quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

“Talvez a pandemia tenha acabado com as ‘cidades superstar’”

 


ENTREVISTA

“Talvez a pandemia tenha acabado com as ‘cidades superstar’”

 

Ben Wilson, historiador, diz que deixar entrar os carros na cidade foi “um erro histórico” que é urgente corrigir. “Não há nenhuma solução humana para os extremos climáticos”, afirma.

 

João Pedro Pincha (Texto) e Daniel Rocha (Fotografia)

1 de Dezembro de 2021, 20:00

https://www.publico.pt/2021/12/01/local/entrevista/pandemia-acabado-cidades-superstar-1986391

 

Por muito que a vida urbana com a covid-19 nos tenha assustado, as cidades são a melhor forma de os humanos estarem juntos, argumenta o historiador britânico Ben Wilson, que em Metrópoles (ed. Desassossego) passa em revista sete mil anos de urbanização. “Estamos a tornar-nos mais suburbanos do que urbanos”, analisa.

 

A história de Uruk parece condensar todas as glórias e misérias das cidades. É o destino de qualquer metrópole ser palco de grandes inovações tecnológicas e, ao mesmo tempo, de desigualdades sociais extremas?

Uruk é a primeira vez que as pessoas se juntam para viver de uma forma radicalmente diferente. Eu quis contar essa história através da Epopeia de Gilgamesh, que é sobre as tensões entre viver de uma forma que então parecia ser profundamente artificial. Na Epopeia, a real natureza humana existe fora da cidade e Gilgamesh é seduzido para ir para a cidade com a promessa de sexo, festas, cerveja... civilização! Os sumérios inventaram palavras que distinguem bem os habitantes urbanos de quem vive fora da cidade. A distinção é clara e as suas ansiedades são bastante relevantes para nós: onde é que encontramos a autenticidade? Será dentro ou fora da cidade? Gilgamesh, no fim da Epopeia, tenta encontrar a imortalidade, mas a que descobre é a imortalidade da cidade, das coisas escritas. A sociedade complexa que levou os sumérios a criar as primeiras cidades traz ao de cima todas as tensões: será que isto é bom para nós? A resposta é que é bom para nós enquanto espécie, enquanto colectivo. Viver na cidade maximiza o nosso potencial, junta mentes que competem, colaboram, inventam. Dessa complexidade nasce a escrita, o dinheiro, mas também a escravatura, a tirania, a morte. Paga-se um preço alto por viver na cidade. O que distingue a cidade de outras formas de organização humana é a hierarquia social. As cidades precisam de muita força humana para funcionar e para libertar outras mentes para fazerem descobertas fabulosas como escrever, inventar a roda ou criar artefactos que tornem a vida urbana agradável. Cria-se uma pirâmide de desigualdade e os corpos humanos são um bem transaccionável. Ou seja, para se produzir esta sociedade milagrosa que não se equipara a nada que a espécie humana tenha conhecido antes, foi preciso muito suor e sangue de outras pessoas.

 

Nunca houve uma versão utópica de cidade...

[Na Babilónia] os arqueólogos ainda não encontraram o tipo de coisas que se encontra nos sítios sumérios, como vestígios da escravatura, de guerra ou de uma hierarquia para lá da religiosa, parece uma sociedade mais colaborativa. Mas isto parece demasiado bom para ser verdade. Essa versão de um Jardim do Éden urbano talvez se deva ao facto de nós não sabermos o suficiente. Uma ideia que perpassa pelo livro e pela História é que as cidades nos proporcionam coisas tão boas que, se acertássemos na maneira de as construir, talvez tivéssemos melhores cidades e melhores pessoas. Mas isso é, de certa forma, uma ilusão. Tentar impor uma ideia de racionalidade ou de bom desenho numa cidade causa geralmente mais prejuízo do que benefício. As cidades crescem de forma relativamente orgânica, mas está profundamente enraizado no nosso pensamento judaico-cristão que existe uma tensão entre a cidade dos homens, que é suja, confusa, cheia de vícios, imoral, por contraponto a uma cidade de Deus, que é melhor. Os judeus foram levados como prisioneiros para Babilónia, sentiram-no como uma punição de Deus. Os sumérios, pelo contrário, consideram que a cidade é um presente dos deuses, que são sortudos. Devido à nossa tradição [judaico-cristã] foi-nos incutida esta ideia de fugir da cidade para encontrar os nossos eus autênticos noutro sítio qualquer ou de expurgar as cidades dos seus vícios. Isto corre pela História, com Platão, Tomás de Aquino, até Haussmann, em Paris. Há sempre esta ideia de que se pode desatar a História, tirar o lixo e fazer uma cidade melhor. O custo disso tem sido muito grande sempre que se tenta mudar significativamente as cidades, quando se tenta varrer os problemas. Têm sido sempre as comunidades mais pobres a sofrer com esse experimentalismo. As cidades saudáveis são aquelas em que há processos participativos em que as comunidades constroem para si próprias, de baixo para cima – mas isso parece ser raro.

