domingo, 5 de maio de 2019

Alguém tirou o tapete a Rui Rio e não foi o Governo



OPINIÃO
Alguém tirou o tapete a Rui Rio e não foi o Governo

Como foi possível, em primeiro lugar, ao PSD dar um monumental tiro no pé? Como foi possível, em segundo lugar, à esquerda radical pôr em causa uma eventual continuação da geringonça depois das legislativas?

5 de Maio de 2019, 7:14

1. A questão não é apenas o espanto: como foi possível? É também por que é que foi possível. Como foi possível, em primeiro lugar, ao PSD dar um monumental tiro no pé? Como foi possível, em segundo lugar, à esquerda radical pôr em causa uma eventual continuação da “geringonça” depois das legislativas? Aparentemente nada disto tem lógica, sobretudo perante uma reivindicação encabeçada pela figura que vence por longevidade e demagogia o concurso da irresponsabilidade sindical (e política) nacional — Mário Nogueira. Não se tratava de uma exigência social de primeira necessidade (os professores em Portugal, e em ppc, estão na média dos vencimentos da União Europeia, ainda que, infelizmente, não estejam na média dos resultados obtidos pelos alunos), nem de colmatar uma profunda injustiça social — que as há. Eleitoralmente, pode parecer tentador agradar aos professores, que são muitos, mesmo que desagradando aos outros funcionários públicos. Mas é só a primeira impressão, porque, na sua maioria, o mais provável é que não mudem o seu voto nas legislativas por causa desta súbita “generosidade” que tocou o coração da direita e da esquerda radical.

2. As razões do PCP e do Bloco não são difíceis de explicar. Os dois partidos que assinaram por baixo três orçamentos cujo objectivo foi reduzir o défice até ao equilíbrio, sentiram-se livres para regressar aos velhos hábitos e às velhas convicções. Mudaram as condições políticas que os levaram a aceitar a “geringonça”? Dificilmente, quanto ao essencial. Foi uma questão de sobrevivência que levou o PCP a romper com uma estratégia de 40 anos que elegeu o Partido Socialista como “inimigo principal”. Mudou, porque tinha de mostrar aos seus eleitores que podia ter influência sobre as suas vidas, influenciando a governação. A própria CGTP começava a ver a sua capacidade de mobilização muito limitada — reduzida quase só ao sector público e empresarial do Estado, em que os empregos não estavam em causa e era possível a defesa dos chamados “direitos adquiridos”. Com o desemprego a cair acentuadamente no sector privado e com a devolução dos rendimentos, não sabe exactamente o que fazer, nem sequer perante a emergência de um novo tipo de sindicalismo “antipolítico”, que lhe foge ao controlo. Ontem, Jerónimo só conseguiu recorrer ao velho chavão: “O nosso compromisso é apenas com os trabalhadores e o povo.” Depois de ter votado três orçamentos para reduzir o défice, disse não aceitar a necessidade dessa redução. O destino do PCP ainda não está traçado, mas o regresso à radicalização não parece a opção mais sensata.

3. O Bloco é outra história. Atribuiu-se a si próprio a missão de mudar o PS por dentro ou por fora, mesmo que essa missão já tenha sido tentada por outros e nunca conseguida. Tem a ambição de vir a incluir um governo liderado pelo PS. Fez, porventura, uma avaliação errada da “relação de forças”: com o PS afastado da possibilidade de uma maioria absoluta, acreditou que passava a dispor do estatuto de “king maker” — uma aposta de desfecho muito incerto, sobretudo em tempos de grande incerteza. Em véspera de eleições, achou que podia radicalizar à vontade sem qualquer custo político. Quando ouvimos Catarina Martins dizer que, se há dinheiro para salvar bancos, também tem de haver para salvar os professores, percebe-se que talvez não tenha apostado no cavalo certo. Os professores não gozam de uma grande simpatia nacional, para dizer o mínimo. O Bloco não aprendeu nada com Alexis Tsipras ou com o Podemos. Como se viu nas eleições em Espanha, os extremos combatem-se com a moderação. Dificilmente a sua chantagem sobre o PS colherá frutos.

