OPINIÃO
Porque é que a guerra civil dentro dos partidos é
endémica?
No próprio dia da vitória, bastava ouvir com atenção os
comentários dos opositores de Rio para perceber que tudo ia continuar quase na
mesma.
José Pacheco
Pereira
4 de Dezembro de
2021, 6:10
https://www.publico.pt/2021/12/04/opiniao/opiniao/guerra-civil-dentro-partidos-endemica-1987410
Como sabem nunca
acreditei em qualquer processo de “pacificação” interna nos partidos após
momentos em que a guerra civil interior define vencedores e vencidos. Nem
quando Rio teve bons resultados nas autárquicas, nem quando venceu Rangel. No
próprio dia da vitória, bastava ouvir com atenção os comentários dos seus
opositores para perceber que tudo ia continuar quase na mesma. Havia muita
raiva e muito lugar-comum de circunstância, mas estava já tudo a esperar pelo
dia seguinte.
Porquê? Por uma
razão mortífera para a vida partidária: cada vez mais assumem lugares de relevo
nas estruturas partidárias pessoas cuja única actividade e profissão é obtida
pela influência interior nos partidos, e cujas carreiras não dependem um átomo
da sua influência e prestígio social, seja cultural, seja profissional, seja
político. Peguem nas listas de deputados da legislatura cessante e façam um
teste para ver se alguém sabe quem são e o que fizeram de útil para a
sociedade. Salvo raras excepções e, cada vez menos de legislatura a
legislatura, o resultado é próximo de zero. Alguns berram muito nas redes
sociais, mas, fora disso, nada. São funcionários políticos cujas preocupações
dominantes são o emprego, a carreira e as promoções. Nem ideologia, nem
política e muito menos o país. Esta composição nos grandes partidos com votos
para chegar ao poder é nociva para a democracia.
Isto é válido
para o PSD, como o é para o PS, pelas características que são comuns aos dois
partidos: serem grandes eleitoralmente, a dimensão conta, e terem por isso
mesmo acesso a “bens” significativos do poder para distribuir. É por isso que
esta análise não se aplica ao PCP, que tem outra cultura política, nem ao CDS,
que é cada vez mais um muito pequeno partido, nem ao Chega, que é o único
partido em Portugal que se alimenta de um populismo antidemocrático. Isso não
significa que sejam todos eles imunes a muitos dos efeitos perversos que se
manifestam nos grandes partidos – só que a dimensão dos “bens” não chega para
moldar de forma significativa os mecanismos interiores.
Cada vez mais
assumem lugares de relevo nas estruturas partidárias pessoas cuja única
actividade e profissão é obtida pela influência interior nos partidos
Veja-se o caso do
PSD. As listas de deputados são um dos “bens” mais relevantes para distribuir
e, do mesmo modo que já foram um motivo central para a disputa Rio-Rangel, vão
continuar a sê-lo mesmo depois da vitória de Rio. E a disputa será ainda mais
acesa, porque um candidato que ganhou contra o aparelho terá de lidar com o
mesmo aparelho na elaboração e aprovação das listas. Os efeitos perversos
vêem-se em duas não-atitudes: nenhum responsável distrital ou concelhio que
comprometeu a sua estrutura abusivamente no apoio a um candidato que perdeu assume
responsabilidades pela sua atitude e se demite. A demissão seria normal,
porque, queira-se ou não, falou-se abusivamente em nome dos militantes e isso
significa uma crise de legitimidade. Pelo contrário, nem pensar, abrenúncio.
A esta atitude
soma-se que ainda não se ouviu ninguém, dos que estavam sempre a repetir que a
“estratégia estava errada”, dizer esta simples frase: como não concordo com a
estratégia, não quero permanecer deputado a defender uma opção em que não
acredito e que entendo ser má para o partido e para o país. Não penso que seja
preciso qualquer especial heroicidade para fazer isto, nem que seja um drama.
Eu próprio fiz isto mais do que uma vez, uma das quais para recusar o muito
desejado lugar no Parlamento Europeu, porque discordava da aliança que Barroso
quis fazer com Portas…
Os efeitos destes
processos são devastadores para os grandes partidos: abrem caminho para a
corrupção – interesses de carreira chamam outros interesses –, afastam dos
partidos gente competente (é mau que os partidos não tenham no seu interior os
conhecimentos técnicos associados à consciência política e fiquem dependentes
de “independentes”), e deixam de ser atractivos para todos os que têm prestígio
social adquirido por mérito, fora do mundo partidário, com vida própria e
liberdade para entrar e sair. Tudo isto reforça ainda mais o fosso entre a
representação política e a sociedade.
Os efeitos destes processos são devastadores para os
grandes partidos: abrem caminho para a corrupção, afastam gente competente e deixam
de ser atractivos quem tem prestígio social por mérito
Este não é um
problema escolhido, nem conjuntural, mas sim estrutural. A forma como evoluiu o
sistema partidário em Portugal, com quase 50 anos de democracia, deu origem a
esta situação que é um efeito da oligarquização dos partidos, processo
conhecido e estudado na ciência política. O que torna ainda mais grave nos dias
de hoje esta oligarquização conflitual é que ela se insere num contexto de uma
ecologia crítica para a democracia, ou seja, as perversões no PS e no PSD ferem
a saúde da democracia de forma a acentuar a sua crise e desgaste, que nunca foi
tão perigoso, porque vem de dentro.
Numa democracia
em que as mediações são a base que a distingue da demagogia, a crise dos
principais partidos políticos corrói na sua base a representação. Aqueles que
acham muita graça a estas guerras, e as vêem como “lutas de galos”, que repetem
a curiosidade pelo “sangue” que alimenta a comunicação social – e que ainda não
percebeu que esta crise é da mesma natureza da que atravessa –, estão a brincar
com o fogo. É fácil atirar contra o Chega bruto, o de Ventura, mas achar graça
ao Chega sofisticado do Observador. O fogo que destrói a democracia já está a
arder.
Historiador
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