 

Da forma como descreve a destruição de Ur emerge a ideia de que há uma força vital, subtil, nas cidades, mesmo que as suas populações sejam dizimadas. Há uma atracção inescapável nas cidades?

Sim, as cidades são muito resilientes, conseguem aguentar muitos choques externos. Acho que vamos aprender isso no século actual, com as alterações climáticas. O que aconteceu com Ur foi, para começar, que era um local sagrado, era a casa dos deuses. Mas, mesmo de um ponto de vista secular, é muito raro uma cidade ser completamente destruída. Há um apego das pessoas. As cidades são tão grandes e complexas que existem tanto na imaginação como fisicamente. Mesmo quando são destruídas, a memória transcende a destruição física. Em Hiroxima, muito pouco tempo depois de ter sido totalmente devastada, os carteiros percorriam as ruas sabendo exactamente onde estavam as casas. Isso é um acto mais da imaginação do que da cidade física. Houve uma espécie de reafirmação da normalidade. O apego das pessoas ao sítio, a mitologia, as lendas que se contam, isso é o que dá força à cidade, mais do que as estruturas físicas. 

 

Se, como argumenta na introdução, “a mais profunda divisão” nas sociedades modernas é “entre as grandes metrópoles e as povoações, os subúrbios”, porque é que não é desejável, como também argumenta, que as pessoas procurem o campo ou subúrbios mais humanizados?

Quando somos novos temos interesse, se formos ambiciosos, em viver na cidade, porque fazemos contactos, expomo-nos a experiências, à aleatoriedade da vida. A grande energia das cidades está fora das instituições, fora dos edifícios, acontece mais na zona informal e não-oficial da cidade. Quando nos tornamos mais velhos e constituímos família, há uma vontade de sair da cidade. Historicamente, os subúrbios foram uma reacção contra os aspectos mais desagradáveis das cidades. A suburbanização foi uma tentativa de criar um equilíbrio entre a cidade e o campo. Quando eu escrevi este livro, num período pré-pandemia, havia um movimento de regresso às cidades, como locais de riqueza, poder, conhecimento. Muita gente migra para a cidade porque não tem outra escolha. Está a acontecer uma revolução suburbana num sentido negativo. As cidades estão a crescer muito rápido no que toca ao número de pessoas e ao espaço que ocupam. É assustador ver a quantidade de espaço que as cidades estão a conquistar, muitas vezes em prejuízo da biodiversidade. Isso não é a suburbanização utópica de busca do melhor sítio para viver, é uma suburbanização muito rápida, muito fora de controlo e que não serve realmente as pessoas que vivem nesses locais e que tentam escapar à pobreza. Estamos a tornar-nos mais suburbanos do que urbanos. O desafio – e foi por isso que quis escrever este livro – é destrinçar o que é bom e mau nas cidades. As cidades, no seu melhor, têm a capacidade de resgatar pessoas da pobreza, de tornar os países mais ricos, de criar inovação. Isso só se consegue na cidade, não no subúrbio.

 

Mas será possível humanizar e melhorar subúrbios onde habitam milhares ou milhões de pessoas, ou isso é apenas uma utopia europeísta?

