Futuro da Misericórdia de Lisboa
pode estar em causa, dizem auditores
JOSÉ ANTÓNIO
CEREJO 05/08/2014 - PÚBLICO
Pareceres que a instituição nunca tinha divulgado mostram preocupação com a
evolução dos resultados e com a dimensão do recurso aos ajustes directos com
consulta a um único fornecedor.
Pelo quinto ano
consecutivo, o conselho de auditoria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
(SCML) mostra-se preocupado com a sustentabilidade da instituição. Desta vez,
porém, os auditores vão mais longe do que nunca e dizem que a sua
“sustentabilidade futura” pode estar em causa.
A única maneira
de evitar este cenário, lê-se no parecer do conselho de auditoria sobre as
contas de 2013, consiste na adopção de medidas que “invertam a evolução
ocorrida e que promovam o controlo da expansão da oferta dos serviços que a SCML
proporciona”.
No parecer
relativo às contas de 2008, os auditores limitam-se a recomendar que a expansão
da oferta de serviços de acção social seja “planeada dentro dos limites da sua
sustentabilidade futura”. Desde então, o alerta tem vindo a transformar-se em
preocupação crescente, à medida que a tendência para o agravamento dos
resultados operacionais da instituição se acentua.
Em 2012, apesar
do regresso aos números positivos com um resultado de 1,6 milhões, o parecer
nota que essa evolução “não dispensa” a “premência da adopção de medidas que
consolidem essa evolução”. Finalmente, as contas do ano passado, divulgadas há
duas semanas no site da Misericórdia com um resultado operacional negativo de
8,7 milhões, devido em grande parte a um aumento de 10 milhões nos custos de
pessoal, mereceram um claro cartão amarelo do conselho de auditoria.
“A obtenção de
resultados operacionais negativos (...) impõe ao conselho de auditoria o dever
de alertar a mesa [administração da SCML, presidida pelo provedor Pedro Santana
Lopes desde Setembro de 2011] para a premência da adopção das medidas que
invertam a evolução ocorrida e que promovam o controlo da expansão da oferta de
serviços que a SCML proporciona” — lê-se no parecer assinado por José Henrique
Polaco, director da Inspecção-Geral de Finanças, nomeado presidente do conselho
pelo Ministério das Finanças, e por Joaquim da Silva Neves, revisor oficial de
contas.
O documento
conclui afirmando que “a existência de resultados operacionais negativos, se
não for transitória, pode vir a comprometer a sua sustentabilidade futura”.
As avaliações
feitas pelo conselho de auditoria, órgão estatutário ao qual compete
“fiscalizar a gestão” da SCML, era matéria reservada até ao fim da semana
passada. Tal facto, apesar de pouco compaginável com a “utilidade pública
administrativa” e a tutela governamental que a lei atribui à Misericórdia de
Lisboa, explica-se à luz do mesmo tipo de ambiguidade que faz com que o
Tribunal de Contas e a Inspecção-Geral da Segurança Social nunca a tenham
auditado.
À imagem do que
sucede há muitos anos, o parecer dos auditores não foi divulgado com o
relatório de 2013, o qual foi colocado no site da instituição no dia 17 de
Julho, após vários pedidos do PÚBLICO. Formalmente requerido a Santana Lopes no
dia seguinte, o acesso ao documento foi recusado. “Como entidade privada que é,
a SCML não está sujeita à Lei de Acesso aos Documentos Administrativos”, foi a
resposta.
Face a um novo
requerimento em que se demonstrava a sujeição da Misericórdia àquela lei, o
PÚBLICO foi informado de que os pareceres iam ser divulgados gradualmente no
início da semana passada, a começar pelo de 2008, e que no fim da semana já
estaria no site o de 2013.
Na quinta-feira,
dia em que foi divulgado o parecer de 2011, o gabinete do primeiro-ministro
anunciou que Passos Coelho convidara Santana Lopes para um segundo mandato,
“considerando o muito relevante trabalho que tem vindo a ser desenvolvido pela
Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”. O parecer dos auditores relativo a 2013
foi finalmente revelado no dia seguinte.
Além da
preocupação com a sustentabilidade da instituição, o texto enfatiza o
crescimento do número de funcionários e “o peso relevante dos ajustes directos
no total das contratações realizadas” — sendo que mais de 60% deles foram
feitos com consulta a um único fornecedor.
Em matéria de
pessoal, refere-se que no último ano os efectivos passaram de 4832 para 4988
(mais 3,2%). Este aumento de 156 trabalhadores é justificado sobretudo com a
abertura de um novo piso na Unidade de Saúde Maria José Nogueira Pinto (mais 28
efectivos) e com o reforço do pessoal na área do apoio social (mais 36). No
entanto, o relatório mostra que o maior aumento se verificou no Departamento de
Gestão Imobiliário, onde o número de funcionários mais do que triplicou com a
entrada de 65 pessoas (passou de 32 para 97). Também no Departamento de Jogos,
os efectivos registaram um aumento de 23, de 278 para 301. Sublinhado pelos
auditores é também o facto de entre os novos contratados estarem 52 técnicos
superiores e 43 dirigentes.
Ajustes directos
Quanto à
aquisição de bens e serviços e de empreitadas, o parecer sugere a adopção de um
modelo de contratação que garanta uma diminuição do recurso ao “ajuste directo
com consulta a uma única entidade (...) como forma de assegurar,
tendencialmente, uma maior transparência/concorrência, um aumento da qualidade
das propostas e a redução dos gastos para a SCML”.
