ENTREVISTA
“Talvez a pandemia tenha acabado com as ‘cidades
superstar’”
Ben Wilson, historiador, diz que deixar entrar os carros
na cidade foi “um erro histórico” que é urgente corrigir. “Não há nenhuma
solução humana para os extremos climáticos”, afirma.
João Pedro Pincha
(Texto) e Daniel Rocha (Fotografia)
1 de Dezembro de
2021, 20:00
https://www.publico.pt/2021/12/01/local/entrevista/pandemia-acabado-cidades-superstar-1986391
Por muito que a
vida urbana com a covid-19 nos tenha assustado, as cidades são a
melhor forma de os humanos estarem juntos, argumenta o historiador britânico
Ben Wilson, que em Metrópoles (ed. Desassossego) passa em revista sete mil
anos de urbanização. “Estamos a tornar-nos mais suburbanos do que urbanos”, analisa.
A história de
Uruk parece condensar todas as glórias e misérias das cidades. É o destino de
qualquer metrópole ser palco de grandes inovações tecnológicas e, ao mesmo
tempo, de desigualdades sociais extremas?
Uruk é a primeira
vez que as pessoas se juntam para viver de uma forma radicalmente diferente. Eu
quis contar essa história através da Epopeia de Gilgamesh, que é sobre as
tensões entre viver de uma forma que então parecia ser profundamente
artificial. Na Epopeia, a real natureza humana existe fora da cidade e
Gilgamesh é seduzido para ir para a cidade com a promessa de sexo, festas,
cerveja... civilização! Os sumérios inventaram palavras que distinguem bem os
habitantes urbanos de quem vive fora da cidade. A distinção é clara e as suas
ansiedades são bastante relevantes para nós: onde é que encontramos a
autenticidade? Será dentro ou fora da cidade? Gilgamesh, no fim da Epopeia,
tenta encontrar a imortalidade, mas a que descobre é a imortalidade da cidade,
das coisas escritas. A sociedade complexa que levou os sumérios a criar as
primeiras cidades traz ao de cima todas as tensões: será que isto é bom para
nós? A resposta é que é bom para nós enquanto espécie, enquanto colectivo.
Viver na cidade maximiza o nosso potencial, junta mentes que competem,
colaboram, inventam. Dessa complexidade nasce a escrita, o dinheiro, mas também
a escravatura, a tirania, a morte. Paga-se um preço alto por viver na cidade. O
que distingue a cidade de outras formas de organização humana é a hierarquia
social. As cidades precisam de muita força humana para funcionar e para
libertar outras mentes para fazerem descobertas fabulosas como escrever,
inventar a roda ou criar artefactos que tornem a vida urbana agradável. Cria-se
uma pirâmide de desigualdade e os corpos humanos são um bem transaccionável. Ou
seja, para se produzir esta sociedade milagrosa que não se equipara a nada que
a espécie humana tenha conhecido antes, foi preciso muito suor e sangue de
outras pessoas.
Nunca houve uma
versão utópica de cidade...
[Na Babilónia] os
arqueólogos ainda não encontraram o tipo de coisas que se encontra nos sítios
sumérios, como vestígios da escravatura, de guerra ou de uma hierarquia para lá
da religiosa, parece uma sociedade mais colaborativa. Mas isto parece demasiado
bom para ser verdade. Essa versão de um Jardim do Éden urbano talvez se deva ao
facto de nós não sabermos o suficiente. Uma ideia que perpassa pelo livro e
pela História é que as cidades nos proporcionam coisas tão boas que, se
acertássemos na maneira de as construir, talvez tivéssemos melhores cidades e
melhores pessoas. Mas isso é, de certa forma, uma ilusão. Tentar impor uma
ideia de racionalidade ou de bom desenho numa cidade causa geralmente mais
prejuízo do que benefício. As cidades crescem de forma relativamente orgânica,
mas está profundamente enraizado no nosso pensamento judaico-cristão que existe
uma tensão entre a cidade dos homens, que é suja, confusa, cheia de vícios,
imoral, por contraponto a uma cidade de Deus, que é melhor. Os judeus foram
levados como prisioneiros para Babilónia, sentiram-no como uma punição de Deus.
