"Não sei porque acham que a
Frente Nacional é racista"
MARIA JOÃO
GUIMARÃES (Texto) e JOANA BOURGARD (Fotos, em Marselha)
PÚBLICO
Auguste Olive, psiquiatra reformado, diz que há uma certa atmosfera em
Marselha que lhe faz lembrar coisas da sua infância. “Não é um clamor”, nota. É
uma sensação. “Pessoas que não me conhecem de lado nenhum pensam que todos
partilhamos a mesma ideia contra os estrangeiros.”
Talvez não tanto
aqui, onde vive, na sala com vista para o Vieux Port. Talvez mais em zonas mais
multiculturais. Dá um exemplo de um minidiálogo com uma pessoa que o interpelou
numa dessas zonas, olhando para uma mulher com véu: “‘Já viu isso?’ e eu
respondi, ‘O que tem?’ e a pessoa insistiu ‘Isso não o incomoda?’ e eu disse
‘não, pas du tout’. E ela respondeu ‘então é porque tem peles de chouriço à
frente dos olhos’”, uma expressão colorida (como só em Marselha) para descrever
alguém que não quer ver algo que está à sua frente.
Isto para dizer:
falar abertamente mal dos estrangeiros é algo aceite. Mesmo quando é uma cidade
em que não se sabe bem quem é estrangeiro, porque há muitos franceses de origem
estrangeira que podem parecer vindos de fora mas não são.
Tudo isto o faz
voltar atrás no tempo. “Quando eu tinha dez anos, era isso que se ouvia dizer
dos judeus”, nota Olive, calmamente. “Mais de 60 anos depois ouço a mesma
coisa. É como se houvesse uma trama que se repete”, diz, e não há como não
notar a nota de angústia.
Auguste Olive
JOANA BOURGARD
Esta desconfiança
e rejeição existe também entre os franceses de origem estrangeira, ou mesmo
entre estrangeiros. Olive conta o caso de uma vietnamita que se queixava
“destes árabes todos”. “Os estudos mostram que os últimos a chegar são os mais
hostis.”
A Frente Nacional
capitaliza com este sentimento e contribui para ele. Fechar é a palavra de
ordem. Fechar ao mundo, fechar à Europa. Dar segurança aos franceses; algo que
tem bastante eco em Marselha, onde ninguém pára na passadeira e toda a gente é
aconselhada a andar com a mochila à frente para evitar ser assaltado.
Segundo a última
sondagem do centro Poll Watch, o partido pode mesmo ganhar as europeias: surge
em primeiro lugar com 23,5% das intenções de voto, o que lhe daria 22 lugares
(a União para um Movimento Popular, na oposição, surge logo atrás com 22,5%, e
o Partido Socialista apenas com 18%).
A mudança de
imagem levada a cabo por Marine le Pen contribuiu para isto. Os seus apoiantes
dizem que querem apenas proteger a França. Mas não são – nem pensar – racistas.
“Não sei de onde tiraram essa ideia”, diz-nos Marvin Mittaine, um chef de
cozinha de 29 anos. “A minha mulher é russa.” Mittaine, que se apresenta como
sendo “da nova geração da Frente Nacional” enquanto distribui panfletos de
campanha em Marselha, quer apenas ver França referendar o euro e proteger as
suas fronteiras.
Vieux Port,
Marselha JOANA BOURGARD
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Quando visitámos
Marselha, a cidade estava em plena campanha para as eleições municipais (o
presidente da câmara manteve-se, mas a Frente Nacional conseguiu uma onda de
bons resultados por toda a França). Como fazer campanha por um partido destes
numa cidade tão multicultural como esta, em que tantos, mas tantos, habitantes
têm claramente raízes noutros países, noutros continentes? Mittaine não evita
pessoas com outras cores de pele – seria evitar uma grande parte das pessoas
que passam. Obtém várias recusas, uma ou outra pessoa aceita quase parando
quando percebe o que é, outras aceitam sem mostrar grandes emoções.
Bertrand Guéry,
director da Osiris JOANA BOURGARD
O euro vai acabar em dois anos
As reacções mais
contrariadas à campanha da Frente Nacional não vêm destas pessoas, mas sim de
franceses brancos. De uma jovem de óculos de massa que passa e quando percebe
qual é o partido espeta um indignado dedo do meio. Do homem mais velho de boina
e casaco de malha, que está prestes a aceitar o folheto, mas congela o gesto quando
percebe o que é. Levanta a mão em recusa polida mas firme, e continua.
