domingo, 11 de maio de 2014

A saga dos tecnocratas a seguir à revolução



A saga dos tecnocratas a seguir à revolução
CRISTINA FERREIRA/ 11-5-2014 / Revista 2 / PÚBLICO

Um major recebe ordem para prender um brigadeiro que à noite vai estar sentado na Junta de Salvação Nacional. Pouco depois da rendição da polícia secreta, um inspector da PIDE é nomeado novo director-geral de Segurança. Numa reunião, Spínola acusa de “cubano” Vasco Vieira de Almeida, o presidente do Crédito Predial Português e “o elegante das festas do Estoril.” As vésperas da tomada de posse do I Governo Provisório, faz nesta semana 40 anos, foram efervescentes, rodeadas de episódios rocambolescos. Alguns dos protagonistas do Executivo são recrutados do mundo empresarial, da esfera privada e da administração pública — aquilo a que se chama hoje “tecnocratas”. Um presente envenenado.
Todas as revoluções têm uma dose elevada de imprevisibilidade. A portuguesa foi sui generis e partiu de um grupo de capitães que confiaram uns nos outros. Mas o golpe militar de 1974 só foi vitorioso porque desde o final da década anterior se vinha formando na sociedade portuguesa um clima favorável a uma acção revolucionária. Ainda antes do 25 de Abril, alguns militares foram ouvir, informalmente, dirigentes da Sedes (Associação para o Desenvolvimento Económico e Social), um grupo de reflexão criado pela ala reformadora marcellista, a que se juntaram os sectores mais liberais. O objectivo era aferir se havia receptividade para apoiar uma ruptura com o regime.

Entre 1972 e Abril de 1974, num país onde não havia direitos políticos, a Sedes transformou-se rapidamente numa oposição consentida, um pólo de atracção de académicos, profissões liberais, empresários, quadros da administração pública, como João Salgueiro, o seu fundador e então subsecretário de Estado do Planeamento de Marcello Caetano, ou Rui Vilar, na altura director do Crédito Predial Português (CPP). A diversidade de origens da Sedes [hoje liderada por Luís Campos e Cunha] vai fornecer aos partidos do centro esquerda e da direita um campo fértil de recrutamento. Tornara-se de tal forma relevante — era então das poucas forças organizadas — que assegurou uma quota no I Governo Provisório, que tomou posse faz na próxima sexta-feira 40 anos.

A Revista 2 ouviu ex-governantes deste Executivo, militares, economistas, advogados e um politólogo para reconstituir a formação do primeiro Governo saído da revolução. Fugiu aos estereótipos e a sua importância foi muito para além do perceptível, pois impediu o colapso da economia e das finanças nos dias críticos de mudança de regime. Mas rapidamente se tornou um centro onde se desenvolviam influências. Uma ficção. Durou dois meses.

1970. Ainda que “a economia estivesse a crescer, no campo político a envolvente degradava-se rapidamente”, recorda Manuel Jacinto Nunes, que atravessou a passagem para a democracia como vice-governador do Banco de Portugal e que foi subsecretário de Estado do Tesouro entre 1955-1959, de um governo onde Marcello Caetano era ministro. Um dia, encontrou-se em Paris com João Salgueiro, Xavier Pintado, secretário de Estado do Comércio, e Rogério Martins, ministro da Indústria — os três do sector liberal do Governo, que tentavam forçar Marcello à mudança. “Eles estavam já a formar a Sedes e eu disse-lhes: ‘Não estou contra [a abertura do regime], mas vocês não conseguem nada, porque Marcello Caetano é o ‘quero, o posso e o mando’. E ou alinham com ele ou não fazem nada.” Ora Jacinto Nunes tinha alguma razão.

