ENTREVISTA
Ajudas a Portugal e Grécia foram
resgates aos bancos alemães
ISABEL ARRIAGA E
CUNHA (Bruxelas) 11/05/2014 - 08:10
É incorrecta a narrativa que os alemães contaram a si próprios de que a
crise do euro teve a ver com o Sul a querer levar o dinheiro deles, diz
ex-conselheiro de Durão Barroso.
Philippe Legrain,
foi conselheiro económico independente de Durão Barroso, presidente da Comissão
Europeia, entre Fevereiro de 2011 e Fevereiro deste ano, o que lhe permitiu
acompanhar por dentro o essencial da gestão da crise do euro. A sua opinião,
muito crítica, do que foi feito pelos líderes do euro, está expressa no livro
que acabou de publicar “European Spring: Why our Economies and Politics are in
a mess”.
A tese do seu
livro é que a gestão da crise da dívida, ou crise do euro, foi totalmente
inepta, errada e irresponsável, e que todas as consequências económicas e
sociais poderiam ter sido evitadas. Porque é que as coisas se passaram assim? O
que é que aconteceu?
Uma grande parte
da explicação é que o sector bancário dominou os governos de todos os países e
as instituições da zona euro. Foi por isso que, quando a crise financeira
rebentou, foram todos a correr salvar os bancos, com consequências muito
severas para as finanças públicas e sem resolver os problemas do sector
bancário. O problema tornou-se europeu quando surgiram os problemas da dívida
pública da Grécia. O que teria sido sensato fazer na altura – e que era dito em
privado por muita gente no FMI e que este acabou por dizer publicamente no ano
passado – era uma reestruturação da dívida grega. Como o Tratado da União
Europeia (UE) tem uma regra de “no bailout” [proibição de assunção da dívida
dos países do euro pelos parceiros] – que é a base sobre a qual o euro foi
criado e que deveria ter sido respeitada – o problema da Grécia deveria ter
sido resolvido pelo FMI, que teria colocado o país em incumprimento, (default),
reestruturado a dívida e emprestado dinheiro para poder entrar nos carris. É o
que se faz com qualquer país em qualquer sítio. Mas não foi o que foi feito, em
parte em resultado de arrogância – e um discurso do tipo ‘somos a Europa, somos
diferentes, não queremos o FMI a interferir nos nossos assuntos’ – mas
sobretudo por causa do poder político dos bancos franceses e alemães. É preciso
lembrar que na altura havia três franceses na liderança do Banco Central
Europeu (BCE) – Jean-Claude Trichet – do FMI – Dominique Strauss-Kahn – e de
França – Nicolas Sarkozy. Estes três franceses quiseram limitar as perdas dos
bancos franceses. E Angela Merkel, que estava inicialmente muito relutante em
quebrar a regra do “no bailout”, acabou por se deixar convencer por causa do
lobby dos bancos alemães e da persuasão dos três franceses. Foi isto que
provocou a crise do euro.
Como assim?
Porque a decisão
de emprestar dinheiro a uma Grécia insolvente transformou de repente os maus
empréstimos privados dos bancos em obrigações entre Governos. Ou seja, o que
começou por ser uma crise bancária que deveria ter unido a Europa nos esforços
para limitar os bancos, acabou por se transformar numa crise da dívida que
dividiu a Europa entre países credores e países devedores. E em que as
instituições europeias funcionaram como instrumentos para os credores imporem a
sua vontade aos devedores. Podemos vê-lo claramente em Portugal: a troika (de
credores da zona euro e FMI) que desempenhou um papel quase colonial, imperial,
e sem qualquer controlo democrático, não agiu no interesse europeu mas, de
facto, no interesse dos credores de Portugal. E pior que tudo, impondo as
políticas erradas. Já é mau demais ter-se um patrão imperial porque não tem
base democrática, mas é pior ainda quando este patrão lhe impõe o caminho
errado. Isso tornou-se claro quando em vez de enfrentarem os problemas do
sector bancário, a Europa entrou numa corrida à austeridade colectiva que
provocou recessões desnecessariamente longas e tão severas que agravaram a
situação das finanças públicas. Foi claramente o que aconteceu em Portugal. As
pessoas elogiam muito o sucesso do programa português, mas basta olhar para as
previsões iniciais para a dívida pública e ver a situação da dívida agora para
se perceber que não é, de modo algum, um programa bem sucedido. Portugal está
mais endividado que antes por causa do programa, e a dívida privada não caiu. Portugal
está mesmo em pior estado do que estava no início do programa.