Os sumérios, pelo contrário, consideram que a cidade é um presente dos deuses,
que são sortudos. Devido à nossa tradição [judaico-cristã] foi-nos incutida
esta ideia de fugir da cidade para encontrar os nossos eus autênticos noutro
sítio qualquer ou de expurgar as cidades dos seus vícios. Isto corre pela
História, com Platão, Tomás de Aquino, até Haussmann, em Paris. Há sempre esta
ideia de que se pode desatar a História, tirar o lixo e fazer uma cidade
melhor. O custo disso tem sido muito grande sempre que se tenta mudar
significativamente as cidades, quando se tenta varrer os problemas. Têm sido
sempre as comunidades mais pobres a sofrer com esse experimentalismo. As
cidades saudáveis são aquelas em que há processos participativos em que as
comunidades constroem para si próprias, de baixo para cima – mas isso parece
ser raro.
Da forma como
descreve a destruição de Ur emerge a ideia de que há uma força vital, subtil,
nas cidades, mesmo que as suas populações sejam dizimadas. Há uma atracção
inescapável nas cidades?
Sim, as cidades
são muito resilientes, conseguem aguentar muitos choques externos. Acho que
vamos aprender isso no século actual, com as alterações climáticas. O que
aconteceu com Ur foi, para começar, que era um local sagrado, era a casa dos
deuses. Mas, mesmo de um ponto de vista secular, é muito raro uma cidade ser completamente
destruída. Há um apego das pessoas. As cidades são tão grandes e complexas que
existem tanto na imaginação como fisicamente. Mesmo quando são destruídas, a
memória transcende a destruição física. Em Hiroxima, muito pouco tempo depois
de ter sido totalmente devastada, os carteiros percorriam as ruas sabendo
exactamente onde estavam as casas. Isso é um acto mais da imaginação do que da
cidade física. Houve uma espécie de reafirmação da normalidade. O apego das
pessoas ao sítio, a mitologia, as lendas que se contam, isso é o que dá força à
cidade, mais do que as estruturas físicas.
Se, como
argumenta na introdução, “a mais profunda divisão” nas sociedades modernas é
“entre as grandes metrópoles e as povoações, os subúrbios”, porque é que não é
desejável, como também argumenta, que as pessoas procurem o campo ou subúrbios
mais humanizados?
Quando somos
novos temos interesse, se formos ambiciosos, em viver na cidade, porque fazemos
contactos, expomo-nos a experiências, à aleatoriedade da vida. A grande energia
das cidades está fora das instituições, fora dos edifícios, acontece mais na
zona informal e não-oficial da cidade. Quando nos tornamos mais velhos e
constituímos família, há uma vontade de sair da cidade. Historicamente, os
subúrbios foram uma reacção contra os aspectos mais desagradáveis das cidades.
A suburbanização foi uma tentativa de criar um equilíbrio entre a cidade e o campo.
Quando eu escrevi este livro, num período pré-pandemia, havia um movimento de
regresso às cidades, como locais de riqueza, poder, conhecimento. Muita gente
migra para a cidade porque não tem outra escolha. Está a acontecer uma
revolução suburbana num sentido negativo. As cidades estão a crescer muito
rápido no que toca ao número de pessoas e ao espaço que ocupam. É assustador
ver a quantidade de espaço que as cidades estão a conquistar, muitas vezes em
prejuízo da biodiversidade. Isso não é a suburbanização utópica de busca do
melhor sítio para viver, é uma suburbanização muito rápida, muito fora de
controlo e que não serve realmente as pessoas que vivem nesses locais e que
tentam escapar à pobreza. Estamos a tornar-nos mais suburbanos do que urbanos.
O desafio – e foi por isso que quis escrever este livro – é destrinçar o que é
bom e mau nas cidades. As cidades, no seu melhor, têm a capacidade de resgatar
pessoas da pobreza, de tornar os países mais ricos, de criar inovação. Isso só
se consegue na cidade, não no subúrbio.
Mas será possível
humanizar e melhorar subúrbios onde habitam milhares ou milhões de pessoas, ou
isso é apenas uma utopia europeísta?
Seja onde for, à
medida que as populações vão ficando mais ricas, verifica-se o mesmo processo
de suburbanização, de criar zonas de baixa densidade, com casas e jardins.