Ao ser informado de que a Sedes ia ser constituída, Marcello manifestou-se a João Salgueiro: “Disse-me que não convinha que eu me envolvesse. Respondi-lhe: ‘Dado que já assinei a lista dos fundadores [150], por uma questão de princípio, vou continuar.” Durante cerca de um ano, o projecto esteve ainda a marcar passo. Mas ameaçava tornar-se um caso político, pois muita gente, de vários espectros, aderiu, como o filho do próprio Marcello Caetano, Miguel Caetano. Finalmente, antes de Dezembro de 1970, o ministro do Interior [Gonçalo Rapazote] daria a luz verde.
 
João Salgueiro foi um dos fundadores da Sedes. Marcello Caetano aconselhou-o a não se envolver NUNO FERREIRA SANTOS


O cavalo de Tróia

Início de 1971. Rui Vilar, que também era director da Sedes, recorda-se do burburinho: “Na Assembleia Nacional Popular (ANP), o deputado mais à direita, Cazal Ribeiro, chamou à Sedes um cavalo de Tróia dentro do regime.”

Antes do Verão, Marcello voltou a abordar Salgueiro, a quem lançou o repto: “Tem de escolher entre a Sedes e o Governo.” Mas o seu colaborador mantinha a intenção: “Fico na Sedes, deixo o Governo.”

O mesmo caminho seguiu pouco depois Torres Campos, que se demitiu de director-geral de Energia, então um lugar vitalício por nomeação do Presidente do Conselho: “Ainda que não fosse fundador, entrei para a Sedes por saber que o Salgueiro queria fazer pressão para que o Marcello abrisse o regime e encontrasse uma solução para a Guerra Colonial.” Não passará muito tempo até constatarem que a ideia era inviável.

1972. No quadro interno, o ambiente na Bolsa era de euforia e a economia crescia a bom ritmo: Marcello tinha posto em marcha uma estratégia desenvolvimentista. Já a contestação à Guerra Colonial acentuava-se. Na Guiné-Bissau havia nota de encontros entre António Spínola e o PAIGC, para um desfecho para o conflito. Numa entrevista ao historiador Fernando Rosas, Joaquim Magalhães Mota, chefe de gabinete do ministro da Indústria e deputado à Assembleia Nacional pela ala liberal [geração de políticos que defendia a liberalização do Estado Novo], e um dos promotores da Sedes, confiou que a actuação do general se articulava com os reformistas que promoviam, junto de Marcello, a candidatura de Spínola à Presidência da República.

Mas, contra todas as expectativas, a Acção Nacional Popular (ANP), o partido único presidido por Marcello, escolheu Américo Tomás como candidato. Para muita gente, esse foi o momento que ditou o fim da esperança de abertura, como sustenta Vasco Vieira de Almeida [hoje advogado]: “Tomás representava as teses da extrema-direita portuguesa.” O mesmo considera o actual presidente da REN, Rui Vilar: “Embora houvesse consciência de que o regime tinha de mudar, a partir daí deixou-se de acreditar que fosse possível.” E, assim, a 25 de Junho, o Diário de Lisboa fez manchete: “[Tomás] Eleito o hefe do Estado ao primeiro escrutínio”.

“O endurecimento da ditadura a partir de 1971-1972 provocou uma desilusão importante em segmentos da classe média modernizadora e das elites tecnocratas, mas também na sociedade em geral”, defende o politólogo António Costa Pinto. A tendência “reforçou-se quando se percebeu que Marcello não estava disposto a encontrar uma solução política para a Guerra Colonial”.

Marcello já estava “manietado e a decisão de apoiar Tomás chocou muitos oficiais, pois, como a secreta militar era autónoma da PIDE e fazia relatórios com o que se dizia no estrangeiro, conhecíamos as reacções internacionais à reeleição em que Tomás surgia ridicularizado”, assegura o coronel Cardoso Fontão [que integrará o Movimento], na altura major. “Os relatórios foram muito importantes na nossa formação, enquanto oficiais, pelo que conhecíamos da posição do De Gaulle na Argélia [descolonização].” E, na opinião do militar, ainda que Spínola fosse “convencional, até reaccionário, percebeu que a guerra estava perdida e deu um passo em frente, ao contrário de outros que não entenderam”.

