Porfírio
Silva. “Corremos o risco de a Europa se transformar numa URSS sem
KGB”
Considerado
um dos estrategas de António Costa, o deputado e dirigente
socialista Porfírio Silva, de 54 anos, é membro do Secretariado do
PS e da sua comissão permanente. É responsável pelas relações
internacionais do partido e, na AR, coordena o grupo socialista na
comissão de Educação. Filósofo, tem um interesse especial em
robótica. Miguel Silva
MANUEL AGOSTINHO
MAGALHÃES
01/02/2016 / Jornal
I online
Porfírio
Silva, conselheiro de António Costa, e responsável pelas relações
internacionais do PS, diz que não “pode ser brando” com Bruxelas
Porfírio Silva
acaba de publicar o livro “E agora, Esquerda?”. A pergunta que
justifica o título foi feita pelo autor «no dia em que a Comissão
Política do PS deu mandato ao secretário-geral para explorar o que
é que se fazia a seguir às eleições». E mantém-se atual. É uma
pergunta que o deixa confortável, como também o deixa o “trabalho
todos os dias” para encontrar soluções em conjunto com o PCP e o
BE. Não é um “aborrecimento”, mas algo de “muitíssimo bom
para a democracia”.
Há má vontade de
Bruxelas com o Orçamento do Estado?
Para falar verdade
neste caso, não posso ser brando. Sabemos que há responsáveis em
Bruxelas que têm andado a chamar jornalistas para, em off, envenenar
a comunicação social contra Portugal, mostrando documentos que
deviam ser reservados e dando pretensas explicações que são afinal
falsidades. Aqueles que foram tão pródigos em previsões falhadas,
que foram recentemente criticados pelo Tribunal de Contas Europeu
pela forma como geriram os programas de ajustamento, não deveriam
ser tão lestos a prejudicar a cooperação que devia ser leal entre
Estados Membros e instituições europeias. Funcionários públicos
europeus, pagos para servir o bem comum europeu, não deveriam
deixar-se instrumentalizar, não deveriam deixar-se transformar em
armas de arremesso da direita europeia. Infelizmente, há algumas
pessoas em Bruxelas que não têm noção das suas responsabilidades
e que não sabem honrar o histórico de comportamento leal das
instituições europeias. Não confundo as instituições com alguns
funcionários, mas há de facto comportamentos pessoais que deixam
mal as instituições. Mas há alguns sinais que não são os mais
desejáveis. Por exemplo, se compararmos a forma como foram tratados
os processos de dois bancos que tiveram que ser socorridos, um na
anterior legislatura [o Novo Banco] e outro nesta [o Banif], vemos
que há orientações diferentes dos serviços num caso e no outro.
Não é aceitável.
Há um preconceito
da União Europeia contra governos de esquerda?
Deixe-me colocar
isso de outra maneira, de uma perspetiva mais geral. Dir-lhe-ia uma
coisa com uma expressão relativamente forte. Nós corremos o risco
de que a União Europeia se transforme numa União Soviética sem
KGB. Claro que sem KGB porque não há esse aparelho repressivo. Na
União Soviética tínhamos um Estado com uma Constituição que
reconhecia direitos aos cidadãos e um certo número de instituições.
Se as coisas fossem com estavam na Constituição e se as
instituições funcionassem como estava previsto, havia condições
para haver liberdade política e social. Porque é que isso não
acontecia assim? Porque havia uma espécie de realidade virtual que
controlava todos os aspetos, um partido hegemónico e uma ideologia
total que, transformava um sistema que podia ser pluralista num
sistema dominado por uma única organização e um único ponto de
vista. A União Europeia, apesar de reconhecer a diversidade dos
países, de ter várias instituições, de contar com várias forças
políticas, acaba na prática a ser gerida por uma ideologia
dominante que não aceita alternativas e mesmo por uma espécie de
novo partido dominante. Na prática, a direita europeia, organizada
no PPE, acaba por controlar governos, acaba por ter uma força
desmesurada na Comissão Europeia e também tem o seu peso no
Parlamento Europeu, acaba por ter uma influência excessiva num certo
tipo de serviços da Comissão Europeia e a certa altura é mais
importante saber o que decidem os líderes do PPE nas reuniões
preparatórias do Conselho Europeu do que esperar para saber o que
decidem as instituições. E há outro ponto que é a burocracia.
Como se manifesta?