Historicamente, os subúrbios cresceram ao longo dos percursos e dos
transportes: caminhar, andar a cavalo, vias férreas, estradas. Isso pode
tornar-se um grande problema. Não podemos viver todos no centro da cidade,
seria fisicamente impossível e completamente indesejável. A urbanização está
associada a confusão, não em termos de higiene, mas de selva de funções. Temos
tudo o que precisamos ao pé – essa é que é a essência da urbanização. Temos
acesso a cultura, comida, café, outras pessoas, trabalho. Isto forma um
colectivo que pode ser extensível aos subúrbios. Temos de parar de ver as
cidades como centros rodeados por dormitórios. Pensar em formas de viver mais
sustentáveis, com padrões ambientais aceitáveis, de ter uma vida rica à nossa
porta, que dê prazer e vá além da mera funcionalidade, vai ser muito importante
numa época em que todos precisamos de pensar em sustentabilidade. As cidades
mais avançadas da actualidade são as que se estão a tornar resilientes às
alterações climáticas. Ou seja, que têm mais espaços permeáveis e mais sombras.
Isso são soluções naturais, é usar o ecossistema como infra-estrutura. Portanto
é possível ter o melhor dos subúrbios no centro das cidades se se planear como
deve ser. Isso implica ter menos carros, que ocupam montanhas de espaço. O
acesso a espaços verdes mesmo em zonas urbanas muito densas está a criar-se
agora – Singapura, Copenhaga e Paris são bons exemplos. Combinar o verde com a
densidade é um desafio urgente.
Os subúrbios
cresceram, em grande parte, devido à mobilidade automóvel...
Sim. As cidades
são adaptáveis, são capazes de uma certa auto-organização, de adaptabilidade,
de metamorfose. As cidades com vistas mais largas estão a antecipar o que vai
ter de mudar. Nem todas têm a sorte de ter um sistema de transporte público de
grande dimensão, mas as cidades são as que produzem o maior volume de emissões
[de gases com efeito de estufa] e são também as que têm capacidade de mudar.
Porque vivemos juntos, vivemos em contacto permanente, se aproveitarmos esse
poder podemos torná-las muito mais eficientes. Dizer que não podemos mudar
porque os carros nos aprisionaram seria um perigo para o nosso futuro. Do que
precisamos é de pensamento inovador sobre a forma como organizamos as cidades.
Quer gostemos ou não, este vai ser um século urbano e a questão é se fazemos as
coisas bem. Não ajuda dizer, como aconteceu durante a pandemia, “vamos todos
sair da cidade”. Isso só é possível aos ricos, aos felizardos, não é uma opção
para a maioria das pessoas. A pergunta não devia ter sido “a cidade vai
sobreviver?”, devia ter sido “que cidades vão sobreviver?” É que as cidades não
vão a lado nenhum, temos é de responder às perguntas que se nos colocam.
As alterações no
clima foram um factor de declínio urbano ao longo da História?
Sim, mas muitas
também se souberam adaptar. Penso que vamos ver uma maior intensidade das
mudanças neste século, afectando zonas maiores do que no passado. O desafio é
manter a qualidade de vida nas cidades. E algumas estão a adaptar-se
provavelmente mais depressa e mais profundamente do que pensamos. Por exemplo,
há campanhas maciças de plantação de árvores. Na China, há o objectivo
ambicioso de reflorestação das cidades. Wuhan não é só famosa por causa da
pandemia, mas porque também é uma cidade-esponja, tem muita humidade, e está a
trabalhar em soluções para ser menos impermeabilizada e lidar melhor com as
chuvadas intensas. Houve uma fase da nossa existência em que pensámos que
podíamos dominar a Natureza, que tudo se resolvia com engenharia. O único
caminho é regressar às soluções naturais. Não há nenhuma solução humana para os
extremos climáticos.
Então não é
inevitável que as paisagens urbanas se transformem na Los Angeles do Blade
Runner?
