domingo, 11 de maio de 2014

Ajudas a Portugal e Grécia foram resgates aos bancos alemães


ENTREVISTA
Ajudas a Portugal e Grécia foram resgates aos bancos alemães
ISABEL ARRIAGA E CUNHA (Bruxelas) 11/05/2014 - 08:10
É incorrecta a narrativa que os alemães contaram a si próprios de que a crise do euro teve a ver com o Sul a querer levar o dinheiro deles, diz ex-conselheiro de Durão Barroso.

Philippe Legrain, foi conselheiro económico independente de Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, entre Fevereiro de 2011 e Fevereiro deste ano, o que lhe permitiu acompanhar por dentro o essencial da gestão da crise do euro. A sua opinião, muito crítica, do que foi feito pelos líderes do euro, está expressa no livro que acabou de publicar “European Spring: Why our Economies and Politics are in a mess”.

A tese do seu livro é que a gestão da crise da dívida, ou crise do euro, foi totalmente inepta, errada e irresponsável, e que todas as consequências económicas e sociais poderiam ter sido evitadas. Porque é que as coisas se passaram assim? O que é que aconteceu?
Uma grande parte da explicação é que o sector bancário dominou os governos de todos os países e as instituições da zona euro. Foi por isso que, quando a crise financeira rebentou, foram todos a correr salvar os bancos, com consequências muito severas para as finanças públicas e sem resolver os problemas do sector bancário. O problema tornou-se europeu quando surgiram os problemas da dívida pública da Grécia. O que teria sido sensato fazer na altura – e que era dito em privado por muita gente no FMI e que este acabou por dizer publicamente no ano passado – era uma reestruturação da dívida grega. Como o Tratado da União Europeia (UE) tem uma regra de “no bailout” [proibição de assunção da dívida dos países do euro pelos parceiros] – que é a base sobre a qual o euro foi criado e que deveria ter sido respeitada – o problema da Grécia deveria ter sido resolvido pelo FMI, que teria colocado o país em incumprimento, (default), reestruturado a dívida e emprestado dinheiro para poder entrar nos carris. É o que se faz com qualquer país em qualquer sítio. Mas não foi o que foi feito, em parte em resultado de arrogância – e um discurso do tipo ‘somos a Europa, somos diferentes, não queremos o FMI a interferir nos nossos assuntos’ – mas sobretudo por causa do poder político dos bancos franceses e alemães. É preciso lembrar que na altura havia três franceses na liderança do Banco Central Europeu (BCE) – Jean-Claude Trichet – do FMI – Dominique Strauss-Kahn – e de França – Nicolas Sarkozy. Estes três franceses quiseram limitar as perdas dos bancos franceses. E Angela Merkel, que estava inicialmente muito relutante em quebrar a regra do “no bailout”, acabou por se deixar convencer por causa do lobby dos bancos alemães e da persuasão dos três franceses. Foi isto que provocou a crise do euro.

Como assim?
Porque a decisão de emprestar dinheiro a uma Grécia insolvente transformou de repente os maus empréstimos privados dos bancos em obrigações entre Governos. Ou seja, o que começou por ser uma crise bancária que deveria ter unido a Europa nos esforços para limitar os bancos, acabou por se transformar numa crise da dívida que dividiu a Europa entre países credores e países devedores. E em que as instituições europeias funcionaram como instrumentos para os credores imporem a sua vontade aos devedores. Podemos vê-lo claramente em Portugal: a troika (de credores da zona euro e FMI) que desempenhou um papel quase colonial, imperial, e sem qualquer controlo democrático, não agiu no interesse europeu mas, de facto, no interesse dos credores de Portugal. E pior que tudo, impondo as políticas erradas. Já é mau demais ter-se um patrão imperial porque não tem base democrática, mas é pior ainda quando este patrão lhe impõe o caminho errado. Isso tornou-se claro quando em vez de enfrentarem os problemas do sector bancário, a Europa entrou numa corrida à austeridade colectiva que provocou recessões desnecessariamente longas e tão severas que agravaram a situação das finanças públicas. Foi claramente o que aconteceu em Portugal. As pessoas elogiam muito o sucesso do programa português, mas basta olhar para as previsões iniciais para a dívida pública e ver a situação da dívida agora para se perceber que não é, de modo algum, um programa bem sucedido. Portugal está mais endividado que antes por causa do programa, e a dívida privada não caiu. Portugal está mesmo em pior estado do que estava no início do programa.

