Crónica
Vida de bolseiro
Na universidade não há vida. As portas fecham-se. Os centros de
investigação não funcionam. O pós-doutoramento é uma ficção útil para que quem
manda não tenha de se preocupar com o desemprego de umas quantas pessoas que
existem saltando de tese em tese
Texto de Paulo
Rodrigues Ferreira • 19/06/2014 - 14:26
Receber uma bolsa
de doutoramento é um bem precioso que deveria obrigar o bolseiro a frequentar
uma missa de quinze em quinze dias. Ser pago para escrever uma tese e, de vez
em quando, participar em eventos da maior elevação intelectual, tais como
seminários e congressos. É uma dádiva.
Quatro anos com
quase mil euros por mês e com disponibilidade para quase tudo, que a burocrática
Fundação para a Ciência e Tecnologia obriga, através de relatórios, a comprovar
que não se passou o tempo a comer amendoins. Pena que acabe. Pena que a minha
bolsa acabe para o ano. Se entretanto não encontrar emprego, não terei direito
a subsídio de desemprego. A única hipótese do ex-bolseiro de doutoramento é
ganhar uma bolsa de pós-doutoramento, e depois disso entrar na meia-idade
cravejado de artigos científicos no currículo, com pelo menos três dioptrias de
miopia em cada olho e com o futuro assassinado pela ilusão de que a
universidade o ampararia quando o resto falhasse.
Na universidade
não há vida. As portas fecham-se. Os centros de investigação não funcionam. O
pós-doutoramento é uma ficção útil para que quem manda não tenha de se preocupar
com o desemprego de umas quantas pessoas que existem saltando de tese em tese.
O bolseiro de
investigação tem um contrato e recebe dinheiro enquanto esse contrato for
válido. Se for esperto, o bolseiro aproveita o tempo para escrever, para ler,
para ver filmes, para namorar e, claro, para redigir a sua prestimosa tese que,
da mesma maneira que demorou anos a ser escrita, demorará anos até que alguém
para além do júri a leia. O bolseiro que não for esperto concentra-se apenas na
tese, recebe o seu louvor e distinção e vai à sua vidinha: uma vidinha
ultra-especializada (quem não aprecia temas como a descascagem da castanha na
Etiópia do século XIX?) e imperdoavelmente ignorante.
Muitos fogem do
país com a esperança de viverem de outra maneira. A pessoa de trinta anos
carrega para o estrangeiro a sabedoria estampada na sua tese de doutoramento,
candidata-se a uma bolsa e é feliz a escrever mais uma tese, mais um sem número
de artigos. Regressa com quase quarenta. Talvez os portugueses o recebam de
braços abertos. Nada como vir do estrangeiro empunhando um título académico.
Não é má a
perspectiva de passar uns meses ou uns anos no estrangeiro, ainda mais se esse
estrangeiro for Nova Iorque, cidade onde o bolseiro poderá compreender que
existe vida para além da tese e da universidade. Mas um bolseiro é um bolseiro
em qualquer lado. O problema não é ser precário, que isso são todos menos os
ricos. O problema é não viver, não saber mais do que aquilo que se escreve numa
maldita dissertação, não ter visto um filme, não ter ido a um festival de
música, não ter aproveitado para namorar, para respirar o ar da cidade. O
problema do bolseiro é o hiato entre a licenciatura e o fim do doutoramento ou
do pós-doutoramento. O hiato entre os vinte e um ou vinte e dois e os quarenta
anos. São muitos anos morto.
Crónica
Vida de bolseiro: o copo meio
cheio
O doutoramento e o pós-doutoramento são escolhas, certas ou erradas. A
forma como lidamos com elas é individual e não devemos responsabilizar
terceiros pelo desfecho
Texto de Inês de
Sousa Lima • 02/07/2014 - 12:51
Ter uma bolsa não
é nem deve ser visto como uma maldição, uma cruz que se carrega até ao pós-
doutoramento, a consequência inevitável e também ela maldosa e cruel de se ter
escolhido esta vida. Enveredar por um doutoramento é abraçar uma paixão, pode
não aparecer logo e nalguns casos nunca se revela, mas é uma relação a dois que
se desenvolve abruptamente ou de forma cautelosa, como uma dança em que ambos
tentam acertar o passo.
Ao contrário do
que foi afirmado aqui numa crónica, acredito que o doutoramento não é sinónimo,
obrigatoriamente, de ultra-especialização ou de estupidificação. É inevitável
que se fique especializado, mas quem não o é? Não estamos com certeza à espera
que um endocrinologista seja especialista em direito familiar; então, porque
estamos a assumir que um bolseiro investigando Alzheimer seja também um imenso
conhecedor de astrofísica? Mas não me entendam mal, não estou com isto a dizer
que são única e exclusivamente conhecedores da sua área, mas será provável que
seja essa a área em que dispõem de mais conhecimento, aquela em que com mais
veemência podem expressar os seus pontos de vista. Os bolseiros são
especializados numa qualquer área mas têm outros interesses, sejam eles o
desporto ou a fotografia, e engane-se quem pensa que não vamos ao cinema,
teatro, concertos, exposições ou festivais de verão!
O bolseiro, ou o
profissional de investigação agora doutorado, é uma pessoa activa na sociedade
contemporânea, tão capaz de encontrar um emprego como tantas outras,
salvaguardada a crise económica mundial que torna a todos um pouco mais difícil
o “encontrar um emprego”. Desmistificando o pós-doutoramento penso que aqui,
dadas as devidas condições, o investigador jovem cresce e autonomiza-se,
amadurece enquanto cientista. Claro que pode sair o tiro pela culatra e o
investigador percebe que a academia não é para si e aí, se for bom no que faz e
motivado, certamente encontrará o que lhe preencha as medidas, demore mais ou
menos tempo a consegui-lo.
Há apenas um
ponto que gostaria de reforçar, para mim a maior pedra no sapato do
investigador: se quisermos ser bons, se tivermos ambição, há sacrifícios. Ficar
longe da família e amigos é uma realidade, perder aniversários, casamentos,
baptizados, até pôr a nossa vida e a do nosso companheiro em suspenso é parte
da rotina. Cabe-nos a nós determinar quando viramos a balança, quando o pessoal
supera o profissional.
Gostava apenas
que o seguinte fosse retido: o doutoramento e o pós-doutoramento são escolhas,
certas ou erradas. A forma como lidamos com elas é individual e não devemos
responsabilizar terceiros pelo desfecho. Há problemas, atritos e burocracias
intermináveis (com as quais eu, e arrisco a dizer 80-90% dos bolseiros, já teve
de lidar) mas desengane-se quem pensar que isto se cinge à academia e à
investigação. Quem quer investigar tem um longo caminho a percorrer, com altos
e baixos, mas continuo a acreditar que os altos irão sempre superar os baixos.
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