Escravatura
por dívida
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 13/02/2016 - PÚBLICO
Se
se tratar de um estado soberano que tenha uma grande dívida, este
pode ser obrigado, como aconteceu na Grécia, a aceitar uma qualquer
forma de escravatura por dívida.
A história conheceu
e conhece muitas circunstâncias em que, por não pagamento de uma
dívida, uma pessoa perdia a sua liberdade e ia preso ou, pior ainda,
era reduzido a um estatuto de escravatura, temporária ou definitiva.
Estas práticas existiam na Grécia antiga, com a sempre especial
excepção de Atenas, onde Sólon as proibiu. E mais ou menos
espalhadas continuaram na Índia praticamente até aos nossos dias,
tendo conhecido formas variadas de trabalho forçado durante a
expansão colonial europeia. Hoje, uma das formas modernas de
escravatura por dívida é praticada pelos grupos mafiosos que
exportam mão-de-obra e emigrantes para a Europa e América e
mulheres para redes de prostituição, retirando-lhes os documentos,
em nome da dívida que contraíram ou as suas famílias para "pagar"
a viagem e a entrada ilegal nos países mais ricos. Estamos a falar,
como é óbvio, de actividades criminosas, visto que a escravatura é
um crime.
Ah!, afinal não é
bem assim. Se se tratar de um Estado soberano que tenha uma grande
dívida, por exemplo, Portugal, este pode ser obrigado, sob pena de
morrer à fome ou de uma qualquer forma de intervenção estrangeira
mais ou menos agressiva que o transforme num pária, como aconteceu
na Grécia, a aceitar uma qualquer forma de escravatura por dívida.
Escravatura significa aqui deixar de ser um país democrático,
porque os seus habitantes deixam de poder votar como entenderem, ou
então votam sem consequência, porque as políticas que lhe são
exigidas são sempre as mesmas — trabalhar para pagar aos credores,
sob a forma que os credores consideram ser mais eficaz em função
dos seus interesses. Escravatura significa aqui que um país,
Portugal, por exemplo, deixa de ser propriedade dos portugueses para
o ser dos credores, que definem os orçamentos, as políticas, até
ao mais pequeno pormenor, deixando apenas a intendência muito menor
aos responsáveis locais. Escravatura significa que esses países e
povos que assinaram em desespero de causa um contrato, seja um
memorando, seja um tratado orçamental, um contrato por dívida, ou
outro, um contrato que obriga todas as políticas a servir a dívida
e o seu pagamento, não podem sequer escolher qualquer outro caminho
para pagar a dívida que não seja o de aceitarem a escravatura,
senão partem-lhes as pernas. Os credores controlam a "reputação"
e a "confiança" de um país, conforme ele cumpre os
preceitos do bom escravo, e, caso haja dúvidas sobre a sua
obediência, tiram-lhe de imediato o ar.
Lembro-me disto
quando ouço justificar tudo o que acontece com a "bancarrota
Sócrates". E tudo o que nos acontece não é coisa de somenos,
é aquilo que define a liberdade de um país e de um povo, é a perda
de democracia, a perda de autonomia dos portugueses para se
governarem, a redução das suas instituições como o Parlamento à
impotência, é o taxation without representation, é a humilhação
pública de governos através de fugas de informações de
funcionários de Bruxelas, é o desprezo e o deitar gasolina para a
fogueira de pessoas como Schäuble e, pior que tudo, é ver
portugueses muito contentes com a submissão do seu país. Percebe-se
porquê: as políticas que nos são impostas são as deles,
identificam-se com elas e os interesses que representam (e
representam muitos interesses) sentem-se confortáveis com a
escravatura que nos é imposta. Podem não governar já hoje
Portugal, mas governam-no a partir de Bruxelas, das agências de
rating e do senhor Schäuble.