Quando diz que os Governos e instituições estavam dominados pelos bancos quer dizer o quê?
Quero dizer que os Governos puseram os interesses dos bancos à frente dos interesses dos cidadãos. Por várias razões. Em alguns casos, porque os Governos identificam os bancos como campeões nacionais bons para os países. Em outros casos tem a ver com ligações financeiras. Muitos políticos seniores ou trabalharam para bancos antes, ou esperam trabalhar para bancos depois. Há uma relação quase corrupta entre bancos e políticos. No meu livro defendo que quando uma pessoa tem a tutela de uma instituição, não pode ser autorizada a trabalhar para ela depois.

Também diz no seu livro que quando foi conselheiro de Durão Barroso, o avisou claramente logo no início sobre o que deveria ser feito, ou seja, limpar os balanços dos bancos e reestruturar a dívida grega. O que é que aconteceu? Ele não percebeu o que estava em causa, ou percebeu mas não quis enfrentar a Alemanha e a França?
Sublinho que isto não tem nada de pessoal. O presidente Barroso teve a abertura de espírito suficiente para perceber que os altos funcionários da Comissão estavam a propôr receitas erradas. Não conseguiram prever a crise e revelaram-se incapazes de a resolver. Ele viu-me na televisão, leu o meu livro anterior (*) e pediu-me para trabalhar para ele como conselheiro para lhe dar uma perspectiva alternativa. O que foi corajoso, e a mim deu-me uma oportunidade de tentar fazer a diferença. Infelizmente, apesar de termos tido muitas e boas conversas em privado, os meus conselhos não foram seguidos.

Porquê? Será que a Comissão não percebeu? A Comissão tem a reputação de não ter nem o conhecimento nem a experiência para lidar com uma crise destas. Foi esse o problema?
Foram várias coisas. Claramente a Comissão e os seus altos funcionários não tinham a menor experiência para lidar com uma crise. Era uma anedota! O FMI é sempre encarado como a instituição mais detestada [da troika], mas quando foi juntamente com a Comissão à Irlanda, as pessoas do FMI foram mais apreciadas porque sabiam do que estavam a falar, enquanto as da Comissão não tinham a menor ideia. Por isso, uma das razões foi inexperiência completa e, pior, inexperiência agravada com arrogância. Em vez de dizerem “não sei como é que isto funciona, vou perguntar ao FMI ou ver o que aconteceu com as anteriores crises na Ásia ou na América Latina”, os funcionários europeus agiram como se pensassem “mesmo que não saiba nada, vou na mesma fingir que sei melhor”. Ou seja, foram incapazes e arrogantes. A segunda razão é institucional: não havia mecanismos para lidar com a crise e, por isso, a gestão processou-se necessariamente sobretudo através dos Governos. E o maior credor, a Alemanha, assumiu um ponto de vista particular. Claro que isto não absolve a Comissão, porque antes de mais, muitos responsáveis da Comissão, como Olli Rehn [responsável pelos assuntos económicos e financeiros], partilham a visão alemã. Depois, porque o papel da Comissão é representar o interesse europeu, e o interesse europeu deveria ter sido tentar gerar um consenso de tipo diferente, ou pelo menos suscitar algum tipo de debate. Ou seja, a Comissão poderia ter desempenhado um papel muito mais construtivo enquanto alternativa à linha única alemã. E, por fim, é que, embora seja politicamente fraca, a Comissão tem um grande poder institucional. Todas as burocracias gostam de ganhar poder. E neste caso, a Comissão recebeu poderes centralizados reforçados não apenas para esta crise, mas potencialmente para sempre, que lhe dão a possibilidade de obrigar os países a fazer coisas que não conseguiram impor antes. É por isso que parte da resposta é também uma tomada de poder.