Não! As cidades
estavam quase a produzir-se em massa, todas com os seus arranha-céus de
assinatura. Xangai, Nova Iorque, Londres, todas tentaram replicar o mesmo
modelo. A cidade futurística é a que combinar tecnologia com ecologia. O número
de arranha-céus previstos para o mundo todo tinha aumentado muito antes da
pandemia – havia uma estimativa que apontava para 4000 edifícios muito altos
até meio do século –, mas, se calhar, isso já não vai acontecer. Talvez a
pandemia tenha acabado com o surgimento das “cidades superstar”. Talvez
trabalhar em escritórios deixe de ter tanta importância. O desejo de viver nas
cidades, de encontro, de troca de ideias vai manter-se, mas a necessidade de
ocupar, sobretudo os centros, talvez diminua. E talvez não sejam as grandes
cidades a prosperar, mas novos sítios mais habitáveis, mais sustentáveis.
Tem visto sinais
disso?
Sim, está a
acontecer nos Estados Unidos. Cidades de média dimensão que até estavam em
declínio estão a ser procuradas por pessoas que não abdicam de ter uma
experiência urbana, mas não querem pagar as rendas de Manhattan ou de Los
Angeles. Também Talin, na Estónia, está a apostar muito em se tornar uma
cidade para os nómadas digitais, para aquelas pessoas que querem viver numa
cidade com uma escala pequena, mas que também tem cafés, gastronomia de várias
partes do mundo, cultura, desporto, etc.
E as cidades
continuam a ser locais de transgressão por excelência...
Exactamente. Só
quando nos expomos a outras pessoas é que podemos descobrir, em liberdade, quem
realmente somos. E a cidade é óptima nisso. A sensualidade da cidade é uma das
coisas que mais a tornaram atractiva. A comida, o sexo, tomar banho, fazer desporto,
tudo isso são coisas que mudam cidades, não é só a sua capacidade de atrair
capital ou de fazer comércio.
O arquitecto
italiano Renzo Piano diz que “o oposto da cidade não é o campo, é o deserto”...
É uma perspectiva
muito interessante. Numa vila toda a gente se conhece, toda a gente conhece as
histórias uns dos outros. Na cidade há o anonimato, há um teatro da vida que se
desenrola e do qual podemos ou não fazer parte, podemos ser espectadores. Tanto
a cidade como o campo produzem narrativas, enquanto o deserto não. A cidade
intensifica-o. Talvez a analogia melhor seja entre cidade e florestas. Ambas
têm as suas clareiras, as suas zonas densas, as esquinas. E as florestas são
sempre locais de mistério, de projecção das nossas fantasias, as cidades têm a
mesma característica. E penso que a sua atracção é essa e não vai desaparecer.
Mas eu percebo porque é que as pessoas diziam que se queriam ir embora durante
a pandemia. Todas as coisas excitantes e positivas das cidades foram-nos
repentinamente tiradas. Se calhar, muitos dos que saíram agora estão
arrependidos. Os próximos anos podem ser muito divertidos. Supondo que a
pandemia acaba, as cidades entram num período de recuperação e adaptação, pode
ser muito divertido. As cidades estavam a tornar-se sítios muito desiguais,
eram mais veículos para o capital do que sítios para se viver. A habitabilidade
é a grande questão. E isso relaciona-se com a sustentabilidade porque uma
cidade habitável é aquela em que nos podemos mover facilmente, a pé, em que se
usam as ruas para andar, jantar, sentar. É fácil voltarmos ao passado
pré-pandemia, todos ao volante dos nossos carros, mas as cidades progressivas
são as que já estão a ver mais à frente, a encontrar alternativas, como
Amesterdão, que elimina 1300 lugares de estacionamento por ano. Por muito que
estejamos habituados e viciados nos nossos carros, os carros e as cidades não
combinam. Foi um erro histórico. Um erro completamente compreensível, mas a
maneira como os carros tomaram conta das cidades segregou bairros, fechou as
crianças em casa.
A disputa pelo
espaço público será então a questão urbana fundamental deste século?
Os espaços
públicos são sempre disputados e houve um tempo em que foram quase privatizados
e vigiados, com policiamento muito forte. Em muitas cidades estão a
renaturalizar-se os rios e criam-se espaços que vão ser muito valorizados por
quem suspira pelo campo e pela Natureza. Se nos estamos, de facto, a
tornar mais ambientalmente conscientes, seria importante termos espaços
públicos mais focados nisso. Não devia ser uma disputa, mas se calhar vai ser.
Há sempre tensões e interesses conflituantes. Mas o consenso nem sempre é uma
coisa boa.
tp.ocilbup@ahcnip.oaoj
tp.ocilbup@ahcord
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