Quando diz que os
Governos e instituições estavam dominados pelos bancos quer dizer o quê?
Quero dizer que
os Governos puseram os interesses dos bancos à frente dos interesses dos
cidadãos. Por várias razões. Em alguns casos, porque os Governos identificam os
bancos como campeões nacionais bons para os países. Em outros casos tem a ver
com ligações financeiras. Muitos políticos seniores ou trabalharam para bancos
antes, ou esperam trabalhar para bancos depois. Há uma relação quase corrupta
entre bancos e políticos. No meu livro defendo que quando uma pessoa tem a
tutela de uma instituição, não pode ser autorizada a trabalhar para ela depois.
Também diz no seu
livro que quando foi conselheiro de Durão Barroso, o avisou claramente logo no
início sobre o que deveria ser feito, ou seja, limpar os balanços dos bancos e
reestruturar a dívida grega. O que é que aconteceu? Ele não percebeu o que
estava em causa, ou percebeu mas não quis enfrentar a Alemanha e a França?
Sublinho que isto
não tem nada de pessoal. O presidente Barroso teve a abertura de espírito
suficiente para perceber que os altos funcionários da Comissão estavam a propôr
receitas erradas. Não conseguiram prever a crise e revelaram-se incapazes de a
resolver. Ele viu-me na televisão, leu o meu livro anterior (*) e pediu-me para
trabalhar para ele como conselheiro para lhe dar uma perspectiva alternativa. O
que foi corajoso, e a mim deu-me uma oportunidade de tentar fazer a diferença. Infelizmente,
apesar de termos tido muitas e boas conversas em privado, os meus conselhos não
foram seguidos.
Porquê? Será que
a Comissão não percebeu? A Comissão tem a reputação de não ter nem o
conhecimento nem a experiência para lidar com uma crise destas. Foi esse o
problema?
Foram várias
coisas. Claramente a Comissão e os seus altos funcionários não tinham a menor
experiência para lidar com uma crise. Era uma anedota! O FMI é sempre encarado
como a instituição mais detestada [da troika], mas quando foi juntamente com a
Comissão à Irlanda, as pessoas do FMI foram mais apreciadas porque sabiam do
que estavam a falar, enquanto as da Comissão não tinham a menor ideia. Por
isso, uma das razões foi inexperiência completa e, pior, inexperiência agravada
com arrogância. Em vez de dizerem “não sei como é que isto funciona, vou
perguntar ao FMI ou ver o que aconteceu com as anteriores crises na Ásia ou na
América Latina”, os funcionários europeus agiram como se pensassem “mesmo que
não saiba nada, vou na mesma fingir que sei melhor”. Ou seja, foram incapazes e
arrogantes. A segunda razão é institucional: não havia mecanismos para lidar
com a crise e, por isso, a gestão processou-se necessariamente sobretudo
através dos Governos. E o maior credor, a Alemanha, assumiu um ponto de vista
particular. Claro que isto não absolve a Comissão, porque antes de mais, muitos
responsáveis da Comissão, como Olli Rehn [responsável pelos assuntos económicos
e financeiros], partilham a visão alemã. Depois, porque o papel da Comissão é
representar o interesse europeu, e o interesse europeu deveria ter sido tentar
gerar um consenso de tipo diferente, ou pelo menos suscitar algum tipo de
debate. Ou seja, a Comissão poderia ter desempenhado um papel muito mais
construtivo enquanto alternativa à linha única alemã. E, por fim, é que, embora
seja politicamente fraca, a Comissão tem um grande poder institucional. Todas
as burocracias gostam de ganhar poder. E neste caso, a Comissão recebeu poderes
centralizados reforçados não apenas para esta crise, mas potencialmente para
sempre, que lhe dão a possibilidade de obrigar os países a fazer coisas que não
conseguiram impor antes. É por isso que parte da resposta é também uma tomada
de poder.
A impressão que
tivemos, em Portugal, é que a arrogância destes altos funcionários europeus
vinha de uma falta de orientações políticas e de liderança, de Barroso e de
Rehn... Como é que foi possível que uma instituição com uma responsabilidade
tão grande sobre a vida das pessoas pudesse ter funcionado em roda livre sem
orientação política?