A impressão que tivemos, em Portugal, é que a arrogância destes altos funcionários europeus vinha de uma falta de orientações políticas e de liderança, de Barroso e de Rehn... Como é que foi possível que uma instituição com uma responsabilidade tão grande sobre a vida das pessoas pudesse ter funcionado em roda livre sem orientação política?
Houve orientação política, só que vinha da Alemanha. E a Alemanha aconselhou mal, em parte por causa da forma particular como os alemães olham para a economia, por causa da ideologia conservadora, e porque agiu no seu próprio interesse egoísta de credor em vez de no interesse europeu alargado. A UE sempre funcionou com a Alemanha integrada nas instituições europeias, mas aqui, a Alemanha tentou redesenhar a Europa no seu próprio interesse. É por isso que temos uma Alemanha quase-hegemónica, o que é muito destrutivo.

Pensa que isso foi uma decisão tomada conscientemente por Angela Merkel?
Os erros vieram todos da violação da regra do “no bailout”. Merkel tem a seu favor o facto de ter atrasado durante muito tempo [a ajuda à Grécia]. Penso que ela não queria violar a regra do “no bailout”. Só que foi convencida a fazê-lo pelos três franceses e pelos bancos alemães, que disseram todos que seria irresponsável deixar a Grécia entrar em default. E, por causa deste erro fatal, de repente os contribuintes alemães sentem que são responsáveis pelas dívidas de todos os outros países. Por isso, a resposta natural dos alemães foi dizerem que querem maior controlo sobre os orçamentos e políticas económicas dos outros. Este foi o erro crasso. Transformou a natureza da UE, que passou de uma comunidade voluntária entre iguais para esta relação hierárquica entre credores exercendo o seu controlo sobre os devedores. Uma coisa é Portugal e outros, numa altura de desespero, aceitarem termos injustos, outra completamente diferente é aceitar numa base duradoura este sistema anti-democrático. Se nas próximas eleições for eleito um Governo diferente do actual e o sucessor de Olli Rehn for à televisão dizer que é preciso manter exactamente as mesmas políticas do governo anterior, naturalmente que os portugueses vão ficar escandalizados porque acabaram de eleger um novo Governo, pessoas diferentes e quem diabo é este comissário europeu não eleito que me diz que decisões sobre despesas e receitas é que tenho de tomar? Isto não é politicamente sustentável.

Então para si, a crise do euro foi antes de mais uma crise bancária mal gerida....
Foi. É antes de mais uma crise bancária. Se olhar para Portugal, o principal problema era a dívida privada. Antes da crise, a dívida pública era sensivelmente a mesma que na Alemanha – 67/68% do PIB – mas o grande problema que não foi de todo resolvido era a dívida privada que estava acima de 200% do PIB. Antes da crise, o que aconteceu em Portugal era, no essencial, bancos estrangeiros a emprestarem a bancos portugueses e estes a emprestar aos consumidores portugueses. A subida da dívida pública era reduzida, houve uns pequenos aumentos nos primeiros anos do euro, mas bastante menos do que na dívida privada. Este é que era o problema real, mas que os portugueses não enfrentaram, a UE e o FMI não ligaram, só se concentraram na redução da dívida pública. Por isso, como não resolveram os problemas reais do sector bancário, não resolveram o problema da dívida privada, só se concentraram na consequência, que foi o aumento da dívida pública. Só que as consequências sociais para Portugal desta profunda, longa e desnecessária recessão económica são trágicas. E ninguém é responsabilizado. Se tivesse sido um erro feito pelo Governo português, bom, podia ser corrido nas próximas eleições. Mas aqui as pessoas que fizeram os erros não são responsabilizadas. E depois as pessoas perguntam-se porque é que os europeus já não gostam da Europa. É surpreendente?