Um dos problemas do
funcionamento do Estado soviético era uma burocracia, em que a
questão dos direitos e dos deveres acaba por ser reduzida a um
funcionamento maquinístico. E nós, em algumas circunstâncias,
temos isso nas instituições europeias. Quando um governante de um
país quer dialogar politicamente com o comissário e o comissário
faz descer a conversa para um diretor-geral e o diretor-geral faz
descer a conversa para um diretor e o diretor faz descer a conversa
para um funcionário que segue o dossiê, transforma uma discussão
política - em que as escolhas dos países e as escolhas dos povos
têm importância - para uma discussão técnica, burocrática, que
no fundo é uma forma de esconder uma coisa: nós já temos a nossa
opinião e não queremos discutir isso. O funcionamento democrático
da União Europeia é ameaçado se houver esta tentativa sistemática
de transmitir sinais negativos quando um país muda de orientação,
designadamente quando faz uma escolha de esquerda.
Já sentiu isso,
nesta fase inicial do Governo?
Eu sou deputado, não
sou do Governo. Mas tenho algumas indicações de que alguma
ortodoxia de pensamento pode impedir a necessária capacidade de
compreensão para analisar a realidade como a realidade é e não com
preconceitos.
O maior perigo para
o Orçamento pode vir não da discussão interna à esquerda mas da
aceitação da União Europeia. Isso dá que pensar?
Eu acho que dá que
pensar. É sabido que tanto o PCP como o BE têm uma posição mais
pessimista sobre a atitude que a União Europeia pode ter em relação
a isso. Mas, com isso vivemos. O que nós não podemos é aceitar que
sejam as próprias instituições europeias, às vezes os próprios
serviços, a dar razão àqueles que dizem que há umas pessoas em
Bruxelas que acham que as coisas têm que ser como elas pensam e não
de acordo com as escolhas dos povos e de acordo com um cumprimento
razoável das regras.
Chegou a Portugal
uma missão da troika, para fazer uma fiscalização das políticas
deste governo que inverteram um caminho de austeridade. É um cenário
de exame. A troika ainda manda?
É natural que os
credores queiram saber como é que as coisas estão a correr. Quanto
a isso, nada a opor. O que não seria aceitável é que se voltasse a
um clima em que de certo modo deixávamos de ter as instituições
normais da União Europeia a funcionar e passávamos a ter uma
espécie de instituição de emergência que era a troika, como se a
troika definisse a nossa convivência comum no seio da Europa. Penso
que isso não é o que está a acontecer, agora é importante que se
entenda que uma parte importante do trabalho feito nos anos de
ajustamento provavelmente teria de ser feito. Há outras coisas que
foram mal feitas ou que foram más opções políticas ou que foram
impostas na base de estudos insuficientes. Daí que se chegue à
conclusão de que é preciso arrepiar caminho, que é aquilo que
estamos a fazer. Eu não aceito diabolizar as instituições
internacionais, não podemos é confundir os planos. Que venha uma
equipa técnica conversar com as equipas técnicas do país para se
informar de como as coisas estão a correr acho normal. Que as
equipas técnicas sejam tratados como se fossem soberanos de outro
Estado ou como se fossem os parceiros políticos de Portugal isso não
é verdade e não podem ser recebidos dessa maneira.
Falando agora dos
acordos à esquerda, da chamada geringonça. O Porfírio Silva
situa-se à esquerda no PS e está na moção de António Costa em
que já está inscrita esta preferência de área política. O dia
dos acordos é o mais feliz da sua vida política?
Não tenho tendência
para fazer apreciações dessa natureza. Penso que a História dirá
mais tarde que os acordos à esquerda foram um momento relevante da
nossa democracia pós-25 de Abril. Mas há uma coisa que lhe queria
dizer: nós temos que quebrar algumas barreiras mentais e culturais.
Eu não fujo da palavra geringonça. Sim, a maioria parlamentar na
qual o governo se apoia na Assembleia da República não é uma
máquina perfeita e ainda bem que não é. Se o Dr. Paulo Portas
tivesse lido um livro do filósofo Karl Popper, ‘A Sociedade Aberta
e os Seus Inimigos’, saberia que a ideia de perfeição numa
comunidade política é uma perigosa. É uma ideia totalitária.
Estamos felizes que não tenhamos inventado uma máquina perfeita,
uma máquina de guerra, que tenhamos inventado a tal geringonça, que
não é perfeita é um instrumento democrático. É um instrumento
que nos obriga todos os dias a assumir o que os representantes do
povo têm de ser. Em função do que disseram na campanha eleitoral e
de uma situação política em que não podem fazer sozinhos aquilo
que disseram que queriam fazer.