Houve orientação
política, só que vinha da Alemanha. E a Alemanha aconselhou mal, em parte por
causa da forma particular como os alemães olham para a economia, por causa da
ideologia conservadora, e porque agiu no seu próprio interesse egoísta de
credor em vez de no interesse europeu alargado. A UE sempre funcionou com a
Alemanha integrada nas instituições europeias, mas aqui, a Alemanha tentou
redesenhar a Europa no seu próprio interesse. É por isso que temos uma Alemanha
quase-hegemónica, o que é muito destrutivo.
Pensa que isso
foi uma decisão tomada conscientemente por Angela Merkel?
Os erros vieram
todos da violação da regra do “no bailout”. Merkel tem a seu favor o facto de
ter atrasado durante muito tempo [a ajuda à Grécia]. Penso que ela não queria
violar a regra do “no bailout”. Só que foi convencida a fazê-lo pelos três
franceses e pelos bancos alemães, que disseram todos que seria irresponsável
deixar a Grécia entrar em default. E, por causa deste erro fatal, de repente os
contribuintes alemães sentem que são responsáveis pelas dívidas de todos os
outros países. Por isso, a resposta natural dos alemães foi dizerem que querem
maior controlo sobre os orçamentos e políticas económicas dos outros. Este foi
o erro crasso. Transformou a natureza da UE, que passou de uma comunidade
voluntária entre iguais para esta relação hierárquica entre credores exercendo
o seu controlo sobre os devedores. Uma coisa é Portugal e outros, numa altura
de desespero, aceitarem termos injustos, outra completamente diferente é
aceitar numa base duradoura este sistema anti-democrático. Se nas próximas
eleições for eleito um Governo diferente do actual e o sucessor de Olli Rehn
for à televisão dizer que é preciso manter exactamente as mesmas políticas do
governo anterior, naturalmente que os portugueses vão ficar escandalizados
porque acabaram de eleger um novo Governo, pessoas diferentes e quem diabo é
este comissário europeu não eleito que me diz que decisões sobre despesas e receitas
é que tenho de tomar? Isto não é politicamente sustentável.
Então para si, a
crise do euro foi antes de mais uma crise bancária mal gerida....
Foi. É antes de
mais uma crise bancária. Se olhar para Portugal, o principal problema era a
dívida privada. Antes da crise, a dívida pública era sensivelmente a mesma que
na Alemanha – 67/68% do PIB – mas o grande problema que não foi de todo
resolvido era a dívida privada que estava acima de 200% do PIB. Antes da crise,
o que aconteceu em Portugal era, no essencial, bancos estrangeiros a
emprestarem a bancos portugueses e estes a emprestar aos consumidores
portugueses. A subida da dívida pública era reduzida, houve uns pequenos
aumentos nos primeiros anos do euro, mas bastante menos do que na dívida
privada. Este é que era o problema real, mas que os portugueses não
enfrentaram, a UE e o FMI não ligaram, só se concentraram na redução da dívida
pública. Por isso, como não resolveram os problemas reais do sector bancário,
não resolveram o problema da dívida privada, só se concentraram na
consequência, que foi o aumento da dívida pública. Só que as consequências
sociais para Portugal desta profunda, longa e desnecessária recessão económica
são trágicas. E ninguém é responsabilizado. Se tivesse sido um erro feito pelo
Governo português, bom, podia ser corrido nas próximas eleições. Mas aqui as
pessoas que fizeram os erros não são responsabilizadas. E depois as pessoas
perguntam-se porque é que os europeus já não gostam da Europa. É surpreendente?
Pensa que a
dívida portuguesa também deveria ter sido reestruturada, a pública e a privada?