Entre o final de 1972 e o final de 1973, há nota de vários acontecimentos que “tornaram o ambiente geral favorável a qualquer acção revolucionária”, observa Vieira de Almeida. E destaca a “grande contestação universitária e o facto de grupos de católicos estarem a questionar a Guerra Colonial [vigília na capela do Rato], bem como, no meio militar, haver quem se movesse para encontrar uma solução para a Guerra Colonial”. Em 1973, a geometria tradicional das Forças Armadas sofrera uma grande alteração, pois, para colmatar as brechas abertas no corpo de oficiais profissionais, o Governo decretou guia de marcha aos universitários. O que teve a consequência: o debate político alastrou para dentro das casernas.

1973. A meio do ano, Rui Vilar conta que se cruzou em Paris, pela primeira vez, com Mário Soares, a quem transmitiu a sua opinião: “O regime vai cair pela conjugação de duas forças, a militar e a da Igreja, pois, não sendo eu católico, vivi a acção que teve erupções na Capela do Rato.” Como reagiu Soares? “Que não acreditava porque eram dois pilares do regime e o regime teria de cair de outra forma.”

A 13 de Julho de 1973, Marcello publicou um decreto (n.º 353/73) explosivo porque vai alterar as regras a meio do jogo, ao permitir aos milicianos [contratados pelo Exército] acederem ao Quadro Permanente do Exército depois de um curso intensivo na Academia Militar. A equiparação ia atrasar a promoção hierárquica dos militares de carreira. Não passarão muitas semanas até que se desencadeie a revolta entre os capitães.
 
Rui Vilar cruzou-se em Paris com Mário Soares, a quem disse: “O regime vai cair pela conjugação de duas forças, a militar e a da Igreja" DANIEL ROCHA

"Somos do Movimento"


Foi em Luanda que Cardoso Fontão ouviu falar pela primeira vez do descontentamento entre militares. E ao inquirir os seus capitães todos lhe responderam: “Somos do Movimento.” Os oficiais juntavam-se em grupos de trabalho que decorriam em hotéis, onde a PIDE “devia ter antenas, mas não intervinha, pois percebeu que estava metida num molho de brócolos e o Movimento já surgia associado ao Spínola”. Aos olhos da lei, os militares não só eram seus superiores hierárquicos, como tinham as armas.

Setembro. Se no Exército havia muita insatisfação, nos meios aéreos predominava, por enquanto, o alheamento. Sobrinho de António Ferro (à frente da propaganda do regime) e da escritora Fernanda de Castro, o capitão navegador da Força Aérea João Quadros justifica: “Os protestos do Exército eram tidos como de raiz corporativa. Mas na Força Aérea a vida era também mais livre, com missões ao estrangeiro.” Na Marinha, o contexto era idêntico. O capitão-tenente Luís da Costa Correia não sonhava em envolver-se, mas o destino tinha planos diferentes para ele. Numa ida, ao acaso, ao Clube Militar Naval, foi apresentado ao então major Mariz Fernandes, envolvido na conspiração que o desafiou a participar, naquele mesmo dia, num encontro na Academia Militar. “O Hugo dos Santos [major que pertencia ao Movimento] explicou-me que, embora as reivindicações fossem até então mais de cariz profissional, estavam a ponderar alargá-las, pois era comum uma grande preocupação relativamente ao prestígio das Forças Armadas — e do Exército em particular —, dado o comportamento de Salazar na Índia e o agravamento da situação na Guiné.”

6 de Outubro. O capitão Dinis de Almeida reuniu em casa “oficiais do Exército [como o Otelo e Ramalho Eanes], a quem lembrei a necessidade de não se esquecer a procura de uma evolução do país no sentido da democracia”, recorda Costa Correia. Enquanto isto, não muito longe, estourara a guerra israelo-palestiniana de Yom Kipur, cujas repercussões vão acentuar a sensação de derrapagem em Portugal. O conflito levou ao boicote, por parte dos Estados árabes produtores de petróleo, das exportações de combustível às nações aliadas de Israel, o que se traduziu num aumento generalizado do preço do petróleo e dos derivados.

