quinta-feira, 8 de maio de 2014

Forças Armadas e Governo: o Estado em desagregação




OPINIÃO
Forças Armadas e Governo: o Estado em desagregação
JOÃO J. BRANDÃO FERREIRA 09/05/2014 / PÚBLICO

Escrevemos no Dia do Trabalhador. É, em simultâneo, um modo de trabalhar e de intervenção cívica, apesar de ser feriado…

Na sequência da visita do ministro da Defesa à Base Aérea 6, no Montijo, no pretérito dia 28/4, foi divulgado nos meios da comunicação social (OCS), a notícia de que 98 (na realidade 99) oficiais pilotos aviadores (cerca de dois terços do efectivo) tinham aderido, em bloco, à Associação de Oficiais (AOFA) (1)

O frisson causado nada tem a ver com qualquer irregularidade, mas sim com o seu significado. Significado esse, por sinal, ignorado pela generalidade desses mesmos OCS, sem dúvida alguma prosélitos e praticantes das mais elementares regras democráticas e da liberdade de expressão.

Eis uma síntese rápida ao correr da pena.

O ministro da Defesa foi visitar a BA 6, a fim de mostrar serviço com a ida de um C-130 para a República Centro Africana, no âmbito de uma missão da União Europeia e também assistir ao aniversário da Esquadra 751, que opera os sofisticados helicópteros EH 101 e que passa por uma crise de falta de pilotos e qualificações adequadas (aliás, todas passam).

Estas dificuldades já estão a pôr em causa o cumprimento de uma missão da FA – que extravasa o país: a busca e salvamento. (2)

Propositadamente ou não, o que é certo é que alguns oficiais conversaram com jornalistas e deram-lhes conta de algumas das dificuldades existentes, enquanto o ministro da Defesa era confrontado com um discurso duro do comandante da Esquadra 501 sobre a prontidão das aeronaves, manutenção, treino e segurança de voo e outros, que se arrastam há muitos anos e, como é lógico, não deixam de se agravar com o passar do tempo e a muito errada actuação política para com as FA. (3)

Actuação ainda agravada por dissidências corporativas entre os ramos, falta de estratégia comum das chefias militares (onde se incluem os conselhos superiores) e alguns erros e ambições pessoais avulsos.

Tudo se traduzindo numa paz podre reinante, a que um falso discurso de “tranquilidade” tenta tapar, como a peneira tapa o sol.

Livrou-se ainda o ministro da Defesa de ouvir outro discurso duro, por parte do comandante da Esquadra 751, não fora o texto sido atempadamente “censurado”.

Por “feliz” coincidência foi tornada pública a adesão dos citados 99 oficiais à AOFA – e outras estão previstas (o ministro da Defesa foi apanhado desprevenido), o que, aparentemente, começou a ser preparado desde o último encontro de oficiais, no ISCTE, em 22/2/14. (4)

Independentemente das várias leituras possíveis para esta adesão, uma salta à vista desarmada e é indesmentível: trata-se de um atestado de desconfiança às chefias militares, passado com luva branca (mas que não deixa de ser um murro no estômago).

Significa simplesmente que deixaram de acreditar na cadeia hierárquica e que passaram a sua esperança de resolução de problemas para a AOFA.

A qual de facto, e independentemente da evolução da sociedade e dos tempos, só tem razão de existir pela falta de defesa dos homens e da própria instituição militar (IM), o que deixou de ser cabalmente feito sobretudo a partir da data em que as chefias militares passaram a ser exclusivamente escolhidas pelo poder político. (5)

Como pano de fundo, que já vem de longe, temos o ataque contumaz ao estatuto da condição militar; a redução sistemática das FA à inanidade operacional e da IM à cota zero da sua representação política e inexpressividade social.

Não se tem olhado a meios para conseguir tudo isto, e nesse objectivo nenhuma força política tem as mãos limpas.

Na actual circunstância e no que toca concretamente aos pilotos, tudo – e é muito – se pode sintetizar numa frase: há cerca de três anos que se passou a colocar alferes tirocinados, isto é, acabados de receberem as asas, a voar… secretárias!

E todos – agora já se engloba todos os militares dos três ramos das FA e GNR – vivem na angústia do próximo EMFAR, de que ninguém sabe nada, já que nada transpira (e há muito que a confiança se exauriu) e que, por sinal, está a ser cozinhado por alguns seres que os bons chefes de família não convidariam para se sentarem à mesa com eles. Por isso está a suscitar oposição das partes sãs do processo.

E sobre o futuro EMFAR arrisco um prognóstico: se não for atalhado, a versão final irá ultrapassar tudo o que de pior se possa pensar.