Depende. Com base
nas políticas seguidas, a dívida portuguesa atingiu um nível perigoso [129% do
PIB]. Os bancos deveriam ter sido reestruturados e a dívida do sector privado
deveria ter sido resolvida. Nas empresas, através de procedimentos de
insolvência do FMI que lhes permite continuar a funcionar enquanto a dívida é
reduzida. Para os consumidores, com reduções de dívida a partir do momento em
que os bancos reconhecem as perdas e as incluem nos balanços. Se isto tivesse
sido feito, a trajectória da dívida pública portuguesa poderia ter permanecido
sustentável, porque o sector bancário estaria a funcionar, a dívida privada
seria inferior e por isso haveria mais crédito para investimento e maior
consumo. Mas por causa dos erros feitos Portugal está numa situação difícil. Há
quem pense que o que eu digo é uma loucura, alegando que os mercados estão a
emprestar a Portugal a taxas muito baixas e que por isso a crise acabou, blá
blá, blá, mas isso simplesmente não é verdade. Isso também aconteceu nos anos
da bolha [financeira], antes de 2007, em que os mercados também emprestavam de
forma incrivelmente fácil, o que não significava que não havia problemas. Neste
momento tem havido entrada de liquidez, que está a tapar os problemas
subjacentes, mas essa liquidez pode inverter-se se o BCE, como penso que vai
acontecer, nos desiludir da ideia de que poderá haver um Quantitative Easing
(injecção de liquidez). Mas a situação vai mudar na mesma, porque as taxas de
juro americanas vão subir, o que afectará todas as taxas de juro no mundo
inteiro, incluindo em Portugal. Ao mesmo tempo, se olharmos para a economia
subjacente, há agora um crescimento do PIB positivo, mas a inflação caiu tanto
que o crescimento nominal do PIB é muito, muito baixo. E é muito difícil sair
de uma dívida gigantesca quando se tem um crescimento nominal do PIB muito
baixo. Por isso, na ausência de inflação, é preciso reestruturar a dívida.
Neste momento?
Penso que
Portugal deve procurar obter uma redução da dívida oficial [dos empréstimos dos
países do euro]. Também deve aproveitar agora a estupidez do mercado que está a
emprestar a baixo custo para levantar o máximo possível de fundos e usar parte
desse dinheiro para pagar parte da velha dívida. Mas não se deixem enganar que
os problemas estão resolvidos, porque não estão.
Então, em sua
opinião, os resgates a Portugal e Grécia foram sobretudo resgates disfarçados
aos bancos alemães e franceses para os salvar dos empréstimos irresponsáveis, e
que estão a ser pagos pelos contribuintes portugueses e gregos?
Claro que foram.
No caso de Portugal, também havia bancos espanhóis, mas que também tinham
obtido empréstimos dos bancos franceses e alemães. Era uma cadeia....
Isso significa
que o sofrimento dos portugueses, o desemprego astronómico, os cortes de
salários e pensões e os aumentos de impostos, tudo isto foi feito para salvar
os bancos alemães e franceses?
Bom, é preciso
sublinhar que dado o crescimento gigantesco do crédito que aconteceu em
Portugal antes de 2007, Portugal sofreria de alguma forma. Não estou a dizer
que seria tudo perfeito. Mas a recessão foi desnecessariamente longa e profunda
e, em resultado dos erros cometidos, a dívida pública é muito mais alta do que
teria sido. A austeridade foi completamente contraproducente, as pessoas
sofreram horrores e isso prejudicou imenso a economia.
Mas pelo menos
parte da dívida pública foi assumida para salvar dívida privada, incluindo dos
bancos, portugueses e alemães. O que significa que são os contribuintes
portugueses que estão a pagar para salvar esses bancos?
Sim, é verdade.
Numa união
europeia, numa união monetária, governos e instituições europeias puseram
os interesses dos bancos à frente do bem
estar das pessoas?
Essa é a questão
essencial. Estou inteiramente de acordo. Na primeira fase da crise, já foi
suficientemente mau que os contribuintes tenham tido de salvar os bancos dos
seus próprios países. Mas quando o problema alastrou a toda a UE, o que aconteceu
foi que a zona euro passou a ser gerida em função do interesse dos bancos do
centro – ou seja, França e Alemanha – em vez de ser gerida no interesse dos
cidadãos no seu conjunto. O que é profundamente injusto e insustentável.
E destrutivo para
a UE...
Exactamente. Essa
é a tragédia. Em resultado dos erros cometidos, a Europa está a ser destruída,
o apoio à Europa caiu a pique, velhos ressentimentos foram reavivados, outros
nasceram, a par de tensões sociais no interior dos países. Podemos esperar que
as eleições europeias sejam um sinal de alarme, mas duvido, porque o sentimento
contra a Europa tem assumido frequentemente a forma de extremismos. Ora, é
muito fácil atacar o extremismo, o que está certo, mas sem olhar para as causas
subjacentes. Há pessoas que votam para partidos nazis porque são racistas, mas
há outras que votam nesses partidos porque estão infelizes, perderam a
esperança, sentem-se injustiçadas. É preciso olhar para as causas subjacentes,
porque se não a UE está em muitos maus lençóis.