“Como a nossa economia estava construída no preço do barril a dois dólares, que passou para oito dólares, os fundamentos alteraram-se. E tudo o que dependia do petróleo ficou mais caro”, expõe Torres Campos. O engenheiro expressa a opinião: “Eu, em particular, sabia bem que íamos ter muitas dificuldades, mas, e ainda bem, os militares não estavam suficientemente metidos no problema económico para que isso constituísse um elemento desmobilizador [ou mobilizador] do que queriam fazer, até porque a grande alteração dos preços só se dará depois do 25 de Abril.” Por seu turno, Salgueiro nota que “os aviões dos EUA escalaram os Açores e Portugal vai sofrer particularmente com o choque petrolífero, com um embargo. Existia ainda um movimento de solidariedade árabe com os povos africanos que nos atingiu e à Rodésia e à África do Sul”.

Durante aquele Outono, o agora advogado Manuel Magalhães e Silva cumpria o serviço militar, mas na tropa de elite: não dava com os costados na guerra. Era então ajudante de campo do subchefe do Estado-Maior da Força Aérea. E conta que um dia desafiou o capitão piloto aviador Costa Martins: “Vocês falam, falam, mas não fazem coisa nenhuma e para mim não são nada se não entrarem com uma pistola no gabinete do chefe de Estado-Maior da Força Aérea, Armando Mera, e o prenderem.” Estavam os dois de pé à entrada da Rua Rodrigues Sampaio para o Estado-Maior da Força Aérea. Costa Martins (que daí a meses tomará a torre de controlo do aeroporto da Portela) surpreendeu-o: “Talvez não esteja tão longe como você pensa.”

Entretanto, a Sedes tornara-se o maior fórum de troca de ideias dos sectores mais liberais do regime, o que lhe dava relevância política, num país sem liberdade de ideias. “O Guterres, que sempre gostou de falar, fazia grandes intervenções e era então inseparável do Vítor Constâncio, que também intervinha muito”, recorda o major Francisco Barão da Cunha, associado da Sedes desde 1972, que considera ter sido “uma oposição consentida”.

Segundo João Salgueiro, foi, por esta altura, que chegou à direcção da Sedes um dossier enviado a título pessoal por um miliciano. “Todos nos conhecíamos e sabíamos, na Sedes, que as revindicações para anular o decreto, que afunilava as carreiras militares, estavam a evoluir para a necessidade de alterar a política de Defesa Nacional e evitar na Guiné” uma pesada derrota. “Os militares sabiam que o nosso debate já estava centrado na necessidade de democratizar e desenvolver o país e, talvez, tenha sido por isso que nos enviaram o dossier”, prossegue o fundador.

Quando estava em Lisboa, o comandante de Fragata em Moçambique, Vítor Crespo, do Movimento das Forças Armadas (na altura, Movimento dos Capitães), fazia os seus contactos. Rui Vilar não o conhecia, mas um dia recebeu um telefonema para ir almoçar. Os encontros vão repetir-se sempre a sós. O comandante falava pouco, mas fazia perguntas. Para Vilar, a “curiosidade excessiva” sobre temas económicos e financeiros por parte de um comandante da Marinha traduzia-se numa coisa: “Em preocupações escondidas... As conversas eram, obviamente, muito encriptadas, mas ele colocava questões sobre as áreas económicas e financeiras e deu para perceber que algo se estava a passar.”

22 de Dezembro. Marcello tinha subestimado o protesto dos militares e quatro meses depois da publicação suspendeu o decreto dos milicianos para estancar a contestação nas Forças Armadas. Só que nessa fase já os capitães se tinham desviado da sua rota inicial com vozes a sugerir mudar de regime.