Seja onde for, à medida que as populações vão ficando mais ricas, verifica-se o mesmo processo de suburbanização, de criar zonas de baixa densidade, com casas e jardins. Historicamente, os subúrbios cresceram ao longo dos percursos e dos transportes: caminhar, andar a cavalo, vias férreas, estradas. Isso pode tornar-se um grande problema. Não podemos viver todos no centro da cidade, seria fisicamente impossível e completamente indesejável. A urbanização está associada a confusão, não em termos de higiene, mas de selva de funções. Temos tudo o que precisamos ao pé – essa é que é a essência da urbanização. Temos acesso a cultura, comida, café, outras pessoas, trabalho. Isto forma um colectivo que pode ser extensível aos subúrbios. Temos de parar de ver as cidades como centros rodeados por dormitórios. Pensar em formas de viver mais sustentáveis, com padrões ambientais aceitáveis, de ter uma vida rica à nossa porta, que dê prazer e vá além da mera funcionalidade, vai ser muito importante numa época em que todos precisamos de pensar em sustentabilidade. As cidades mais avançadas da actualidade são as que se estão a tornar resilientes às alterações climáticas. Ou seja, que têm mais espaços permeáveis e mais sombras. Isso são soluções naturais, é usar o ecossistema como infra-estrutura. Portanto é possível ter o melhor dos subúrbios no centro das cidades se se planear como deve ser. Isso implica ter menos carros, que ocupam montanhas de espaço. O acesso a espaços verdes mesmo em zonas urbanas muito densas está a criar-se agora – Singapura, Copenhaga e Paris são bons exemplos. Combinar o verde com a densidade é um desafio urgente.

 

Os subúrbios cresceram, em grande parte, devido à mobilidade automóvel...

Sim. As cidades são adaptáveis, são capazes de uma certa auto-organização, de adaptabilidade, de metamorfose. As cidades com vistas mais largas estão a antecipar o que vai ter de mudar. Nem todas têm a sorte de ter um sistema de transporte público de grande dimensão, mas as cidades são as que produzem o maior volume de emissões [de gases com efeito de estufa] e são também as que têm capacidade de mudar. Porque vivemos juntos, vivemos em contacto permanente, se aproveitarmos esse poder podemos torná-las muito mais eficientes. Dizer que não podemos mudar porque os carros nos aprisionaram seria um perigo para o nosso futuro. Do que precisamos é de pensamento inovador sobre a forma como organizamos as cidades. Quer gostemos ou não, este vai ser um século urbano e a questão é se fazemos as coisas bem. Não ajuda dizer, como aconteceu durante a pandemia, “vamos todos sair da cidade”. Isso só é possível aos ricos, aos felizardos, não é uma opção para a maioria das pessoas. A pergunta não devia ter sido “a cidade vai sobreviver?”, devia ter sido “que cidades vão sobreviver?” É que as cidades não vão a lado nenhum, temos é de responder às perguntas que se nos colocam.

 

 

As alterações no clima foram um factor de declínio urbano ao longo da História?

Sim, mas muitas também se souberam adaptar. Penso que vamos ver uma maior intensidade das mudanças neste século, afectando zonas maiores do que no passado. O desafio é manter a qualidade de vida nas cidades. E algumas estão a adaptar-se provavelmente mais depressa e mais profundamente do que pensamos. Por exemplo, há campanhas maciças de plantação de árvores. Na China, há o objectivo ambicioso de reflorestação das cidades. Wuhan não é só famosa por causa da pandemia, mas porque também é uma cidade-esponja, tem muita humidade, e está a trabalhar em soluções para ser menos impermeabilizada e lidar melhor com as chuvadas intensas. Houve uma fase da nossa existência em que pensámos que podíamos dominar a Natureza, que tudo se resolvia com engenharia. O único caminho é regressar às soluções naturais. Não há nenhuma solução humana para os extremos climáticos. 

 

Então não é inevitável que as paisagens urbanas se transformem na Los Angeles do Blade Runner?