Pensa que a dívida portuguesa também deveria ter sido reestruturada, a pública e a privada?
Depende. Com base nas políticas seguidas, a dívida portuguesa atingiu um nível perigoso [129% do PIB]. Os bancos deveriam ter sido reestruturados e a dívida do sector privado deveria ter sido resolvida. Nas empresas, através de procedimentos de insolvência do FMI que lhes permite continuar a funcionar enquanto a dívida é reduzida. Para os consumidores, com reduções de dívida a partir do momento em que os bancos reconhecem as perdas e as incluem nos balanços. Se isto tivesse sido feito, a trajectória da dívida pública portuguesa poderia ter permanecido sustentável, porque o sector bancário estaria a funcionar, a dívida privada seria inferior e por isso haveria mais crédito para investimento e maior consumo. Mas por causa dos erros feitos Portugal está numa situação difícil. Há quem pense que o que eu digo é uma loucura, alegando que os mercados estão a emprestar a Portugal a taxas muito baixas e que por isso a crise acabou, blá blá, blá, mas isso simplesmente não é verdade. Isso também aconteceu nos anos da bolha [financeira], antes de 2007, em que os mercados também emprestavam de forma incrivelmente fácil, o que não significava que não havia problemas. Neste momento tem havido entrada de liquidez, que está a tapar os problemas subjacentes, mas essa liquidez pode inverter-se se o BCE, como penso que vai acontecer, nos desiludir da ideia de que poderá haver um Quantitative Easing (injecção de liquidez). Mas a situação vai mudar na mesma, porque as taxas de juro americanas vão subir, o que afectará todas as taxas de juro no mundo inteiro, incluindo em Portugal. Ao mesmo tempo, se olharmos para a economia subjacente, há agora um crescimento do PIB positivo, mas a inflação caiu tanto que o crescimento nominal do PIB é muito, muito baixo. E é muito difícil sair de uma dívida gigantesca quando se tem um crescimento nominal do PIB muito baixo. Por isso, na ausência de inflação, é preciso reestruturar a dívida.

Neste momento?
Penso que Portugal deve procurar obter uma redução da dívida oficial [dos empréstimos dos países do euro]. Também deve aproveitar agora a estupidez do mercado que está a emprestar a baixo custo para levantar o máximo possível de fundos e usar parte desse dinheiro para pagar parte da velha dívida. Mas não se deixem enganar que os problemas estão resolvidos, porque não estão.

Então, em sua opinião, os resgates a Portugal e Grécia foram sobretudo resgates disfarçados aos bancos alemães e franceses para os salvar dos empréstimos irresponsáveis, e que estão a ser pagos pelos contribuintes portugueses e gregos?
Claro que foram. No caso de Portugal, também havia bancos espanhóis, mas que também tinham obtido empréstimos dos bancos franceses e alemães. Era uma cadeia....

Isso significa que o sofrimento dos portugueses, o desemprego astronómico, os cortes de salários e pensões e os aumentos de impostos, tudo isto foi feito para salvar os bancos alemães e franceses?
Bom, é preciso sublinhar que dado o crescimento gigantesco do crédito que aconteceu em Portugal antes de 2007, Portugal sofreria de alguma forma. Não estou a dizer que seria tudo perfeito. Mas a recessão foi desnecessariamente longa e profunda e, em resultado dos erros cometidos, a dívida pública é muito mais alta do que teria sido. A austeridade foi completamente contraproducente, as pessoas sofreram horrores e isso prejudicou imenso a economia.

Mas pelo menos parte da dívida pública foi assumida para salvar dívida privada, incluindo dos bancos, portugueses e alemães. O que significa que são os contribuintes portugueses que estão a pagar para salvar esses bancos?
Sim, é verdade.

Numa união europeia, numa união monetária, governos e instituições europeias puseram os  interesses dos bancos à frente do bem estar das pessoas?

Essa é a questão essencial. Estou inteiramente de acordo. Na primeira fase da crise, já foi suficientemente mau que os contribuintes tenham tido de salvar os bancos dos seus próprios países. Mas quando o problema alastrou a toda a UE, o que aconteceu foi que a zona euro passou a ser gerida em função do interesse dos bancos do centro – ou seja, França e Alemanha – em vez de ser gerida no interesse dos cidadãos no seu conjunto. O que é profundamente injusto e insustentável.

E destrutivo para a UE...
Exactamente. Essa é a tragédia. Em resultado dos erros cometidos, a Europa está a ser destruída, o apoio à Europa caiu a pique, velhos ressentimentos foram reavivados, outros nasceram, a par de tensões sociais no interior dos países. Podemos esperar que as eleições europeias sejam um sinal de alarme, mas duvido, porque o sentimento contra a Europa tem assumido frequentemente a forma de extremismos. Ora, é muito fácil atacar o extremismo, o que está certo, mas sem olhar para as causas subjacentes. Há pessoas que votam para partidos nazis porque são racistas, mas há outras que votam nesses partidos porque estão infelizes, perderam a esperança, sentem-se injustiçadas. É preciso olhar para as causas subjacentes, porque se não a UE está em muitos maus lençóis.