Em concreto: como
a Alemanha e os outros países do centro são co-responsáveis pelos erros
cometidos nos países ajudados para salvar os seus bancos, não deveriam agora
aceitar um perdão de pelo menos uma parte dos empréstimos concedidos ao abrigo
dos resgates?
Sim, deveriam,
necessariamente. Só que o problema, agora, é que os contribuintes alemães vão
sentir que os outros estão atrás do seu dinheiro e acham injusto. E têm razão,
é injusto. Só que a culpa não é dos ‘mal-comportados’ portugueses ou gregos, a
culpa é de Angela Merkel que aceitou resgatar os bancos alemães com os
empréstimos a Portugal e Grécia. É isso que é tão terrível, é que ao fazer
justiça a Portugal e Grécia, está-se a confirmar, de facto, a narrativa
incorrecta que os alemães se contaram a si próprios de que esta crise tem a ver
com os maus do sul a quererem levar o dinheiro deles. Mas, de facto, o que
aconteceu foi que Angela Merkel permitiu que os contribuintes alemães
resgatassem, de forma indirecta, os bancos alemães. Esta é a tragédia.
Qual e a solução
agora?
É preciso um
discurso de verdade. Não acredito que Merkel seja capaz de o fazer porque teria
de admitir os erros. Seria preciso que algum líder ou político alemão
explicasse a verdadeira história sobre o que aconteceu. Mas tem de haver um
reconhecimento da verdade.
Mas pelo menos no
caso da Grécia, a Alemanha vai ter de fazer alguma coisa, porque a dívida é
totalmente insustentável...
Totalmente
insustentável. [O ex-chanceler alemão] Helmut Schmidt disse que deveria haver
uma conferência de dívida e Trichet poderia expiar os seus pecados fazendo-o,
enquanto gesto de solidariedade europeia, como aconteceu com a dívida da
Alemanha em 1924 e 1928. Se pensarmos bem, o que a Alemanha, a Comissão e as
instituições da UE em geral fizeram foi abusar do facto de Portugal e Grécia
quererem desesperadamente ser europeus e estarem aterrados com o que lhes
poderia acontecer se saíssem do euro e por isso puderam impôr-lhes condições
muito injustas. É um pouco como um marido violento que bate na mulher e que
sabe que pode continuar porque ela ainda gosta dele e porque tem medo de o
deixar. Isto é exactamente o oposto da solidariedade em que é suposto a Europa
ser baseada. Por isso, quando digo que precisamos de um gesto de solidariedade,
não é para resgatar o mau comportamento de Portugal e Grécia, mas um gesto de
solidariedade para corrigir os erros horríveis dos últimos anos. Se os
contribuintes alemães ficarem zangados, então a solução poderá ser uma taxa
sobre os bancos alemães para recuperar o dinheiro, porque não?
O que sugere para
Portugal poder começar a crescer?
É preciso uma
reestruturação dos bancos, um perdão de dívida tanto pública como privada, é
preciso investimento do Banco Europeu de Investimentos (BEI), dos fundos
estruturais da UE e através dos ganhos de um perdão de dívida que reduza os
pagamentos dos juros. Se os bancos estiverem a funcionar como deve ser, também
haverá crédito ao investimento. E é preciso reformas, porque durante esta
crise, as reformas defendidas pela Comissão e Alemanha foram, no essencial,
redução de salários. Isto foi baseado num falso diagnóstico. Não é verdade que
os aumentos salariais no sul da Europa foram excessivos nos anos pré-crise. Em
termos de peso no PIB, os salários até caíram. Por isso não é verdade que esta
foi a causa da crise, não é verdade que os salários precisavam de ser
reduzidos. Só que esmagar salários provoca o colapso do consumo, agrava a
recessão e agrava o peso da dívida, porque se os salários baixam, é mais
difícil pagá-la. Tudo isto é baseado no erro de concepção alemão de que os
custos salariais são uma coisa má e têm de ser reduzidos, quando, de facto,
deveriam ser tão altos quanto possível, desde que justificados pela
produtividade. Uma das histórias bonitas aqui é a dos fabricantes portugueses
de calçado que ignoraram os conselhos da UE de reduzir salários, porque
perceberam que com a concorrência de baixo custo da Turquia e China, se
cortassem os salários, entrariam numa corrida para baixo. Em vez disso,
decidiram investir para chegar ao topo do mercado, e em resultado disso, as
exportações aumentaram, os salários aumentaram, o emprego aumentou. Este é o
modelo que é preciso seguir, não caminhar para salários cada vez mais baixos.