O BE cresceu nestas
presidenciais e o PCP teve um resultado mau. Está preocupado com a
relação entre os dois partidos?
Não penso que tenha
acontecido nada nestas eleições presidenciais que mude
substancialmente o nosso quadro de relacionamento.
O crescimento do BE
pode ameaçar o PS?
O BE está hoje a
fazer uma coisa que no passado nem sempre foi capaz de fazer, porque
houve uma altura em que tinha um comportamento muito anti-PS Hoje têm
uma atitude mais positiva, continuam a marcar as suas diferenças,
mesmo no Parlamento, em muitos dossiês, distinguem aquilo que
concordam daquilo que discordam e penso que o eleitorado do BE que
votou neles continua a achar interessante essa dialética - não
concordam com tudo e não discordam de tudo. O que é que nós temos
de fazer do lado do PS? Sermos capazes de manter a nossa posição de
base moderada e com capacidade de diálogo com todas as forças da
sociedade portuguesa, a nossa posição tradicional de partido do
progresso, de partido de esquerda, que quer mudar as coisas a pensar
nas pessoas e não por ideias abstratas acerca do mundo e ser capaz
de melhorar a sua relação com a sociedade, capaz de ter uma relação
mais direta com os movimentos que mexem, com as pessoas que tomam
iniciativas, que fazem coisas interessantes, que têm ideais para
melhorar as coisas e sermos capazes de melhorar essa relação. É
isso que temos de fazer, não é uma questão de termos medo deste ou
daquele partido. Há um trabalho a fazer, efetivamente, e uma das
coisas que pode ser boa para nós é o governo governar bem. Que
obviamente pode mostrar que o PS, que tem uma posição importante
nesta solução política, que no fundo assumiu a responsabilidade de
governar em nome desta solução política, se o governo fizer um bom
trabalho - e eu acho que para já está a fazer - isso ajudará as
pessoas a entenderem que o PS continua a ser um partido importante
para o país e para a esquerda.
O PS assinou um
acordo com o PSOE com uma estratégia para exercer pressão na União
Europeia no sentido de mudança de orientação política. O PSOE
está em dificuldades em Espanha. A estratégia está em risco?
O documento que o PS
e o PSOE elaboraram foi uma iniciativa de ambos os partidos mas foi
acolhida pelo conjunto do PS europeu. Esse documento com o objetivo
de criar um novo impulso para a convergência na Europa diz
basicamente o seguinte: nós socialistas concordamos que há
determinadas reformas que é preciso fazer para melhorar a capacidade
dos nossos países para responderem aos desafios presentes,
designadamente precisamos da mais economia, precisamos de melhor
funcionamento do Estado, precisamos de Finanças Públicas sãs,
assentes em bons princípios económicos. Nós aceitamos esse
desafio, agora, o que dizemos é, as reformas estruturais, as tais
reformas estruturais, não podem ser uma receita que a direita
inventou e agora quer que toda a gente aplique. Porque quando certas
instituições falam nas reformas estruturais estão a pensar que nós
temos de desregular o mercado de trabalho, que temos que diminuir
salários. Está visto que isso não é solução para os nossos
problemas. Mas há problemas que nós temos de enfrentar com muita
determinação. Para Portugal, resolver o problema do défice de
qualificações é uma reforma que nós entendemos como estrutural e
queremos o apoio da UE para fazer isso. É preciso que o Estado seja
mais eficaz e mais eficiente, é preciso que o Estado favoreça a
sociedade e favoreça a economia, em vez de criar obstáculos.
Queremos que a UE reconheça isso como uma necessidade de
transformação estrutural e que nos apoie. O que este documento pede
é que se permita aos países identificarem quais são as suas
reformas de progresso que têm de ser feitas e não obrigarem-nos a
fazer um prato que não é aquilo que nós precisamos de comer,
segundo uma receita que alguém inventou noutro. Queremos que cada
país possa identificar quais são os seus obstáculos estruturais ao
desenvolvimento e que possa atuar naquelas áreas.
Como explica a
derrota do PS e de toda a esquerda nas presidenciais?
