O
bloco de direita
MANUEL CARVALHO
06/12/2015 - PÚBLICO
Há-de
ser difícil a Portas e a Passos vestirem a farda da oposição
normal no presente contexto.
1. Não há
Parlamento digno do nome que não tenha um Bloco de Esquerda para
animar as hostes. Ainda é cedo para acreditar que a integração de
Catarina Martins nos BFF de António Costa vá enterrar a proverbial
contundência argumentativa, a crítica implacável ou a necessidade
da denúncia que habitualmente marcavam as intervenções do Bloco na
Assembleia. Mas, para o caso de esse papel se esbater ou desaparecer,
já há quem esteja na fila para o substituir: o CDS de Paulo Portas,
agora despido da pose de Estado que a governação lhe outorgava.
Pelo que se viu e ouviu nos últimos dias, o papel de “quebra
louça” parlamentar encontrou um protagonista à altura dos
melhores exemplos de estridência e ferocidade. O novo CDS transborda
de radicalismo, não poupa na truculência, ostenta uns certos laivos
de messianismo pós-apocalíptico e não larga a primeira linha do
combate contra a ilegitimidade política do novo Governo e contra os
best friends forever do seu chefe. A dureza de Portas, de Telmo
Correia ou de Nuno Magalhães faz de Heloísa Apolónia uma aprendiz
da revolução.
A tese da
“ilegitimidade política”, ou, nas palavras mais polidas de Pedro
Passos Coelho, do “pecado original” de um Governo e de um chefe
criados nas “costas do povo”, foi uma tentação estratégica
irrecusável para os partidos da coligação que ganhou as últimas
eleições. Não há dúvidas de que muitos eleitores do PS centrista
e moderado ficaram com motivos para se sentirem ludibriados ao darem
conta de que votaram gato por lebre. Não há dúvidas de que há-de
haver uma parte significativa de portugueses a deplorar a vitória de
um candidato derrotado e a sentir que as regras do jogo foram
interpretadas à luz de uma muito estrita conveniência pessoal de
António Costa. Mas já passaram mais de dois meses para se digerir
essa inesperada inversão das tradições. Com a ajuda de Cavaco
Silva, o Governo de Costa tornou-se inevitável não só por ser
insuspeito de inconstitucionalidade mas também porque, no actual
quadro, não se vislumbrava qualquer alternativa consistente. O
remoer da tese da ilegitimidade por parte do CDS, e de forma mais
ténue do PSD, deixou, por isso, de ser percebido como uma estratégia
política inteligente para se transformar numa manobra que tresanda a
maus fígados e a ressabiamento. Ou seja, deixou de ser um activo
político para se tornar num estandarte do mau perder.
Custa, por isso,
perceber o que ganham o CDS e o PSD em insistir nas teses golpistas
ou da usurpação. O texto da moção de rejeição apresentada pelos
dois partidos permite fazer alguma luz sobre o que poderá estar em
causa, ao afirmar que o teor das suas denúncias contra a
“radicalização” vai adquirir um “valor político de
testemunho, clareza e registo para o futuro”. Com base nesta
espécie de manual de instruções, o bloco da direita pode desatar a
chumbar medidas do Governo a eito. E, mais, deixa desde já firme uma
mensagem para o próximo Presidente da República, que é desta forma
aliciado a resolver de vez o problema que Cavaco Silva não pôde
resolver por manifesta falta de poderes constitucionais. Como?
Bastava ouvir uma das palavras de ordem das bancadas da direita para
o perceber: “eleições”.
Bem sabemos que
há-de ser difícil a Paulo Portas e a Pedro Passos Coelho vestirem a
farda da oposição normal no presente contexto, é fácil até
perceber que há nas palavras ecuménicas ou nos apelos ao
compromisso de Augusto Santos Silva ou de António Costa um cinismo
que requer calmantes. Mas vale a pena indagar sobre se o
comportamento bloquista de alguns deputados da direita (chamar a
ministros da República “tralha socrática” é, no mínimo,
deselegante) é um caminho de sucesso. Uma estratégia de permanente
bota-abaixo pode ser útil para manter as hostes mais ultramontanas
de direita que se agregam em torno do CDS mobilizadas, mas afastará,
sem dúvida, o eleitorado moderado. Os cidadãos sensíveis à
decência no trato entre deputados, que gostavam de assistir a
debates construtivos e focados no interesse nacional, não hão-de
certamente olhar para uma oposição radicalizada à direita com
simpatia. Com o regresso da normalidade, ou o CDS muda de tom ou
arrisca a tornar-se um monólito da direita e a perder a aura
institucional que era até capaz de anular as diatribes de Portas e
dos “jacintos leite capelo rego” para se apresentar de fato
engomado nos retratos da governação.
2. O PCP diz, e
repete sempre que pode, que o PS não vai governar com o programa
“patriótico e de esquerda” que os comunistas defendem. Vai daí,
Jerónimo e seus pares tratam de o executar aproveitando a
fragmentação do Parlamento. Com a cumplicidade do PS e o empenho do
Bloco, o PCP tinha já anulado os exames do quarto ano e tinha
tentado até reverter por completo as concessões dos transportes
públicos metropolitanos. Agora, volta à carga tentando reescrever
na assembleia a lei dos baldios e a alteração da natureza
institucional da Casa do Douro. Já que não governa directamente, o
PCP sente-se investido do direito de pernada no Parlamento em
matérias que estão profundamente associadas ao legado histórico do
partido, como o são a posse e o usufruto de terras comunitárias ou
a natureza pública da Casa do Douro, a única fórmula capaz de
evitar a “exploração” dos lavradores durienses pelo capitalismo
dos exportadores de vinho do Porto.
A nova lei dos
baldios é a morte anunciada de uma ancestral ligação das
comunidades rurais aos seus territórios, mas é principalmente um
ataque directo às comissões de compartes fortemente infiltradas
pelo PCP. A nova Casa do Douro, agora despida das suas prerrogativas
públicas que tornavam obrigatória a inscrição de todos os
produtores de vinho, vai pôr cobro a uma lenta e inexorável
decadência e vai punir a irresponsabilidade de uma série de equipas
de gestão que deixaram como lastro uma dívida de 167 milhões de
euros assumida pelo Estado. Mas vai igualmente limitar o raio da
acção da associação de produtores que gravita na órbita do PCP e
que foi derrotada no concurso para a gestão do organismo duriense.
Com estas
iniciativas, o que se torna evidente é a tentativa dos comunistas de
se substituírem ao Governo. O que pensa Capoulas Santos, o ministro
da Agricultura dos baldios ou da Casa do Douro? Para o PCP, essa
pergunta é irrelevante. A estratégia de ocupar espaço político e
legislativo, sem que se conheça qualquer articulação com o
Governo, é uma forma óbvia de o condicionar. Costa promete não
apresentar na assembleia nenhum diploma que saiba ser do desagrado do
PCP, mas o PCP avança a eito com alterações legislativas sem se
importar com o que pensa o PS. No final, pode ser que haja uma
negociação e um compromisso sobre este e outros temas. Mas, quem
tem a iniciativa nestes processos, fica sempre com um crédito sobre
quem reage. Se há argumentos capazes de denunciar a natureza frágil
e instável do Governo, este é, por isso, um deles. Quando a corda é
puxada por diferentes fontes de poder, é muito natural que um dia
rompa.
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