ANÁLISE
O
“Brexit” e o bumerangue
JORGE ALMEIDA
FERNANDES 10/07/2016
E se o "Brexit"
se tornasse numa surpresa ao contrário? À primeira vista poderia
funcionar como um multiplicador de referendos para desintegrar a
União Europeia. Noutra perspectiva, poderia ser uma "vacina".
Para lá do imenso impacto económico e estratégico — é um
daqueles fenómenos que os analistas gostam de chamar "viragem
histórica" — qual será a sua repercussão última? Nada de
mais incerto.
Com os governos e a
UE em perda de credibilidade, prosperam os discursos contra as elites
e a ascensão dos extremos, de esquerda e de direita. Há um risco de
contágio e de transformar os referendos num instrumento de chantagem
permanente sobre os governos, como faz na Holanda o populista Geert
Wilders.
Surgiu no entanto
outro factor importante. O súbito caos político em Londres e o
ambiente de incerteza diluíram, ou até mudaram, o impacto do voto.
Os britânicos não estão propriamente eufóricos. O "Brexit"
pode traduzir-se num bumerangue. Chris Patten, último governador de
Hong Kong e actual chanceler da Universidade de Oxford, lembra aos
eurocépticos um aforismo de Churchill: "O aborrecimento do
suicídio político é que continuaremos a viver para o lamentar."
Mesmo em caso de
"divórcio amigável", os britânicos terão de viver anos
com o seu "Brexit".
Ressaca
As primeiras
sondagens indicam que, ao contrário do que os eurocépticos
esperavam, não se verifica um efeito de contágio. Na Alemanha, os
partidos do governo, a CDU de Angela Merkel e o SPD de Sigmar
Gabriel, sobem, enquanto a Alternativa para a Alemanha (AfD),
xenófoba e eurocéptica, perde alguns pontos.
Na Holanda, Geert
Wilders regressou ao nível mais baixo desde 2015 e se houvesse
eleições não passaria de 30 deputados em 150. Na Áustria, numa
sondagem anterior ao voto britânico, 51% dos inquiridos diziam ser
favoráveis à permanência na UE e 49 defendiam o "Leave".
Mas, num inquérito de 5 e 6 de Julho, 52% são favoráveis à UE e
apenas 30 desejam a saída. Na Dinamarca, o apoio à UE subiu de
59,8% para 69, enquanto os que querem sair desceram de 40,7% para 32.
Na Finlândia, 59% rejeitam a ideia de um referendo e 68 querem a
permanência. Na França, os dados não mudam: 45% querem a
manutenção na UE e 33 optariam pela saída. A opção pela saída
junta a extrema-direita de Marine Le Pen e a extrema-esquerda de
Jean-Luc Mélenchon. Na Itália, onde as sondagens são muito
flutuantes, 66% dos inquiridos dizem estar na UE.
Trata-se de uma
primeira reacção e as opiniões flutuam. Apenas significa que o
"dia seguinte" do referendo provocou apreensão e não um
efeito de imitação, o que anula uma dinâmica eurocéptica na
esteira do "Brexit".
"Roleta russa"
As reacções dos
europeístas britânicos são conhecidas. "O referendo está
feito e a voz do povo tem de ser respeitada", disse Anthony
Giddens — o teorizador da "Terceira Via" — num discurso
na Câmara dos Lordes. Não se conforma e procura ainda um escape:
"Uma possibilidade seria fazer um segundo referendo uma vez
conhecido o que ‘Leave’ realmente significa. A pressão para o
fazer poderá tornar-se irresistível." Mas a repetição da
consulta não é realista. O que Giddens quererá sublinhar é que os
britânicos não tinham pleno conhecimento do que estava em jogo no
dia 23 de Junho. Se soubessem...
Patten denuncia o
próprio princípio da consulta: "Um referendo reduz a
complexidade a uma absurda simplicidade. (...) Com o ‘Brexit’
vimos o populismo estilo Donald Trump chegar à Grã-Bretanha."
É irresistível a associação entre os ventos que sopram na
Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.
Muitos põem em
causa a legitimidade democrática de um referendo em que as pessoas
chamadas a votar não chegaram a compreender o que estava em causa e
"reagiram" votando segundo os mais variados
decontentamentos. Por isso, Chris Giles, do Financial Times,
qualificou o voto no "Leave" como um fenómeno
"irracional".
O economista
americano Kenneth Rogoff fala em "fracasso democrático
britânico". Diz mesmo: "Isto não é democracia, é roleta
russa para as repúblicas." Porquê? É absurdo fazer um
referendo com estas implicações — tal como os de independência —
com a regra de 50+1. Deveria haver uma maioria qualificada, como o
Supremo Tribunal Canadiano exigiu para o referendo do Quebeque. "Pode
o referendo ser repetido dentro de um ano? Não. No Parlamento uma
maioria apoiaria o "Brexit"? Provavelmente não. Sabia a
população britânica o que realmente estava a votar? Absolutamente
não." Conclui que "é tempo de repensar as regras do
jogo". As actuais são "uma fórmula para o caos".
O referendo, que
muitos tomam como a quintessência da democracia, sempre foi uma faca
de dois gumes. É um procedimento que suscita a "reacção"
e não a deliberação democrática — pesar os prós e os contras e
levar em conta o "bem comum". No caso britânico, por
exemplo, foi patente o desprezo pelos interesses dos jovens.
Se o referendo é
adequado para decisões locais ou necessário para legitimar grandes
opções, como uma saída UE, comporta o referido risco "reactivo":
condensar motivações que não têm a ver com a pergunta a que se
tem de responder com um "sim" ou o "não",
expondo-se a ser dominado pela demagogia. Na Grã-Bretanha, a mais
forte motivação terá sido a imigração, e com ela a livre
circulação das pessoas — tema de que os britânicos faziam uma
bandeira.
Trump e Sanders
O "Brexit"
é uma "bomba" e um momento de viragem. Que lições vão
os políticos europeus tirar?
Falando da América,
Francis Fukuyama vê "a inesperada emergência de Trump e
Sanders como uma grande oportunidade". Porquê? "Com todos
os seus defeitos, Trump rebentou a ortodoxia [económica] republicana
que prevaleceu desde Ronald Reagan", responsável pelo
crescimento das desigualdades. "Do mesmo modo, Sanders mobilizou
a reacção duma esquerda que estava desaparecida." Tudo isto
incita a "uma renovação da política americana".
Mais importante do
que as suas propostas, repugnantes ou idealistas, é o facto de ambos
representarem movimentos de resposta ao desprezo das elites perante
os sentimentos populares. "As mobilizações populares não são
inerentemente más ou inerentemente boas. Podem fazer grandes coisas
como na Era Progressiva [princípio do século XX] ou no New Deal,
mas também coisas terríveis como na Europa dos anos 1930."
O efeito bumerangue
sugerido nas sondagens é o curto prazo. Por isso regresso ao
argumento da "irracionalidade" do voto britânico, que diz
respeito ao longo prazo. Para lá das particularidades nacionais, a
dita "irracionalidade" reflecte uma desconfiança geral nas
elites dirigentes e intelectuais e no funcionamento da UE, sentimento
espalhado por toda a Europa e que tende a provocar a erosão da
democracia. A "irracionalidade" pode encobrir uma revolta.
Neste caso, o problema é a revolta e a irracionalidade um mero
sintoma.
Errar o diagnóstico
é espalhar o incêndio e premiar os pescadores de águas turvas.
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