E para a UE ?
Qual é a solução para a crise? Falar de maior integração, de união política e
orçamental tem sentido?
Não creio que
seja preciso maior integração para resolver a crise. O plano em três pontos que
dei a Durão Barroso em 2010 – reestruturação de bancos, reestruturação de
dívidas, investimento e reformas – pode ser feito com as actuais instituições. Mas
é preciso, sim, uma reforma institucional para fazer a zona euro funcionar
melhor no futuro. E, a esse respeito, penso que é preciso ter um mecanismo
verdadeiramente independente de resolução dos bancos, porque o actual não é. É
preciso que o papel do BCE enquanto credor de último recurso dos governos seja
tornado permanente em vez do actual mecanismo temporário e condicional [OMT]. Terceiro,
é preciso restaurar a regra do “no bailout”. E é preciso dar aos Governos muito
mais liberdade e flexibilidade para contrair crédito e para gastar – para isso,
é preciso deitar fora o Tratado orçamental – embora prevendo, em última
análise, a possibilidade de default. Esta é a disciplina. Os Governos e os mercados
têm de saber que há o risco de default. A longo prazo, será preciso criar um
tesouro da zona euro, com algum poder de tributação fiscal e de contrair
crédito, que responda democraticamente perante o Parlamento Europeu e os
parlamentos nacionais. Seria bom que houvesse um mecanismo de partilha de risco
no seio da zona euro, mas infelizmente penso que ainda não existem condições
para isso, porque os alemães olham para qualquer mecanismo de partilha de
riscos como uma forma de transferência, e com todo o sentimento anti-europeu do
momento, não há condições políticas. Mesmo que, de facto, fosse mais
respeitador das democracias nacionais do que o sistema que temos agora. Porque
teríamos mais integração ao nível europeu, com um orçamento da zona euro, mas igualmente
muito maior liberdade ao nível nacional.
Sobre os resgates
em si: disse que no caso do programa da Grécia as projecções macro-económicas
eram totalmente irrealistas e que as condições impostas a Portugal foram
“bárbaras”. Quem foi responsável por isto, o FMI ou a Comissão Europeia?
Foi a troika que
o fez em conjunto, mas penso que o essencial da responsabilidade da parte
orçamental dos programas é da Comissão. As projecções eram completamente
falsas. Dá vontade de rir quando se comparam as projecções de 2011 com os
resultados de 2013, é uma anedota. Isto
resultou em parte da incompetência das pessoas responsáveis, mas há outro
problema que é o da responsabilidade democrática. Olli Rehn e os seus altos
funcionários decretam que o desemprego vai ser 12% mas se afinal é 20%, dizem
“ah, ok, temos de mudar aqui este número na folha de cálculo”. Ou seja, não
estão a lidar com a realidade. Esta instituição é uma redoma completamente
desligada da realidade.
Estas mesmas
pessoas vão continuar a mandar nas nossas vidas....
Pois é, é
assustador. Além das alterações que é preciso fazer na zona euro, é preciso que
a Comissão Europeia seja muito mais controlada no plano democrático. O que
significa um presidente da Comissão eleito e maior controlo democrático perante
o PE e os parlamentos nacionais. É preciso ligar o debate em Bruxelas com o que
está a acontecer nos Estados membros. Porque este tipo de sistema quase
imperial sem controlo democrático não é sustentável. Isto não vai mudar com as
próximas eleições. Mas vai ser preciso, nos próximos cinco anos, construir uma
democracia europeia a sério, mudar a natureza da Europa. Ou seja, precisamos de uma Primavera
Europeia.
(*)
European Spring: Why our Economies and Politics are in a mess” (2014);
Aftershock: Reshaping the World Economy After the Crisis (2010); Immigrants:
Your Country Needs Them (2007); Open World: The Truth About Globalisation (2002)
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