1974. O Governo enfrentava agora muitos problemas: o PIB desacelerara; a taxa de inflação (segundo relatório da OCDE) superara 20%, só a Grécia estava pior (30,4%); faltava liquidez; a Bolsa estava deprimida. Havia racionamento nas bombas de gasolina. O prejuízo não ia apenas para o bolso do consumidor, constituía um verdadeiro quebra-cabeças para o Governo, que perdia sustentação: o povo estava cansado da guerra e da emigração, a burguesia queria maiores liberdades. E o meio militar “brigava” pelo fim da guerra.

Em Janeiro, muita gente já ouvira falar no Movimento dos Capitães, até porque todas as famílias tinham um conhecido na guerra. Nesse mês, Rui Vilar participou num colóquio da Sedes, em Leiria, com Francisco Sá Carneiro e Marcelo Rebelo de Sousa, onde mencionou “pela primeira vez em público as movimentações dos militares. Mas a notícia foi cortada pela censura”.

Terá sido nesta fase que as ligações entre capitães se intensificaram, como se lembra João Quadros, que fazia o voo de transporte de material de guerra e de tropas entre Lisboa e Luanda. “Todos sabíamos que estavam a preparar qualquer coisa e, a partir do início de 1974, deu-se uma troca intensa de correspondência livre entre os revoltosos que usavam os aviões militares. Não fazia perguntas e entregava as cartas [trocadas entre os capitães] a quem estava à espera à saída do avião.” “Tínhamos o mundo contra nós e uma solução política era inevitável. No final, os guerrilheiros na Guiné, onde o teatro de guerra era muito difícil [bolanhas, campos inundados de água para o cultivo do arroz], estavam até mais bem preparados do que nós.” O capitão navegador sublinha que nunca pertenceu ao Movimento, mas lamenta: “Foi pena não se ter chegado a um acordo político.” Era possível? “Se não houvesse golpe, o regime dificilmente daria o primeiro passo.”

22 de Fevereiro. O diálogo entre os oficiais do Movimento e o regime era agora de surdos. Spínola publicou Portugal e o Futuro, onde, após 13 anos de conflito, advogou a negociação como única saída para o conflito. “O aparecimento de um general do Estado Novo, que não era possível acusar de falta de coragem, a afirmar que a guerra não podia ser ganha, vai dar-lhe grande prestígio”, considera Vieira de Almeida. E relata uma troca de palavras com o vice-presidente da Acção Nacional Popular, José Guilherme Melo e Castro: “Disse-me que estava convencido de que o fim do regime era inevitável por iniciativa do Exército.”

5 de Março. Nas vésperas do golpe das Caldas da Rainha, as reivindicações dos capitães já tinham estacionado no objectivo final: Democratizar, Desenvolver, Descolonizar (DDD). “Quando eles falaram nos 3D, já estavam a reivindicar um país diferente”, observa João Salgueiro.

16 de Março. Todas as revoluções têm o seu laboratório e a acção militar desencadeada pelo Regimento de Infantaria 5 (RI5) das Caldas da Rainha, que ficou isolado, tornou-se, para muita gente, um prenúncio. Se para Rui Vilar foi “um primeiro ensaio mal feito”, para o advogado Magalhães e Silva, “o 16 de Março foi muito penoso porque quando se vive num estrato social misto, em que o grosso das pessoas é a favor do regime, em situações destas, começam a fazer pouco de nós: ‘Vocês não queriam mais nada…’ Foi humilhante”. A prisão dos oficiais que desencadearam o golpe fracassado levou militares “a fazer saber ao Movimento que tínhamos de avançar rapidamente, pois havia camaradas presos”, conta Cardoso Fontão. Já Costa Correia interrompeu as “ligações à conspiração”, pois “considerava que dentro da Marinha os oficiais dos fuzileiros, bem como outros mais antigos, de pendor liberal, não estavam a ser devidamente informados dos contactos com o Exército”.
 