A "bancarrota
Sócrates" foi um desastre para o interesse nacional, Sócrates
tem uma imensa responsabilidade, mas não está solitário nessa
responsabilidade. Embora ainda haja muitas obscuridades no que
aconteceu, a responsabilidade deve ser partilhada com o PSD e o CDS,
e em menor grau como BE e o PCP. Parte dessa responsabilidade é
também da crise financeira internacional, da maneira como a Alemanha
suscitou, com o caso grego, a crise artificial das dívidas
soberanas, e do comportamento errático da Comissão sob tutela
alemã, que primeiro quis combater a crise deitando dinheiro em cima
da economia e depois travou, virando 180º a política económica.
Bem vistas as coisas, sem que isso signifique uma caução às
políticas despesistas de Sócrates, podia não ter havido a
"bancarrota Sócrates".
Por isso, a situação
actual não é filha de um único evento, mas de dois: a "bancarrota
Sócrates" e a governação desastrosa do PSD-CDS dos últimos
quatro anos. Como já escrevi várias vezes, a crise de 2008-2011,
abriu caminho para uma outra crise, que tem sido responsável pela
estagnação da Europa em contraste com os EUA. E o que se seguiu,
para países como Portugal, foi menos dramático do que a iminência
de não ter dinheiro nos cofres, mas foi, num certo sentido, pior:
foi a redução do país a uma política que, acentuando as
desigualdades e a pobreza, destruindo os escassos recursos que
existiam, erodindo a frágil classe média e obrigando à emigração
dos mais qualificados, impedindo qualquer política de
desenvolvimento, tornou o país num medíocre executor de políticas
com um único objectivo: pagar a dívida que é hoje, no meio da
crise bancária e financeira, uma linha de vida para os credores.
Pequenos que somos, não contando muito para os balanços, contamos
para o exemplo. Aí contamos muito mais do que devemos, daí a enorme
pressão política sobre o Governo Costa, que tem garantida a enorme
hostilidade dos mesmos que tornaram estas políticas a variante
nacional da TINA. O problema não é de "desconfiança", é
de hostilidade — ele não é dos nossos, não é o que foi Passos
Coelho, logo, vamos ensiná-lo como fizemos aos gregos. Com os
resultados brilhantes que se vêem na Grécia.
O contentamento mal
escondido da direita radical com as dificuldades do Governo Costa
coloca-a com entusiasmo ao lado da vozearia que vem de Bruxelas e
Berlim, alguma de uma arrogância que devia ofender já não digo um
patriota, mas um português que gosta do seu país. Responsáveis do
Eurogrupo, altos funcionários sob a capa das fugas anónimas,
antigos e actuais ministros das Finanças europeus, holandeses,
bálticos, alemães, dão entrevistas pronunciando-se sobre um
governo legítimo da União Europeia com uma desenvoltura que nunca
tiveram com os responsáveis políticos húngaros e polacos cujas
malfeitorias em direitos e liberdades são-lhes bastante menos
importantes do que uma décima no défice português. E quando alguém
acha que todas estas vozes, falando também para as agências de
rating e para os "mercados", são demais, eles encolhem os
ombros e dizem que um país em bancarrota é escravo da dívida.
Não, não é só
isso — é que eles gostam do que ouvem, pena é que Schäuble não
fale mais vezes para varrer este Governo do Syriza português, mais o
PCP e o BE. Pensam acaso que eles estão muito preocupados com a
dívida? Enganam--se. Tanto mais que a aumentaram consideravelmente
quando estiveram no poder e que em segredo sussurram que "no fim
de tudo tem de haver uma reestruturação da dívida". Não é a
dívida que os preocupa, é o poder político deles e dos seus e a
prossecução de uma política que faça recair sobre uma parte dos
portugueses, aqueles a que se tornou maldito restituir salários e
pensões, o ónus do défice e da dívida e, acima de tudo, que o
alvo desses custos não sejam outros. A escravatura do país é para
eles bem-vinda, ajuda-os a manter o poder, "porque não há
alternativa". Conheço vários exemplos na história destes "não
há alternativa" e nenhum acabou bem.
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