“O
Estado Islâmico sempre existiu, é a Arábia Saudita”
SOFIA LORENA
07/12/2015 - PÚBLICO
Ziauddin
Sardar, reformista muçulmano, acredita que se um grupo terrorista
for destruído outro ocupará o seu lugar. Isto, até se atacar a
ideologia na base do extremismo, o wahhabismo saudita. Riad e os
terroristas usam as mesmas leis, diz.
Nasceu em 1951 no
Paquistão, mas vive em Londres desde os nove anos. Estudioso da sua
religião, mas também de Ciência Política ou Literatura, é autor
de mais de 45 livros e de vários programas sobre o islão para a BBC
ou o Channel 4. Hoje, o britânico Ziauddin Sardar é presidente do
Muslim Institute, organização que promove o conhecimento e o
debate, e editor do Critical Muslim, uma revista trimestral sobre
ideias e pensamento islâmico contemporâneo. Diz que faz falta uma
rede de reformistas no islão. “Estamos muito sozinhos no nosso
trabalho”. A conversa aconteceu em Lisboa, na Fundação
Champalimaud, onde participou na conferência “O Desconhecido:
Daqui a 100 Anos”.
PÚBLICO: Há um
centro que está a desenvolver uma aplicação para os estudantes de
origem árabe conhecerem a herança muçulmana na Andaluzia. Por que
é que sabemos tão pouco do contributo dos cientistas ou arquitectos
muçulmanos?
Ziauddin Sardar:
Parece que ninguém sabe nada dessa herança, é verdade. Isso
acontece por duas razões. Por um lado, a tradição intelectual e
racional do islão foi marginalizada nas sociedades muçulmanas por
volta do século XIV, XV. Por exemplo, toda a ideia de teologia
racional, que o dogma devia relacionar-se com a razão, que devemos
justificar através do pensamento racional aquilo em que acreditamos,
estas ideias foram mais ou menos abandonadas por uma técnica a que
chamamos ‘fechar as portas da itjihad' [raciocínio independente].
Estas ‘portas’ não foram fechadas do dia para a noite, aconteceu
ao longo de um par de séculos. Para além disso, houve muitos
califas que não gostavam do pensamento racional, os estudiosos de
então questionavam a autoridade, eram o que hoje chamamos
dissidentes. Um califa muito conhecido, Al-Qhadir, do império
Abássida, criou o “credo Qhadir’, que proibia que se colocassem
perguntas racionais. Saber se o Corão foi criado, por exemplo, era
muito debatido. Esta era uma pergunta muito racional, se foi criado,
foi criado na História, e então tem um contexto histórico e
precisa de ser interpretado à luz da História. Mas se não foi
criado, tem de ser lido literalmente.
Isto aconteceu mais
ou menos quando a sharia, a lei islâmica, estava a ser formulado,
certo?
Exactamente. A
maioria dos muçulmanos pensa que a sharia é divina, mas na verdade
é uma construção humana na História. É uma lei construída no
século IX, quase 250 anos depois da morte do Profeta. O que é
interessante é que até aí havia racionalismo na cultura muçulmana,
não havia sharia, não havia hadiths [conjunto de ditos de Maomé],
eles estavam a reuni-los nessa altura. E nesse período clássico
inicial, a sociedade islâmica fervilhava de ideias, pensamento e
aprendizagem. Quando a sharia foi formulada, os teólogos inventaram
uma espécie de truque para aumentar a confiança nestas regras,
sugerindo que a sharia era divina. Mas a maior parte da sharia vem
dos ditos do Profeta, que são fabricados.
Aquilo que chama os
hadiths manufacturados?
Sim, são uma
espécie de dogma manufacturado. Isso pode ser demonstrado muito
claramente. Por exemplo, a sharia diz que um apóstata [alguém que
abandona a religião] deve ser morto, mas o Corão diz que não há
pertença compulsiva ao islão. A sharia diz que a mulher tem um
estatuto inferior e deve cobrir-se, mas o Corão diz que homem e
mulher são iguais. Há muitos aspectos da sharia que estão em
completa contradição com o Corão. Afirmar que a sharia é divina é
totalmente ridículo e grande parte do fundamentalismo vem de aceitar
a sharia como lei divina.
Estas são as razões
internas ao islão. Mas há razões externas?