Será o fim do que resta das FA como instrumento militar de qualquer valia; a sua funcionalização completa e até a sua partidarização.



Estávamos nisto quando S. Excelência, o senhor primeiro-ministro se apresentou, no dia 29/4, à porta de armas (que também arrisco dizer ele não ter a mínima ideia do que seja ou represente) do Hospital das FA (HFAR).

Identificado pela “sentinela”, logo disse que não queria falar com ninguém, que estava ali como um cidadão qualquer (o dr. Sá Carneiro, em tempos idos, também se arvorou nisto e meteu-se, de qualquer maneira, dentro de uma aeronave em mau estado e acabou por não sobreviver para contar o que sucedeu).

Sem embargo, claro, de se fazer acompanhar por motorista oficial e membros da segurança.

O atrapalhado militar – quando havia tropa a sério, o primeiro-ministro não saía do local sem o oficial de dia (parece que agora é um “graduado de serviço”) o acompanhar ao comandante – lá informou quem lhe competia e a informação acabou por chegar ao comando da FA, em Alfragide, tendo a mesma sido ignorada. Creio que bem.

De facto, a informação chegou lá por inércia, isto é, o comandante da unidade de apoio ao HFAR ainda é oficial da FA, mas este ramo já não manda no complexo, apenas ainda lá possui subunidades suas.

Mais estranho é, aparentemente, que o único a saber da visita do primeiro-ministro, perdão do cidadão Passos Coelho, foi o director do hospital, o qual também se terá “esquecido” de informar o seu chefe hierárquico, ou seja, o CEMGFA.

O qual, por sua vez, também achará “natural” a ocorrência e estará “tranquilo”. Tanto mais que, em boa verdade, nada obrigaria o director do HFAR – a não ser o bom senso – a dar essa informação, dado que o ministro da Defesa fez um despacho determinando que “nesta fase de transição” o dito director dependia dele!

E, já agora, porque é que o polícia da porta d’armas, o oficial de dia, ou lá o que seja, e o comandante da unidade de apoio (outro nome que nada tem ver com a terminologia militar), etc., têm de se preocupar com estes “pormenores” de segurança, hierarquia, regulamentos militares, ética, etc., quando o primeiro-minstro quer passar despercebido e tem comportamentos destes? (O Hollande, em França, também quis passar despercebido e vejam o que lhe aconteceu…)

E que pensar quando o ministro da Defesa chamou a uma unidade militar (o HFAR e restantes) um “campus de Saúde”? Talvez ainda um dia lá façam o Rock in Rio…

Resta pois saber o que S. Ex.ª lá foi fazer. Será que foi verificar como corre a linda obra do seu ministro, ou virou beneficiário da ADM? (6)



Por fim e a propósito, quando o CEMFA soube desta “visita”, estava de abalada para S. Julião da Barra, para um encontro com o Saceur, o general Philip M. Breedlove. (7)

Este, no fim, veio informar o país de que a FA ia comandar uma força no Báltico, com seis F16, em Junho (se ainda os houver), numa operação da NATO – com a crise da Ucrânia por fundo.

Pergunta-se: então já não bastava ter a troika a fazer conferências de imprensa em Lisboa e ainda temos de vir a saber por um general americano o que compete ao governo, ou às FA portuguesas informar?

O Estado português não está a desagregar-se. Já está desagregado.

Oficial piloto aviador



1) Mais concretamente, quatro majores e 95 capitães e subalternos.

2) A prontidão do helicóptero que está em Porto Santo, por ex., está afectada, pois não existe piloto comandante disponível para lá colocar. Prevê-se que vai de Falcon, quando houver uma emergência… Aguarda-se a explosão de alegria que o dr. Alberto João vai ter quando souber. Esperamos que seja o minstro da Defesa a dizer-lhe, pois a responsabilidade é dele… (e não dos chefes militares).

3) O comandante da Esquadra 501 foi entrevistado, mais tarde, na TVI 24, e falou durante mais de 10’. Mas como não é jogador de futebol, estrela de rock, ou bombeiro voluntário a explicar por que é que um fogo se reacendeu n vezes no mesmo local, só teve direito a 30 segundos de fama…

4) Para esta reunião estavam previstos aparecerem cerca de 300 oficiais, mas estiveram 700, mais de 100 dos quais no activo. São dados relevantes.

5) Esta defesa, juntamente com o cumprimento da missão e da coesão e moral das tropas, é um dever inalienável de qualquer comandante.

6) ADM – Assistência na Doença aos Militares.


7) Saceur – Supreme Allied Comander Europe – Comandante Supremo Aliado na Europa

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