Não quero desculpar
os nossos resultados com os outros, mas é evidente que Marcelo
Rebelo de Sousa beneficia de anos e anos a fio de publicidade
gratuita na televisão. Mas, enfim, deixando os outros e passando
para nós. O PS começou por ter dificuldade, porque havia vários
candidatos possíveis do PS que não quiseram ser candidatos -
António Guterres, António Vitorino, Jaime Gama. Outra coisa que
também não correu bem foi haver dirigentes do PS que pela forma
como criticaram candidatos possíveis nossos acabaram por
inviabilizar o apoio do PS, como tal, por exemplo ao Professor
Sampaio da Nóvoa. E depois, em terceiro lugar, o próprio surgimento
de uma candidatura de dentro do próprio PS, uma militante distinta e
ex-presidente do PS, que podia até ter um efeito interessante nesta
disputa eleitoral mas acabou por ser vítima de algumas pessoas que
desde cedo quiseram usar aquela candidatura como um aguilhão contra
a direção do PS, contra o próprio secretário-geral e quiseram
fazer daquela candidatura uma candidatura de grupo. Eu quero
acreditar que a própria Maria de Belém não era nada disso que
queria. O que é certo é que aqueles que quiseram instrumentalizar a
candidatura de Maria de Belém para pequenos interesses de grupo
dentro do PS fizeram um péssimo serviço a toda a gente. O resultado
foi este.
Foi bom não haver
segunda volta para António Costa não ter de enfrentar Marcelo?
Podia ter havido
segunda volta e era bom que tivesse havido. Não houve por causa dos
episódios da última semana de campanha. Eu concordo com alguns
apoiantes de Maria de Belém que disseram que achavam estranho que a
notícia das subvenções [a sentença do Tribunal Constitucional]
aparecesse naquela altura, eu também acho estranho. E registo que o
único que ganhou com isso foi Marcelo Rebelo de Sousa. Estou
absolutamente convencido de que se não tivesse havido esse episódio
naquele momento, Marcelo teria sido obrigado a ir à segunda volta.
Com António Costa,
o PS perdeu as regionais na Madeira, as legislativas e as
presidenciais. Quantas derrotas eleitorais consegue aguentar esta
direção do PS?
Se o resultado for
sempre o das legislativas, em que nós não chegamos lá da maneira
que queremos mas chegamos lá de outra maneira, e até fazendo mais
qualquer coisa do que estávamos à espera de poder fazer, se for
sempre assim, muito bem - vamos continuar.
O que deve fazer o
PS neste congresso?
O PS neste congresso
deve olhar para o futuro e deve saber que o partido é fundamental
para a governação. Nós não podemos cometer o erro que já
cometemos noutras ocasiões que é dizer ‘agora estamos no governo,
quem está no governo que faça o seu trabalho, quem está no
Parlamento que faça o seu trabalho e o partido fica à espera, ou
fica em segundo plano’. Não pode ser. Os partidos são um
instrumento de cidadania fundamental. É através dos partidos que
muitos cidadãos anónimos conseguem participar, conseguem ter voz,
conseguem estar informados, conseguem dar a sua opinião, conseguem
ajudar a mexer as coisas. E nós estamos absolutamente empenhados em
que o partido saia do congresso consciente disso. Aliás, a
reformulação da direção do partido, com a eleição da
secretária-geral adjunta, Ana Catarina Mendes, a criação de uma
comissão permanente, onde não há ninguém do governo, onde estou,
é a tomada de consciência de que o partido é fundamental.
Era bom que
Francisco Assis aparecesse neste congresso? Ele parece hesitante.
Tenho muito respeito
pelo meu camarada Francisco Assis, intelectualmente e politicamente.
Eu acho que o facto de ele se pronunciar livremente não o obriga a
ser candidato a nada. Se ele quiser ser candidato, magnífico, se ele
não quiser, também acho que o facto de ele escrever artigos, fazer
intervenções e ter opiniões não o obriga a ser candidato a
qualquer coisa.
Será positivo ter
mais do que um candidato a líder do PS?
Eu acharia isso bem.
Eu sou muitíssimo contra as unanimidades, que são uma forma de
preguiça. São uma forma de não discutirmos nada, de não discutir
o que há para discutir e mais tarde problemas que até podiam ser
bem resolvidos acabam por se tornar problemas complicados. Acho que
deve haver quem discorde, quem tenha outras ideias, quem ache que o
caminho deve ser outro deveria arranjar uma maneira de que houvesse
uma moção, de que houvesse uma candidatura e de que houvesse um
debate. Isso é que é saudável.
Parafraseando
Marcelo, pode dizer-se que o Porfírio Silva é a esquerda da ala
esquerda do PS?
Não, não pode. Eu
estou no PS há 40 anos, inscrevi-me quando fiz 14 anos. Alguns
interpretarão as minhas posições como mais à esquerda, eu devo
dizer que me entendo a mim próprio como estruturalmente moderado.
Penso que até sou um social-democrata moderado, no sentido em que os
sociais-democratas foram sempre uma corrente da esquerda-esquerda.
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