Cardoso Fontão foi convidado por Otelo a sair com o batalhão BC5, ao qual pertencia NUNO FERREIRA SANTOS
"Os empresários sabiam que o regime tinha de mudar"

A montagem do 25 de Abril exigiu articulação. O Movimento procura agora uma equipa de combate. Otelo Saraiva de Carvalho foi a Almada a casa de Cardoso Fontão para o convidar a sair com o batalhão BC5 [a unidade do regime], onde o major estava colocado. Os dois não se conheciam. O major questionou: “‘Otelo, isto é no sentido da democratização do país?’ E ele respondeu-me com um ar peremptório: ‘Sem dúvida nenhuma’”. O major garantiu-lhe: “Vou para a frente com ou sem generais, mas gostava de saber se há envolvidos e quem são.” O outro esclareceu-o: “O Spínola e o Costa Gomes estão connosco.” “E quem é o número 1?” “É o Costa Gomes, claro”, declarou Otelo. Antes de partir, Otelo disse-lhe apenas que o golpe decorreria antes do final de Abril.

Na noite de 24 de Abril, Vasco e Ana Maria Vieira de Almeida dirigem-se a Caparide para jantar na quinta de Manuel Boullosa. O tema militar estava na ordem do dia e foi abordado durante a refeição. O presidente do CPP admitiu a Boullosa, accionista de controlo do banco, a possibilidade de estar para breve um golpe. “Ele não era um político, era um conservador muito inteligente que percebia que o mundo mudara. E achava que tinha de haver um Estado social e que a liberdade era um bem.” O retrato da época permite uma outra leitura: o poder económico não se convencia de que para haver liberalização da economia teria de haver ruptura do sistema político e que isso levaria a uma revolução. “Muita gente podia ter colocado o dinheiro lá fora quando surgiu o 16 de Março. Mas não. E perderam muito. Foi inesperado”, defende Jacinto Nunes. Para Vieira de Almeida, “os empresários sabiam que o regime tinha de mudar, só que não acreditavam que tal fosse possível”.

25 de Abril. Derrubando a tese da inevitabilidade, os capitães iam ter um grito de alma. Não eram ainda 03h00 quando o batalhão chefiado por Cardoso Fontão iniciou a marcha para o Quartel-General da Região Militar de Lisboa e para o Rádio Clube Português de onde foi emitido o primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas. A meio da manhã, ocorreu um incidente que o major não esqueceu. No Quartel Mestre General, uma repartição logística, encontravam-se o general Louro de Sousa e o brigadeiro Jaime Silvério Marques. E sobre o que lhes fazer Cardoso Fontão pediu orientações do posto de comando do MFA: “Eh pá, prende-os.” Depois de comunicar ao general e ao brigadeiro que seriam transferidos para o BC5, “o Silvério Marques começou a dizer que tinha um problema gravíssimo, pois havia um barco israelita carregado de material estratégico e secreto. E ainda hoje não sei se havia ou não…”

A meio da tarde, Cardoso Fontão reencontrou Louro de Sousa e Silvério Marques no quartel (BC5), para onde tinham sido transferidos, à conversa na sala dos oficiais. Ao ver Cardoso Fontão, o brigadeiro foi ter com ele. “Perguntou-me se sabíamos no que nos estávamos a meter e eu expliquei-lhe que era o Movimento dos Capitães.” Silvério Marques inquiriu: “O que é isso?” Mas Fontão vai ter uma surpresa.

Na manhã do 25 de Abril, Vieira de Almeida foi para a rua. Em Alcântara, viu forças da Guarda Nacional Republicana e passou pelo quartel do Largo do Carmo [onde Marcello se refugiara]. Em casa, o telefone tocava. “A Ana Maria estava entusiasmada por ter tido sempre uma posição activa contra a ditadura.” E, ao final do dia, “foi também por ela que muitos amigos apareceram”.

15h00. Ao início da tarde, Luís Costa Correia deslocou-se à força de fuzileiros onde o capitão-de-mar-e-guerra Pinheiro de Azevedo, por orientação do MFA, o nomeou para chefiar o destacamento de fuzileiros especiais que vai obter a adesão do chefe do Estado-Maior da Armada. “Só depois tinha indicação de procurar a rendição da PIDE”, onde chegou ao final da tarde, já depois de os inspectores cercados terem disparado e provocado quatro mortos. Costa Correia evoca: “Enquanto tudo isto se passava, Spínola falava ao telefone com o director-geral da PIDE, Silva Pais, a quem verberou os tiros e recomendou que deveria tomar cuidado para que não ocorressem mais incidentes.”