3. Também não há, propriamente, uma surpresa no comportamento do CDS-PP. O partido de Cristas perdeu qualquer referência ideológica em favor de uma espécie bastarda de populismo. Já tinha entrado em total desorientação: numa semana, conseguiu declarar a sua afinidade com o Vox (extrema-direita espanhola) e defender passadeiras de peões das cores do arco-íris na Almirante Reis parar agradar aos LGBTI. Cristas, a “defensora do povo” e de todos os oprimidos, sejam eles os professores, os enfermeiros, os estivadores, os motoristas, os pensionistas, os doentes, não está a colar. Cristas, a “verdadeira oposição” a um Governo conspurcado pelos comunistas também não, como provam as sondagens. Cristas, a “radical” também não — o seu eleitorado não aprecia. Resta-lhe esbracejar até às eleições. Mas, atenção, Nuno Melo não disse o que disse sobre o Vox por acaso. São evidentes os sinais de que o PP está disponível para enveredar pela via do nacionalismo (já tentada noutras alturas, ainda que sem êxito), como fica demonstrado na campanha das europeias. Basta estar atento.

4. Falta a verdadeira surpresa, que está na origem desta crise política. O que levou o PSD a juntar-se à esquerda radical para aprovar uma medida insensata e injusta, ainda por cima quando a vida lhe parecia estar a correr um pouco melhor?

Quando foi eleito, Rui Rio prometeu um novo tipo de liderança, mais rigoroso e mais coerente, que não correria a foguetes, nem embarcaria em radicalismos de superfície. O que o levou a cortar de uma penada com esta imagem, que, durante algum tempo, ainda preservou? Há talvez várias razões. A primeira terá sido a chuva de críticas de boa parte da comunicação social, acusando-o de não fazer oposição. Ou seja, de não gritar o suficiente, nestes tempos perigosos, em que a linha de demarcação entre o jornalismo e a voragens das redes sociais tende a esbater-se. Rio esqueceu-se de que, para além do discurso mediático-político que funciona em bolha, a sua atitude agradava a muito boa gente, especialmente ao centro. E também que os resultados fracos das sondagens teriam menos que ver com decibéis e mais com o razoável êxito do Governo em várias frentes  — e, em democracia, são quase sempre os governos, não os programas das oposições, o factor determinante das escolhas dos eleitores.

A segunda razão talvez tenha sido a sensação de embriaguez momentânea, provocada pela lógica que Paulo Rangel imprimiu à campanha das europeias — justamente, a do “vale tudo” — e os bons resultados que as sondagens aparentemente traduziam. Talvez se tenha esquecido que as eleições europeias obedecem a motivações muito diferentes das legislativas. Nas primeiras, os eleitores sabem que podem penalizar o Governo sem consequências  — o voto útil conta pouco, o voto de protesto e o voto ideológico contam mais. Nas legislativas, a lógica é a oposta.

Mas, pior do que estes eventuais cálculos políticos, foi a forma como o PSD “matou” qualquer credibilidade das suas propostas políticas, anulando ao mesmo tempo o legado do Governo de Passos Coelho, na sua versão “salvar o país do regabofe socialista”. Há outra de que Rio não gosta tanto: aplicar um programa político neoliberal, que nenhum partido se atreveria a pôr em prática em Portugal a não ser a coberto da troika. À falta de melhor argumento, a resistência às boas contas do Governo oscilava entre a tentação de invocar o diabo (como fez o deputado do PSD na cerimónia do 25 de Abril) e um exercício de medição da austeridade, numa escala de 1 a 10, aplicada pelo Governo, tentando provar o oposto: que o Governo praticava mais austeridade do que a que anunciava ou que Centeno dizia uma coisa cá dentro e outra lá fora. Compreendem-se as dificuldades do PSD perante um governo que equilibrou as contas públicas e devolveu rendimentos. Poderia tê-lo criticado, por exemplo, por ter devolvido rendimentos demasiado depressa (Passos considerava que os cortes eram irrevogáveis para garantir a competitividade da economia), em vez de dar prioridade ao investimento ou à redução da carga fiscal sobre as empresas. Tudo isto faria sentido. Alinhar com o Bloco, o PCP e o PP para oferecer aos professores um benefício injusto e injustificado não passaria pela cabeça de ninguém. Alguém lhe tirou o tapete? Candidatos não faltarão. E nem vale a pena acusar António Costa de se aproveitado da situação. O que é que esperavam? Palmadinhas nas costas?

5. Só o Presidente ainda pode tentar enfraquecer o Governo, forçando-o a ficar a queimar em lume brando até Outubro. Para Marcelo também se trata de uma estreia: lidar com uma situação em que não é ele o protagonista.

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