Em concreto: como a Alemanha e os outros países do centro são co-responsáveis pelos erros cometidos nos países ajudados para salvar os seus bancos, não deveriam agora aceitar um perdão de pelo menos uma parte dos empréstimos concedidos ao abrigo dos resgates?
Sim, deveriam, necessariamente. Só que o problema, agora, é que os contribuintes alemães vão sentir que os outros estão atrás do seu dinheiro e acham injusto. E têm razão, é injusto. Só que a culpa não é dos ‘mal-comportados’ portugueses ou gregos, a culpa é de Angela Merkel que aceitou resgatar os bancos alemães com os empréstimos a Portugal e Grécia. É isso que é tão terrível, é que ao fazer justiça a Portugal e Grécia, está-se a confirmar, de facto, a narrativa incorrecta que os alemães se contaram a si próprios de que esta crise tem a ver com os maus do sul a quererem levar o dinheiro deles. Mas, de facto, o que aconteceu foi que Angela Merkel permitiu que os contribuintes alemães resgatassem, de forma indirecta, os bancos alemães. Esta é a tragédia.

Qual e a solução agora?
É preciso um discurso de verdade. Não acredito que Merkel seja capaz de o fazer porque teria de admitir os erros. Seria preciso que algum líder ou político alemão explicasse a verdadeira história sobre o que aconteceu. Mas tem de haver um reconhecimento da verdade.

Mas pelo menos no caso da Grécia, a Alemanha vai ter de fazer alguma coisa, porque a dívida é totalmente insustentável...
Totalmente insustentável. [O ex-chanceler alemão] Helmut Schmidt disse que deveria haver uma conferência de dívida e Trichet poderia expiar os seus pecados fazendo-o, enquanto gesto de solidariedade europeia, como aconteceu com a dívida da Alemanha em 1924 e 1928. Se pensarmos bem, o que a Alemanha, a Comissão e as instituições da UE em geral fizeram foi abusar do facto de Portugal e Grécia quererem desesperadamente ser europeus e estarem aterrados com o que lhes poderia acontecer se saíssem do euro e por isso puderam impôr-lhes condições muito injustas. É um pouco como um marido violento que bate na mulher e que sabe que pode continuar porque ela ainda gosta dele e porque tem medo de o deixar. Isto é exactamente o oposto da solidariedade em que é suposto a Europa ser baseada. Por isso, quando digo que precisamos de um gesto de solidariedade, não é para resgatar o mau comportamento de Portugal e Grécia, mas um gesto de solidariedade para corrigir os erros horríveis dos últimos anos. Se os contribuintes alemães ficarem zangados, então a solução poderá ser uma taxa sobre os bancos alemães para recuperar o dinheiro, porque não?

O que sugere para Portugal poder começar a crescer?
É preciso uma reestruturação dos bancos, um perdão de dívida tanto pública como privada, é preciso investimento do Banco Europeu de Investimentos (BEI), dos fundos estruturais da UE e através dos ganhos de um perdão de dívida que reduza os pagamentos dos juros. Se os bancos estiverem a funcionar como deve ser, também haverá crédito ao investimento. E é preciso reformas, porque durante esta crise, as reformas defendidas pela Comissão e Alemanha foram, no essencial, redução de salários. Isto foi baseado num falso diagnóstico. Não é verdade que os aumentos salariais no sul da Europa foram excessivos nos anos pré-crise. Em termos de peso no PIB, os salários até caíram. Por isso não é verdade que esta foi a causa da crise, não é verdade que os salários precisavam de ser reduzidos. Só que esmagar salários provoca o colapso do consumo, agrava a recessão e agrava o peso da dívida, porque se os salários baixam, é mais difícil pagá-la. Tudo isto é baseado no erro de concepção alemão de que os custos salariais são uma coisa má e têm de ser reduzidos, quando, de facto, deveriam ser tão altos quanto possível, desde que justificados pela produtividade. Uma das histórias bonitas aqui é a dos fabricantes portugueses de calçado que ignoraram os conselhos da UE de reduzir salários, porque perceberam que com a concorrência de baixo custo da Turquia e China, se cortassem os salários, entrariam numa corrida para baixo. Em vez disso, decidiram investir para chegar ao topo do mercado, e em resultado disso, as exportações aumentaram, os salários aumentaram, o emprego aumentou. Este é o modelo que é preciso seguir, não caminhar para salários cada vez mais baixos.

