Ana Drago
Investigadora do CES
VIRANÇA
29 março 2024 às 01:13
https://www.dn.pt/2966964822/vem-um-ventura-e-come-o/
Vem
um Ventura e come-o
1. O que aconteceu nos últimos dias na
Assembleia da Repúblic (AR) não foi (apenas) o saldo da incompetência política
do PSD. Foi o resultado de uma armadilha, habilmente montada pelo Chega, que
sabia poder capitalizar qualquer dos resultados possíveis. Ventura anunciou sob
os holofotes o primeiro “acordo” das direitas na AR. Depois esperou. Se o
acordo fosse tomado como certo, era o primeiro rombo no “não é não” de
Montenegro. O Chega ungia-se de gravitas institucional, autointitulava-se como
incontornável no atual cenário político e continuava a pressionar para
participar na governação. Se, como aconteceu, o PSD reagisse procurando sacudir
esse compromisso, para não contradizer o “não é não”, o Chega vitimizava-se e
lançava a confusão. Nem PS nem PSD poderiam manter um impasse que ia erodindo a
credibilidade das instituições a cada minuto televisivo. Ao contrários deles, o
caos não afeta Ventura, dá-lhe alento. Depois, era só lançar o anátema do Bloco
Central, que é sempre mortal para os partidos do centro.
2. Neste episódio, o PSD mostrou incompetência
na gestão política – e já muito foi dito sobre isso. Mas, acima de tudo,
mostrou com uma ingenuidade comovente que ainda não percebeu o que é o Chega.
Primeiro, o PSD pensou que o Chega se contentaria, de momento, em eleger
Pacheco de Amorim. Não, o fascista encartado só serviu como isco. A partir de
10 de março, Ventura quer ir ao pote e nada menos do que isso. Seja com um
acordo de governação que anda a pedinchar desde a campanha eleitoral de forma
insistente; ou por uma subida em eleições futuras que o torne mesmo
incontornável à direita. Segundo, o PSD parece acreditar que, com alguns
acordos limitados, ou com a inclusão nas instituições, o Chega se vai
“civilizar”. Nada mais ingénuo. Isso era o tempo do CDS. Portas esgravatava até
desenterrar cada voto bramando contra o rendimento mínimo, “certas etnias” e
mobilizando a “lavoura” contra a “Europa”; e, depois das eleições, vestia fato
de três peças e exibia a melhor pose de Estado. Nos últimos anos, Ventura seduziu
esse voto e mais além. Mas, ao contrário de Portas, nada tem a ganhar com um
bom comportamento institucional. Cresceu e vive pendurado no bruaá mediático
que se alimenta da confusão e dos clips nas redes sociais, que ganham tração
através do insulto e do extremismo. Não tem nem princípios políticos, nem
razões pragmáticas que o façam questionar a sua fórmula ganhadora.
3. O voto em Pacheco de Amorim de todos os
deputados do PSD é a arma fumegante que prova que Montenegro acha que o seu
governo depende de possíveis acordos com o Chega. Só isso pode explicar que,
depois do PSD ter sido humilhado pelo Chega com todo o país a assistir em
direto, se engula o mínimo de amor-próprio e que se ignore a traição sem
pestanejar. Valores mais altos se levantam – o governo de Montenegro ainda
acredita que pode vir a apoiar-se no Chega para a implementação do programa
ideológico da direita.
Desengane-se. Ventura quer o poder. Não quer
“ajudar o PSD” ou a fraternidade da direita a implementar um programa e não se
contentará com supostos ganhos de causa. Porque ambiciona roubar-lhe a
hegemonia no espaço da direita, e porque quer forçar uma reconfiguração
política do PSD que lhe permita aceder ao poder, o Chega é a ameaça existencial
ao atual PSD.
4. A batalha pela alma do PSD está hoje a ser
travada em cada golpe, iniciativa e declaração. É por isso que não devemos
ignorar o ativismo tonitruante de tantos dirigentes social-democratas na defesa
do diálogo com a extrema-direita. São o eterno coro dos poderes fáticos que se
guiam pela balada do Gato Pardo – percebem que é preciso que algo mude para que
o seu poder fique na mesma. O que Passos Coelho, Relvas, Pinto Luz, Miguel
Morgado e tantos outros nos mostram é que há uma disponibilidade interna para
vestir o PSD para um casamento com a extrema-direita, tomando essa união como a
forma “normal” da direita política no século XXI.
5. Noutros países, onde esse casamento já se
deu, é possível tirar algumas lições sobre o que tem acontecido à direita
“tradicional”. Num contexto certamente diferente, a ascensão de Trump nos EUA
alimentou-se, num primeiro momento, da retórica política extremista lançada
pelo movimento Tea Party dentro do Partido Republicano, mas ganhou depois o seu
peso próprio e mudou irreversivelmente a identidade política do GOP. E, ao
contrário do que dizia a direita portuguesa, nem Trump, nem Bolsonaro, nem mais
recentemente Milei, se “moderaram” quando foram eleitos. Quando chega ao poder,
a nova direita extremista insiste em manobras de instabilidade e atropelo às
regras institucionais, muda-as numa lógica autoritária, e mantém a retórica de
guerra civil interna contra os imigrantes, os pobres e o “espaço socialista”.
6. O texto foi crescendo, e não sobra espaço
para a analisar o acordo feito pelo PS com o PSD, e o que foi dito e feito
pelas várias forças à esquerda. Se o céu não nos cair em cima da cabeça nos
próximos dias, gostaria de voltar a essa análise num próximo texto.
7. No momento em que escrevo, Montenegro ainda
não anunciou o seu elenco governativo. Pode ser que parte das respostas a estas
questões possa ser lido nas suas escolhas para o executivo. Porque das duas,
uma: ou o PSD luta pelo seu espaço e pela sua identidade política; ou,
parafraseando Mário Henrique Leiria, vem um Ventura e come-o. É que acontece às
forças políticas que “ficam deitadas, caladas, a esperar o que acontece”.
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