De acordo com os
dados fornecidos aos auditores pela direcção de aprovisionamento — dados esses
que não constam do relatório e contas —, em 2013 foram celebrados 439 contratos
no valor de 101 milhões de euros, dos quais 112, num total de 22,2 milhões,
estão excluídos pela sua natureza das regras da contratação pública e sobre os
quais nada é dito. Dos 302 sujeitos ao Código dos Contratos Públicos — cuja
publicitação é obrigatória no portal dos contratos públicos embora só lá
estejam 283 —, 252 (83%) foram ajustes directos (26 milhões de euros,
equivalentes a 33% do total) e os
restantes resultaram de diferentes tipos de concurso (53 milhões).
O parecer
salienta que 149 dos 252 ajustes directos (59%) foram contratados com consulta
a apenas uma entidade, sendo assim adjudicados 21,4 milhões de euros (82% do
valor total dos ajustes directos).
Os dados do
portal Base mostram que, desde o início do mandato da actual gestão até ao dia
1 do mês passado, foram publicitados 598 contratos, 543 dos quais (91%) são
ajustes directos, com um valor correspondente a 41% do total. Os números do
triénio anterior, embora parcelares devido ao facto de muitos dos contratos não
serem então publicitados, indiciam que a situação não era, nesse período, muito
diferente quanto à relação entre ajustes directos e concursos.
O PÚBLICO pediu a
Santana Lopes vários esclarecimentos sobre estes e outros temas, mas a única
resposta que obteve foi a seguinte: “A SCML tem uma história de 516 anos de
respeito pela lei e pela moral. Publica as suas contas, que são escrutinadas e
aprovadas pela tutela. É uma pessoa colectiva de direito privado e actua como
tal, incluindo na reserva à exposição pública de matérias sobre a qual é
interrogada e que parecem insinuar factos e conclusões que não correspondem sequer
remotamente à realidade.”
Feira de Natal da Misericórdia custou 588 mil euros só em oito ajustes
directos
Um caso típico dos ajustes directos com consulta a uma única entidade
feitos pela Misericórdia de Lisboa é o da Feira de Natal promovida em Dezembro
passado pelo Departamento de Jogos em frente à sede da instituição. Não se
trata de uma situação ilegal, mas o conselho de auditoria da SCML recomenda uma
redução do recurso a este tipo de contratos, por forma a aumentar a
transparência e reduzir os custos.
José António
Cerejo / 5-8-2014 / PÚBLICO
Realizada para
promover a Lotaria de Natal, com base num projecto da Havas, uma das agências
de publicidade que trabalham com a instituição, a feira tinha 32 quiosques
cedidos a comerciantes da zona, para venda de presentes com um preço máximo de
15 euros, e incluía um programa com espectáculos diários. Para pôr de pé a
iniciativa, que decorreu de 14
a 24 de Dezembro, a SCML contratou oito empresas, às
quais adjudicou os fornecimentos por um total de 588.000 euros mais IVA. Além
desse valor, foi ainda gasto um montante não apurado pelo PÚBLICO com a
contratação de artistas e o pagamento do serviço da agencia de publicidade.
A primeira coisa
que chama a atenção neste processo é o facto de sete dos ajustes directos
celebrados com outras tantas empresas terem valores a rondar os 75.000 euros,
que é o máximo permitido por lei para a realização deste tipo de contratos, sem
concurso. Seis têm um preço superior a 74.000 euros, um ficou por 73.660 e o
oitavo custou 68.900. A justificação dada para todos eles foi “a proximidade do
evento e a urgência” da contratação, que só foi lançada no fim de Novembro.
Depois, verifica-se
que todos os oito convidados a propor os seus serviços, que iam da limpeza e da
instalação de equipamentos audiovisuais ao fornecimento dos quiosques, pediram
exactamente o valor que a Santa Casa dizia, nos convites, estar “disposta a
pagar”. Esse valor era tão preciso, que ia até às unidades. Por exemplo: 74.605
euros.
A acompanhar os
convites seguia um caderno de encargos tipo, em cujas cláusulas técnicas surgia
uma descrição sumária dos bens e serviços a adquirir, sem uma verdadeira
especificação de quantidades e preços unitários, ou parcelares. Foi com base
nessas cláusulas que as empresas contactadas propuseram os seus preços,
naturalmente coincidentes com o máximo que a SCML dizia estar disposta a pagar.
Questionados
sobre a forma como foram determinados estes valores globais, os responsáveis do
Departamento de Jogos disseram ao PÚBLICO que eles foram decididos “mediante
proposta dos respectivos serviços, tendo por base as necessidades da
adjudicante [SCML]”. Para lá chegar, os serviços procederam, diz a instituição,
à “descrição suficientemente detalhada dos bens e serviços a contratar,
incluindo as quantidades pretendidas, dimensões, duração temporal, entre
outros”.
Na sua resposta,
o Departamento de Jogos refere ainda que a definição do preço-base resultou
também “do orçamento disponível”, atendendo igualmente “à experiência da SCML
na realização deste tipo de eventos, bem como à da agência criativa que
apresentou a concepção da campanha”. Por outro lado, acrescenta, “foram feitas
consultas informais ao mercado para determinar uma estimativa de custo” do
evento.
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