Mas por cada
reacção de desagrado, há pessoas que aceitam o folheto e há pessoas muito
interessadas no que o candidato municipal tem para dizer. Mesmo sendo eleições
municipais, a Europa é um tema.
“Concordo que
todos os partidos são parecidos, mas a verdade é que quando chegam lá não podem
fazer nada por causa da União Europeia – mesmo com a Marine le Pen seria a
mesma coisa”, diz uma cidadã numa animada conversa com Dominique Demeester, um
homem num fato quadrado, físico compacto de anos como gendarme, e que era o
cabeça de lista do primeiro sector da cidade. “Quem quer que seja, seria
manietado pela Europa”, diz. Demeester tem resposta pronta: “Todos os peritos
dizem que daqui a dois anos já não vai haver euro, a União Europeia vai-se
desintegrar. Não precisa de se preocupar.” Ela aperta-lhe o braço, e diz com
uma intensidade que até parece que estamos a falar de algo que não política,
antes de ir embora: “Oh, prometa! Dou-lhe dois anos. Só lhe peço isso!”. Ele
assente, está prometido.
Escritório de
Bertrand Guéry JOANA BOURGARD
Dupla radicalização
Do centro de
Marselha até ao escritório da associação Osiris vai um mundo. O taxista
pergunta preocupado se estamos a pensar passear por ali – não é boa ideia,
avisa.
As ruas não
parecem perigosas, apenas diferentes. Café após café, só há homens. As
referências femininas resumem-se a uma mulher a servir um café turco, uma
música de Beyoncé a sair dos altifalantes.
Entra-se numa
pequena rua perpendicular e num centro dos Médicos do Mundo, na sala de espera,
olhos brancos do contraste com a pele escura. No primeiro andar está um
gabinete da Osiris, que faz um trabalho muito especial: recebe e presta
cuidados especializados a pessoas vítimas de tortura.
Bertrand Guéry,
director da organização (há apenas cinco centros destes em toda a França), nota
que este trabalho é feito “num contexto complicado, em que a sociedade não leva
em conta a situação das vítimas de tortura”, diz. Fala-se muito em imigração,
em imigração económica… Mas nestes casos as vítimas fugiram de situações de
grande sofrimento. “Procuram não só um novo sítio para viver, como um reconhecimento
do que sofreram.” Nem sempre é isso que encontram. Em 2013, o país recusou 83%
dos pedidos de asilo (de 61455 pedidos de asilo, apenas acolheu 10470
refugiados).
Aqui, na Osiris,
metade do trabalho é ouvir e reconhecer. As sessões de psicoterapia são sempre
mediadas por um intérprete (já que 90% das pessoas que aqui chegam não falam
francês). Há 27 nacionalidades representadas, há albaneses do Kosovo, curdos da
Turquia, opositores tchetchenos, da República Democrática do Congo, Nigéria…A
única vez que foi preciso um intérprete português foi para um angolano. Chegou,
contou a sua história – “vomitou” é a palavra que Guérin usa –, e desapareceu.
Os terapeutas acham que precisava de ser ouvido.
Enquanto alguns
refugiados chegam a França por acaso, outros chegam com uma ideia de que este é
um país defensor de direitos humanos. Mas esta imagem “não corresponde à
realidade”, nota Guéry. E com o aumento do discurso anti-estrangeiros, tudo
piora. “A subida da Frente Nacional afecta-nos e aflige-nos”, diz Guéry. O que
está a acontecer é uma dupla radicalização, explica. Das vítimas que chegam e
não sentem reconhecimento, “e o não reconhecimento é algo de muito violento”.
De quem vive cá que sente que se estão a formar guetos. Uma desconfiança de
cada lado em relação ao outro que só se está a agudizar. Faltam espaços comuns,
linguagens comuns.
Em termos
europeus, diz Guerin, é preocupante que não haja solidariedade para a
imigração; “há apenas para os impedir de chegar.” (Isto quando, nota, a maioria
dos refugiados do mundo não estão na Europa nem nos EUA – segundo o Alto
Comissariado da ONU para os Refugiados, mais de 80% dos refugiados do mundo
estão em países em desenvolvimento, uma percentagem que tem vindo a aumentar –
há dez anos era 70%).
E Guérin nota um
exemplo de disfuncionalidade no funcionamento da Europa: “Na União Europeia
perde-se mais tempo a discutir verbas menores do que projectos que envolvam
quantias maiores.”
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