Sim, é a segunda
razão. Quando os poderes coloniais chegaram também marginalizaram
essa parte da História. Se olharmos para a História da Ciência,
parece que começa com a Grécia e depois é como se não tivesse
acontecido nada até ao Iluminismo. Mas o próprio Iluminismo nunca
teria acontecido sem a Filosofia e o pensamento muçulmanos. Muitos
dos componentes básicos do Iluminismo vêm do que chamamos
literatura adab, a literatura da ética e do humanismo, que criou
universidades, instituições académicas, professores, condutas para
ser um bom ser humano, condutas de boa governação. O Iluminismo
adaptou todas as partes da literatura adab, que se tornou na sua
base. Por exemplo, na literatura adab era obrigatório aprender tudo
na língua clássica, o árabe, o Iluminismo não tinha nenhuma e foi
buscar o latim. Passou a ser preciso aprender latim para ser um bom
estudioso. O colonialismo relegou toda a cultura anterior para as
margens, renegando o conhecimento do islão. Para mim, a História da
Europa é tanto islâmica como qualquer outra coisa, não haveria
Europa sem islão. Os jovens crescem sem saberem nada desta História
e acreditam no que os fundamentalistas dizem sobre o islão.
Continuamos a
aprender versões diferentes da História, em Portugal, por exemplo,
não aprendemos a História comum que temos com os muçulmanos, só
as cruzadas, a Reconquista.
Sim, e mesmo isso
muitas vezes é ensinado com interpretações muito particulares.
Dizem que os navios partiram daqui para descobrir o mundo novo, no
Brasil e em África. Não dizem o que é que lhe fizeram quando o
descobriram… Temos de ensinar essa História. Na Europa, ainda há
uma versão romantizada do colonialismo, a verdade do colonialismo
não é ensinada nas escolas e nas universidades, a sua brutalidade.
É como se pensássemos que fizemos bem, que civilizámos esses
países. Mas muito do sofrimento que ainda existe nalguns destes
países é um produto do que os europeus lá fizeram. Os portugueses
foram brutais em África, horrendos. Criando estes mitos e
perpetuando-os só contribuímos para perpetuar a opressão e a
injustiça. Temos de ensinar essa História para podermos ter um
mundo mais harmonioso.
O fundamentalismo
actual então não tem nada a ver com o início do islão nem com a
sua herança racional.
Não, vem de uma
área muito específica, vem da Arábia Saudita e da ideologia
wahhabita. Até 1925, 1930, havia diferentes tradições do islão e
pessoas que concordavam com umas e com outras. Havia jihads, mas
tinham princípios éticos, eram lutas contra o colonialismo e o
imperialismo, com regras claras, era proibido atacar civis, matar
mulheres e crianças, matar prisioneiros. Jihad [guerra santa] não
significa declarar guerra a toda a gente. Mas quando a Arábia
Saudita se tornou numa petro-monarquia e começou a exportar a sua
ideologia, tudo mudou. Os sauditas foram muito espertos, foram a todo
o mundo construir mesquitas e madrassas [escolas corânicas] e depois
enviaram os seus imãs [quem lidera as orações], professores e
livros. E incentivavam toda a gente a ir estudar em Meca e Medina.
Conseguiram exportar o wahhabismo para todo o mundo muçulmano.
Até aos anos 1920,
os wahhabitas eram uma seita muito minoritária e as pessoas gozavam
com eles, eram considerados fanáticos iletrados sem relevância. Mas
esta seita tornou-se na ortodoxia muçulmana. E hoje, há duas
questões fundamentais aqui. Por um lado, os muçulmanos aceitam esta
ideologia porque reverenciam a Arábia Saudita de forma acrítica.
Por ser lá que estão Meca e Medina, assume-se que como o Profeta
nasceu em Meca estas pessoas teriam o melhor conhecimento do islão,
quando têm o pior. Por outro, as potências ocidentais, a América,
o Reino Unido, a França, a Alemanha, apoiaram a Arábia Saudita e os
estados do Golfo por motivos económicos e militares, eles compram as
armas que estes países produzem. Ao apoiar a Arábia Saudita,
ignorando o seu fanatismo, dão-lhes liberdade de acção.
Wahhabismo e
salafismo, a doutrina que se diz estar na base da ideologia da
maioria dos grupos terroristas como a Al-Qaeda e o autodenominado
Estado Islâmico, são quase iguais, certo?
Sim, essencialmente
ambos defendem a interpretação literal do Corão e a aceitação da
sharia como divina. Há salafistas e outros, mas no fundo são
diferentes tipos de wahhabismo.
Defende que a
própria organização de grupos como o Estado Islâmico se inspira
no modelo saudita.
