willingness to give up its claim to NATO, even accepting a guaranteed neutrality status. It didn't do you any good. You're up the next. He's winning the war. It's up to the West to respond.


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