Europeísmo
de conveniência: a União Europeia na luta político-ideológica
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 01/07/2016 – PÚBLICO
As
gerações de europeus de hoje têm de encontrar um novo modelo de
integração. Este não pode continuar a esquivar-se da política,
nem da democracia, em nome de um superior ideal europeu, demasiadas
vezes instrumentalizado por europeístas de conveniência.
1. O referendo
britânico levantou, novamente, a questão de saber o que é ser
europeísta. Na utilização mais óbvia significa ser um apoiante da
União Europeia, suportando, geralmente, todas as iniciativas para
uma maior integração económica e política. Neste sentido, está
próximo do federalismo. Mas o federalismo é apenas uma das
possíveis formas que o europeísmo pode revestir, onde este ganha
maior intensidade. É aquela que vê como favorável a fusão dos
Estados-Nação europeus numa espécie de Estados Unidos da Europa.
Não tem o seu monopólio. Num sentido abrangente — mais adequado
para uma discussão política —, o europeísmo inclui todas as
formas de pensamento favoráveis à integração europeia, pela via
económica, política, ou cultural, bem como a uma nova entidade
aglutinadora destes. Pode, ou não, ter como objectivo uma futura
união política de tipo federal, ou uma integração económica
próxima desse modelo. Há, por isso, graus e tonalidades diferentes
de europeísmo (como também há graus e diferentes formas de
eurocepticismo). É perfeitamente possível ser-se um europeísta
convicto e um crítico duro da União Europeia, sobretudo face ao
caminho de integração seguido nos últimos tempos. Para uma
discussão europeia útil — sobretudo agora que a União Europeia
se tornou num assunto que divide tanto a opinião pública —, não
basta separar europeístas de eurocépticos. É necessário
introduzir uma terceira categoria analítica, a que vou chamar os
europeístas de conveniência.
2. Os europeístas
de conveniência são um grupo vasto e heterogéneo. Não são
europeístas por convicção. Esses acreditam, de forma genuína e
incondicional num ideal europeu, nas suas diferentes formas, e apoiam
a integração europeia / União Europeia precisamente por isso
mesmo. Tal como ocorre com todas as ideologias políticas, o universo
do europeísmo é bem mais preenchido por europeístas de
conveniência do que por europeístas de convicção — uma escassa
minoria. Quanto aos europeístas de conveniência, o que os move não
são os ideais, mas interesses e a perspectiva de ganhos. (Na óptica
pura dos ideais até poderão ser eurocépticos, por razões de
direita ou de esquerda.) Actuam numa lógica essencialmente
pragmática e / ou oportunística. O europeísmo de conveniência
abrange todos os que, na classe política, vêem, para si próprios,
possibilidades de ganhos de poder, ou vantagens na prossecução da
sua visão político-ideológica e / ou novos lugares e perspectivas
de carreira internacional nas diversas instituições europeias.
Abrange, também, os grupos de interesses empresariais e
profissionais para os quais fazer lobby em Bruxelas é mais
compensador do que a nível nacional. Inclui, ainda, os especialistas
ligados a think thanks, comités técnicos e outros organismos que
proliferam ligados à tecnocracia de Bruxelas; as ONG financiadas
pelo orçamento da União Europeia; e, claro, todos os que beneficiam
dos programas e subsídios, desde a agricultura às universidades —
para muitos dos quais é mesmo esse o seu modo de vida.
3. Como todos os
ideais, o europeísmo não se materializa num vazio político, nem
económico. Quando passado à prática, implica fazer escolhas
concretas que tocam em interesses e potencialmente dividem. Quando
essas escolhas, em que se materializa o europeísmo, se traduzem em
benefícios para certos grupos, trazem-lhe, normalmente, adeptos de
conveniência. Os partidos de centro-direita, que usualmente ocupam o
poder, hoje são os que mais defendem a União Europeia e, sobretudo,
as suas políticas económicas e monetárias. Não é por europeísmo
de convicção, embora, sem qualquer dúvida, existam europeístas
convictos nessa área política, tal como existem à esquerda.
Estando o centro-direita mais próximo da orientação (neo)liberal
da economia e o centro-esquerda mais próximo da linha Keynesiana,
percebe-se bem as razões do europeísmo (de conveniência) à
direita. As políticas do mercado único e da união económica e
monetária prosseguidas pelas instituições europeias — mas também
inscritas nos Tratados —, adequam-se, genericamente, à sua visão
político-ideológica. Na prática, são um multiplicador de poder e
de vantagens políticas internas.
4. Estamos perante
uma condicionante estrutural criada por este modelo de integração
europeia, o qual, supostamente, é apolítico (como se isso fosse
possível num processo desta natureza!) Por isso, para o
centro-direita, estar no governo, com esta condicionante estrutural,
que limita as opções dos partidos à sua esquerda, é óptimo.