E para a UE ? Qual é a solução para a crise? Falar de maior integração, de união política e orçamental tem sentido?
Não creio que seja preciso maior integração para resolver a crise. O plano em três pontos que dei a Durão Barroso em 2010 – reestruturação de bancos, reestruturação de dívidas, investimento e reformas – pode ser feito com as actuais instituições. Mas é preciso, sim, uma reforma institucional para fazer a zona euro funcionar melhor no futuro. E, a esse respeito, penso que é preciso ter um mecanismo verdadeiramente independente de resolução dos bancos, porque o actual não é. É preciso que o papel do BCE enquanto credor de último recurso dos governos seja tornado permanente em vez do actual mecanismo temporário e condicional [OMT]. Terceiro, é preciso restaurar a regra do “no bailout”. E é preciso dar aos Governos muito mais liberdade e flexibilidade para contrair crédito e para gastar – para isso, é preciso deitar fora o Tratado orçamental – embora prevendo, em última análise, a possibilidade de default. Esta é a disciplina. Os Governos e os mercados têm de saber que há o risco de default. A longo prazo, será preciso criar um tesouro da zona euro, com algum poder de tributação fiscal e de contrair crédito, que responda democraticamente perante o Parlamento Europeu e os parlamentos nacionais. Seria bom que houvesse um mecanismo de partilha de risco no seio da zona euro, mas infelizmente penso que ainda não existem condições para isso, porque os alemães olham para qualquer mecanismo de partilha de riscos como uma forma de transferência, e com todo o sentimento anti-europeu do momento, não há condições políticas. Mesmo que, de facto, fosse mais respeitador das democracias nacionais do que o sistema que temos agora. Porque teríamos mais integração ao nível europeu, com um orçamento da zona euro, mas igualmente muito maior liberdade ao nível nacional.

Sobre os resgates em si: disse que no caso do programa da Grécia as projecções macro-económicas eram totalmente irrealistas e que as condições impostas a Portugal foram “bárbaras”. Quem foi responsável por isto, o FMI ou a Comissão Europeia?
Foi a troika que o fez em conjunto, mas penso que o essencial da responsabilidade da parte orçamental dos programas é da Comissão. As projecções eram completamente falsas. Dá vontade de rir quando se comparam as projecções de 2011 com os resultados de 2013,  é uma anedota. Isto resultou em parte da incompetência das pessoas responsáveis, mas há outro problema que é o da responsabilidade democrática. Olli Rehn e os seus altos funcionários decretam que o desemprego vai ser 12% mas se afinal é 20%, dizem “ah, ok, temos de mudar aqui este número na folha de cálculo”. Ou seja, não estão a lidar com a realidade. Esta instituição é uma redoma completamente desligada da realidade.

Estas mesmas pessoas vão continuar a mandar nas nossas vidas....

Pois é, é assustador. Além das alterações que é preciso fazer na zona euro, é preciso que a Comissão Europeia seja muito mais controlada no plano democrático. O que significa um presidente da Comissão eleito e maior controlo democrático perante o PE e os parlamentos nacionais. É preciso ligar o debate em Bruxelas com o que está a acontecer nos Estados membros. Porque este tipo de sistema quase imperial sem controlo democrático não é sustentável. Isto não vai mudar com as próximas eleições. Mas vai ser preciso, nos próximos cinco anos, construir uma democracia europeia a sério, mudar a natureza da Europa. Ou seja, precisamos de uma Primavera Europeia.


(*) European Spring: Why our Economies and Politics are in a mess” (2014); Aftershock: Reshaping the World Economy After the Crisis (2010); Immigrants: Your Country Needs Them (2007); Open World: The Truth About Globalisation (2002)

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