Não! As cidades estavam quase a produzir-se em massa, todas com os seus arranha-céus de assinatura. Xangai, Nova Iorque, Londres, todas tentaram replicar o mesmo modelo. A cidade futurística é a que combinar tecnologia com ecologia. O número de arranha-céus previstos para o mundo todo tinha aumentado muito antes da pandemia – havia uma estimativa que apontava para 4000 edifícios muito altos até meio do século –, mas, se calhar, isso já não vai acontecer. Talvez a pandemia tenha acabado com o surgimento das “cidades superstar”. Talvez trabalhar em escritórios deixe de ter tanta importância. O desejo de viver nas cidades, de encontro, de troca de ideias vai manter-se, mas a necessidade de ocupar, sobretudo os centros, talvez diminua. E talvez não sejam as grandes cidades a prosperar, mas novos sítios mais habitáveis, mais sustentáveis.

 

Tem visto sinais disso?

Sim, está a acontecer nos Estados Unidos. Cidades de média dimensão que até estavam em declínio estão a ser procuradas por pessoas que não abdicam de ter uma experiência urbana, mas não querem pagar as rendas de Manhattan ou de Los Angeles. Também Talin, na Estónia, está a apostar muito em se tornar uma cidade para os nómadas digitais, para aquelas pessoas que querem viver numa cidade com uma escala pequena, mas que também tem cafés, gastronomia de várias partes do mundo, cultura, desporto, etc. 

 

E as cidades continuam a ser locais de transgressão por excelência...

Exactamente. Só quando nos expomos a outras pessoas é que podemos descobrir, em liberdade, quem realmente somos. E a cidade é óptima nisso. A sensualidade da cidade é uma das coisas que mais a tornaram atractiva. A comida, o sexo, tomar banho, fazer desporto, tudo isso são coisas que mudam cidades, não é só a sua capacidade de atrair capital ou de fazer comércio.

 

O arquitecto italiano Renzo Piano diz que “o oposto da cidade não é o campo, é o deserto”...

É uma perspectiva muito interessante. Numa vila toda a gente se conhece, toda a gente conhece as histórias uns dos outros. Na cidade há o anonimato, há um teatro da vida que se desenrola e do qual podemos ou não fazer parte, podemos ser espectadores. Tanto a cidade como o campo produzem narrativas, enquanto o deserto não. A cidade intensifica-o. Talvez a analogia melhor seja entre cidade e florestas. Ambas têm as suas clareiras, as suas zonas densas, as esquinas. E as florestas são sempre locais de mistério, de projecção das nossas fantasias, as cidades têm a mesma característica. E penso que a sua atracção é essa e não vai desaparecer. Mas eu percebo porque é que as pessoas diziam que se queriam ir embora durante a pandemia. Todas as coisas excitantes e positivas das cidades foram-nos repentinamente tiradas. Se calhar, muitos dos que saíram agora estão arrependidos. Os próximos anos podem ser muito divertidos. Supondo que a pandemia acaba, as cidades entram num período de recuperação e adaptação, pode ser muito divertido. As cidades estavam a tornar-se sítios muito desiguais, eram mais veículos para o capital do que sítios para se viver. A habitabilidade é a grande questão. E isso relaciona-se com a sustentabilidade porque uma cidade habitável é aquela em que nos podemos mover facilmente, a pé, em que se usam as ruas para andar, jantar, sentar. É fácil voltarmos ao passado pré-pandemia, todos ao volante dos nossos carros, mas as cidades progressivas são as que já estão a ver mais à frente, a encontrar alternativas, como Amesterdão, que elimina 1300 lugares de estacionamento por ano. Por muito que estejamos habituados e viciados nos nossos carros, os carros e as cidades não combinam. Foi um erro histórico. Um erro completamente compreensível, mas a maneira como os carros tomaram conta das cidades segregou bairros, fechou as crianças em casa. 

 

A disputa pelo espaço público será então a questão urbana fundamental deste século?

Os espaços públicos são sempre disputados e houve um tempo em que foram quase privatizados e vigiados, com policiamento muito forte. Em muitas cidades estão a renaturalizar-se os rios e criam-se espaços que vão ser muito valorizados por quem suspira pelo campo e pela Natureza. Se nos estamos, de facto, a tornar mais ambientalmente conscientes, seria importante termos espaços públicos mais focados nisso. Não devia ser uma disputa, mas se calhar vai ser. Há sempre tensões e interesses conflituantes. Mas o consenso nem sempre é uma coisa boa.

 

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