Existe sintonia ideológica. Tende a beneficiar, adicionalmente, da
cobertura e benevolência das instituições europeias, na
interpretação das suas políticas e regras. Se estiver na oposição,
também há vantagens. As políticas europeias ajudam a fazer o
trabalho de oposição. Funcionam como factor de pressão adicional,
dado o conflito de orientações políticas gerado pelos poderes já
transferidos para as instituições europeias. Para uma discussão
aberta e, tanto quanto possível neutral, importa deixar claro que
isto não se aplica apenas ao centro-direita. Se estivéssemos numa
situação contrária — onde a linha seguida pelas instituições
europeias e Tratados fosse essencialmente Keynesiana —, teríamos,
tudo indica, a situação inversa. Assistiríamos a um surto de
europeísmo (de conveniência), na esquerda de poder, por similares
razões; e à direita a fortes críticas imbuídas de um proporcional
eurocepticismo.
5. As orientações
de política económica e monetária da União Europeia geram
europeístas de conveniência dentro dos Estados-Membros. Mas há
outros exemplos interessantes ligados às ambições de poder dos
grandes Estados-Nação. Os casos mais óbvios são a França do
passado, sob a liderança do general de Gaulle, e a Alemanha de hoje,
sob o governo de Angela Merkel. Em ambos os casos, sob formas
diferentes, há uma instrumentalização das Comunidades / União
Europeia para projectar o interesse nacional e multiplicar poder. Mas
não são apenas os grandes Estados-Nação que procuram
instrumentalizar a União, através de um suposto interesse geral
europeu. Num outro extremo, encontram-se as ambições
independentistas de pequenas nações, como a Catalunha e a Escócia,
que pretendem ser Estados soberanos. Após o referendo britânico
onde o eleitorado se pronunciou pela saída da União Europeia, a
Escócia procurou, rapidamente, apresentar-se como um bastião de
europeísmo. Os escoceses tinham votado a favor da permanência. Irão
exigir outro referendo para se tornar independentes e membros da
União Europeia. À primeira vista, um europeísmo exemplar. Na
realidade, bem mais um europeísmo de conveniência. O nacionalismo
escocês, tal como o dos catalães, procura aliados políticos
externos contra a Estado do qual se quer separar. Sejamos claros: são
nacionalismos apresentados, simpaticamente, como europeísmos. Em
nada a beneficiam a União, só lhe trazem problemas.
6. A União Europeia
queria ter o melhor de dois mundos. Por um lado, pretendia ter os
poderes de soberania dos Estados, que, entretanto, lhe foram sendo
transferidos pelos Tratados, em nome do interesse geral dos cidadãos
europeus. Por outro lado, pretendia ficar afastada da luta
político-ideológica nacional, despolitizando os assuntos. Criou-se
a ilusão de que isso seria possível, e esta foi mantida durante
bastante tempo. Para o efeito, surgiram mecanismos que reduzem o
impacto das escolhas políticas nacionais dos eleitores, ao mínimo.
Primeiro, os Tratados foram blindados com uma linguagem tecnocrática
que intimida o cidadão, tornando-o dependente da mediação do
especialista e / ou do político pró-europeu. Depois, foi criada uma
burocracia em Bruxelas (Comissão) — desde os anos 1990 também em
Frankfurt (Banco Central Europeu) —, que, na prática, não
responde directamente perante os eleitores. Complementarmente,
surgiu, ainda, um Tribunal (o Tribunal de Justiça da União
Europeia) onde os juízes, normalmente, estão imbuídos de um
convicto federalismo jurídico. Desde os primórdios das Comunidades
que as suas decisões têm amplificado, e muito, o alcance da
integração, pela via da jurisprudência. Ironicamente, este modelo
acabou por ser traído pelos seus sucessos. Os contínuos avanços da
integração criaram nova realidade, com uma presença mais visível
da União Europeia, por vezes ressentida como intrusiva na soberania
estadual. A crise financeira e económica de 2007/2008 fez o resto. A
população despertou da sua letargia permissiva.
7. Hoje tornou-se
claro, para qualquer cidadão, que a Comissão faz escolhas
político-ideológicas: o valor máximo anual do défice, as metas
orçamentais, as possibilidades de auxiliar bancos (Novo Banco,
Banif, CGD, etc.), ou empresas em dificuldades financeiras (como, no
passado, a TAP), não são meras escolhas técnicas: são políticas.
Por sua vez, ter mais ou menos moeda em circulação, emprestar, ou
não, dinheiro directamente aos Estados, aumentar ou diminuir as
taxas de juro, optar por políticas com menos inflação, ou menos
desemprego, são escolhas feitas pelo BCE que, sendo técnicas, têm
também uma dimensão política. Iludida pela possibilidade de
aumentar continuamente a integração e despolitizar, a União
Europeia acabou por cair no meio das lutas político-ideológicas
nacionais. É uma consequência do elevado grau de integração já
atingido e de não criar bem-estar material em crescendo.
Provavelmente, este será o novo normal. O problema é que nem
Estados-Membros, nem as instituições europeias, estavam preparadas
para isso. O método comunitário, inventado por Jean Monnet no
pós-II Guerra Mundial, já não responde. As condições políticas
e económicas do século XXI não são as dos anos 1950, nem sequer
as dos anos 1990. As gerações de europeus de hoje têm de encontrar
um novo modelo de integração. Este não pode continuar a
esquivar-se da política, nem da democracia, em nome de um superior
ideal europeu, demasiadas vezes instrumentalizado por europeístas de
conveniência.
Investigador
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