Sim, a ideia de um
líder que não pode ser questionado e que é reverenciado. As
pessoas perguntam-me muitas vezes ‘de onde vem o ISIS’ [Estado
Islâmico do Iraque e de al-Shams, como o Estado Islâmico se chamava
a si próprio antes de declarar um califado, no Verão de 2014] e
‘como é o que o ISIS apareceu assim, tão depressa’. A resposta
às duas perguntas é muito simples. O ISIS não apareceu do nada,
sempre existiu, o ISIS é a Arábia Saudita. Se olharmos para as leis
que o ISIS pratica são exactamente as mesmas em vigor na Arábia
Saudita [onde as mulheres têm de ter um guardião masculino e andar
cobertas, e crimes como a blasfémia são sentenciados como
chicotadas ou alguém que tenha cometido adultério pode ser
condenado à morte]. Só há uma diferença entre o ISIS e a Arábia
Saudita, a Arábia Saudita comete as suas atrocidades atrás de uma
cortina enquanto o ISIS transforma as suas atrocidades em vídeos do
YouTube. O ano passado, na verdade, mais pessoas foram executadas na
Arábia Saudita [oficialmente, 151] do que pelo ISIS. Mas quando o
rei [Abdullah] saudita morreu [em Janeiro], o primeiro-ministro
britânico foi à Arábia Saudita e bandeira britânica foi colocada
a meia haste.
Há pelo menos 15
anos que se discute a influência saudita e até o financiamento a
movimentos extremistas. Por que é que continua tudo igual nas
relações entre as potências ocidentais e Riad?
O que sei é que
dizer que se vai fazer alguma coisa para combater a radicalização e
o fanatismo e o terrorismo e depois continuar a apoiar a Arábia
Saudita não faz sentido. Se atacarmos e destruirmos o ISIS, vai
aparecer outro ainda pior no seu lugar. Atacámos e quase destruímos
a Al-Qaeda, que agora está a regressar, mas isso não foi o fim do
fundamentalismo violento, o ISIS ocupou o seu lugar. Temos de atacar
a Arábia Saudita. No filme Aliens, a protagonista, Ripley, vê o
monstro extraterrestre que está a pôr ovos e estes tornam-se nos
extraterrestres que vimos no primeiro filme. Os ovos são a Al-Qaeda
e o ISIS, mas o monstro é a Arábia Saudita e o wahhabismo saudita.
Para fazer alguma coisa, é preciso destruir o monstro, não os ovos.
Em vez disso, os
países estão-se a organizar para bombardear cada vez mais o ISIS.
Sim, bombardeiam-se
estes países e, pelo meio, matam-se civis e perpetua-se este
processo. Contribui-se para a radicalização. Alguns dos sírios que
estão a ser bombardeados vão acabar por se juntar a grupos
terroristas e aumentar o seu poder.
Falou dos imãs e
das mesquitas construídas com dinheiro saudita. Até há alguns
anos, a mesquita era o lugar de radicalização. Mas agora esse
espaço foi ocupado pela Internet e por televisões.
Sim, há 20 anos os
pregadores extremistas só podiam chegar aos muçulmanos numa
mesquita. Agora, as pessoas vão até eles, podem aceder a centenas
de milhares de pessoas por canais de YouTube ou de televisão. No
Reino Unido temos 56 canais digitais que são basicamente canais de
oração com doidos fundamentalistas a pregar lixo. Depois ainda há
o Facebook e o Twitter. Basicamente, os extremistas têm o mundo todo
aberto. A radicalização acontece nos velhos e nos novos media. Mas
a maioria desta pregadores ou são sauditas ou qataris ou foram
educados pela Arábia Saudita, e quando não são, os sauditas
encontram forma de os enquadrar, convidam-nos, premeia-nos, e
financiam estes canais.
Por que é a
Internet não é bombardeada com mensagens contrárias às dos
fundamentalistas, de reformistas?
Da minha
experiência, os bons tendem a ser passivos, enquanto os maus são
agressivos. Os bons não fazem nada que possa contribuir para o
conflito, pensam, enquanto os maus tendem a levar as suas ideias à
prática. Em parte, é a natureza humana. Nos últimos 20 anos, no
Reino Unido, dizemos muito que os moderados não se notam nos media.
Isso é precisamente por serem moderados, não denunciam pessoas, não
fazem declarações bombásticas, têm reacções tranquilas.
Acredita que o
wahhabismo se tornou mainstream e dominante?
Tornou-se na
ortodoxia muçulmana. Ser um muçulmano ortodoxo passou a significar
ser um wahbabi, antes queria dizer ser um seguidor de uma escola
particular, podia ser-se místico, por exemplo. Agora, ser ortodoxo é
ser wahhabita.
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