Na torre Sul
encontra-se o carrilhão feito em Antuérpia, enquanto na torre Norte vemos o
carrilhão feito em LiègeENRIC VIVES-RUBIO
ANA ABREU
05/05/2014 - Público
Serão conhecidos nesta segunda-feira os sete monumentos que vão ter uma
ajuda da associação Europa Nostra para fazer obras de recuperação.
“Há dois sinos que têm menos
12 cm
que o Big Ben. O Big Ben é visitado, tem toda aquela cultura popular construída
em seu torno, toda a gente o conhece. Nós temos aqui dois e ninguém sabe”
João Soeiro de
Carvalho, investigador
Os sinos têm
motivos mitológicos inscritosDR
“Um conjunto de
sinos preparado para ser musicado”, nas palavras de Mário Pereira, director do
Palácio Nacional de Mafra, um carrilhão é isso. Os dois de Mafra, encomendados
por D. João V no século XVIII, eram segundo o director do palácio presença
obrigatória no currículo de qualquer carrilhonista durante o século XX.
Actualmente em
risco, constam a par com o Paço de Vilar de Perdizes da lista de 11 monumentos
pré-seleccionados para o programa “Os sete sítios mais em risco”, da Europa
Nostra, uma associação pan-europeia de defesa do património.Na segunda-feira,
são conhecidos, durante o Congresso Europeu do Património, em Viena, os sete
que terão financiamento de 10 mil euros, sendo que este reconhecimento facilita
o estabelecimento de toda uma rede de contactos.
Qualquer pessoa
que visite o Palácio Nacional de Mafra não fica indiferente à imponência das
duas grandes torres que comportam os dois carrilhões. Na torre Sul encontra-se
o carrilhão feito em Antuérpia, originário das oficinas Witlockx, a última
geração de construtores de carrilhão da Europa. Já na torre Norte, contamos com
o carrilhão da fundição Levache, feito em Liège.
Os carrilhões
contam com 102 sinosDR
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Mas é ao conhecer
todo o sistema e a observá-los mais de perto que concordamos com o cónego
Assunção Velho, que já no século XVIII dizia que os carrilhões constituem um
património que “quanto mais se examina, mais se admira”. Hoje, os carrilhões
contam com 102 sinos, todos eles com motivos orientais e mitológicos inscritos.
A servir de suporte, um vigamento original de madeira do Brasil.
A boa ideia de D.
João V é mais perceptível ainda ao entrar nas salas onde estão guardados os
sinos antigos fora de uso, mas ao mesmo tempo conservados e guardados. Sinos e
outras peças que noutros tempos constituíram todo o complexo sineiro do
palácio. Ou mesmo ao subir umas escadas em caracol, apertadas e escuras onde
quase temos de adivinhar os degraus para poder estar numa das torres a
contemplar os sinos, uns pequeninos, outros muito maiores do que nós e que
fazem concorrência à beleza da paisagem.
Prova da
grandiosidade de todo este sistema são também os dois autómatos, que com os
seus cinco metros fazem-nos sentir pequeninos e deixam-nos de boca aberta com
tamanha engenhosidade. Estes autómatos são uma espécie de caixa de música
gigante, “o computador da época, do princípio do século XVIII”, que faz com que
os carrilhões produzam melódicos sons automaticamente, explica-nos João Soeiro
de Carvalho, coordenador de um estudo de três anos feito aos carrilhões que se
iniciou em 2010 e levado a cabo pelo departamento de Ciências Musicais da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. São os
“maiores autómatos conhecidos a nível mundial”.
O investigador
refere que estamos perante um complexo que tem uma dimensão importantíssima a
nível mundial e chega a comparar os dois carrilhões de Mafra ao Big Ben de
Londres: “Há dois sinos que têm menos 12 cm que o Big Ben. O Big Ben é visitado, tem
toda aquela cultura popular construída em seu torno, toda a gente o conhece. Nós
temos aqui dois e ninguém sabe.” Soeiro de Carvalho considera que há todo um
património em Mafra que não está a ser aproveitado. “Não está a servir o nosso
país, a nossa sociedade, a nossa cultura, a nossa educação”, uma vez que desde
2004 os carrilhões passaram a estar inactivos.
Os autómatos são
uma espécie de caixa de música gigante,DR
Os concertos de
carrilhão ao domingo à tarde eram um atractivo para um público numeroso e
também internacional. Mas num deles, em 2004, a estrutura de madeira que suporta os
carrilhões cedeu, obrigando à interrupção desse espectáculo e ao cancelamento
dos seguintes. Até hoje, os carrilhões estão escorados por uma estrutura
metálica, que impede os sinos de cair, “porque há estruturas e vigas de madeira
que estão completamente apodrecidas”, explica o director do palácio.
Os registos das
várias intervenções em séculos passados mostram que este problema não é
recente, é cíclico e que se deve essencialmente aos “ventos marítimos”, dada a
proximidade com a costa, explica Mário Pereira. Esses ventos consomem não
apenas as madeiras — o que está mais em risco —, mas também materiais como o
bronze, o ferro ou o cobre, constituintes dos sinos.
Um som com 300
anos
João Soeiro de
Carvalho avançou algumas das conclusões do estudo que coordenou no palácio e
que podem ser um contributo para o restauro dos carrilhões. “Temos um
testemunho histórico da primeira metade do século XVIII praticamente intacto”,
o que faz com que seja possível ouvir nos carrilhões o som que se ouvia há 300
anos. Porque os gostos musicais foram mudando ao longo dos séculos: “Por
exemplo, a escala que nós ouvimos quando tocamos um teclado de um piano não é a
mesma que ouvíamos há 300 anos num teclado”. Por isso, vai-se adaptando todos
os instrumentos musicais, mas sempre que se faz isso está-se a destruir um
património e “a perder a memória de como o som se ouvia antes”.
É esta particularidade
“única” que torna os carrilhões de Mafra mais especiais: ao longo de três
séculos, apenas um foi transformado, o carrilhão sul, por ter “provavelmente um
som mais bonito”. Já o carrilhão norte nunca foi mexido: “Está como soava há
cerca de trezentos anos atrás. Nenhum outro carrilhão que nós conhecemos tem
esta história.” Por isso, devia haver dois modelos de restauro diferentes, um
com uma afinação e mecanismos mais modernos e outro para o carrilhão norte. No
segundo regressava-se ao século XVII, “ao mesmo som, os mesmos mecanismos, tudo
como exactamente aconteceu há cerca de três séculos”.
“Nenhum de nós
gosta de trazer na lapela um monumento como sendo um daqueles que corre maior
risco”, diz o director do Palácio de Mafra, quando questionado sobre as
expectativas de os carrilhões serem seleccionados para o programa da Europa
Nostra, mas considera que esta pode ser “uma via para a sua preservação”. Acha
importante “ver isso numa perspectiva positiva”.
O director do
palácio não acha que este problema de conservação possa colocar em risco a
candidatura à UNESCO que pretende eleger o Palácio Nacional de Mafra como
Património da Humanidade em 2017. Destaca a relevância deste ano, em que o
palácio vai comemorar o seu terceiro centenário, sendo importante que se inicie
“todo um conjunto de programas e projectos que culminem em 2017” . Nessa altura, o
monumento deve estar “salvaguardado e valorizado”, sendo a intervenção nos
carrilhões “vital para isso”.
O secretário de
Estado da Cultura anunciou no Parlamento em Março que estavam assegurados dois
milhões de euros para o restauro, mas que seria “preciso ainda mais dinheiro”.
Editado por Isabel Salema
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