26 de Abril. 01h30. Esse é o momento que muitos não esquecem. Cardoso Fontão em particular. Seis oficiais (faltava Diogo Neto) dos três ramos das Forças Armadas, incluindo Jaime Silvério Marques, surgiram na televisão, ainda a preto e branco, a olhar para as câmaras, sem saber bem o que fazer. As declarações de Spínola, presidente da JSN, “deram-nos uma enorme alegria por reconfirmarem tratar-se de um golpe para instalar a democracia e pelo facto de os militares terem derrubado o regime sem efusão de sangue, sem vinganças e sem violência”, recorda Vieira de Almeida.

8h30. Na Pontinha, o presidente da JSN assegurava que a PIDE seria extinta. Mas nessa altura já constava que “o inspector da PIDE, Coelho Dias, amigo de Spínola, teria mantido contactos com o general ou oficiais próximos para uma futura reconversão” da secreta. Os rumores são mais do que zunzuns, como, em breve, vai constatar Costa Correia.

9h00. Enquanto o Esquadrão de Cavalaria 3 recebia ordens para ocupar a sede da PIDE e recolher o armamento, os Fuzileiros “estabeleciam contacto com Silva Pais para não haver confrontações durante a respectiva entrada, que se deu por volta das 09h00”, relata o capitão-tenente Costa Correia. “Silva Pais mandou executar as instruções que lhe foram dadas [pelo MFA] de retirar da parede os quadros dos responsáveis políticos pelo país, bem como o de Salazar e Marcello.” Ainda não eram 10h00 quando Silva Pais fez a declaração do dia: a PIDE aderia à acção do MFA.

Eis senão quando, para surpresa dos oficiais que ocuparam a PIDE, chegou ao gabinete onde Costa Correia se instalara (na PIDE) um “estafeta” enviado pelos “spinolistas, com uma credencial assinada pelo próprio general Spínola, com selo branco, e nomeando Coelho Dias para o cargo de novo director-geral de Segurança”. O MFA neutralizará as intenções dando “dicas” à comunicação social. Mas, como relatou o militar, havia uma preocupação: “Spínola queria manter a PIDE activa no Ultramar, pois para ele não era evidente que a guerra acabasse tão depressa.” Uma interpretação comprovada nos dias seguintes.

Enquanto tudo isto se passa, Jacinto Nunes era chamado à Cova da Moura [onde funcionava a Chefia do Estado-Maior]. À sua espera, estavam Galvão de Melo, Spínola e Silvério Marques, de quem partira, aliás, a convocatória. Os três estão de pé quando lhe perguntam se aceita colaborar com eles. “Sim, mas responsabilidades políticas não assumo.” Os dois oficiais da Marinha “começaram a gritar comigo: tem de aceitar ser o delegado da JSN”. Olhou para eles e disse: “Não vale a pena insistirem. Todos me conhecem bem.” Mas, nessa altura, Vítor Alves, o rosto moderador do MFA, telefonava a Vieira de Almeida.

Assim, quando o presidente do CPP estacionou o carro no pátio na Cova da Moura, já lá estavam Vítor Alves, Spínola e Galvão de Melo. Pedem-lhe que escreva um memorando SOS para “evitar a corrida aos bancos, a especulação, a alta de preços e assegurar o abastecimento de produtos”. “Não esperava, mas também não estranhei o contacto, pois, na altura, tinha visibilidade, através de intervenções públicas. E sempre fui contra o regime”, nota Vieira de Almeida. Aceitou. “Sentia não só o dever, mas o desafio: um momento histórico em que queria participar.”


Vasco Vieira de Almeida foi chamado de "cubano" por Spínola RUI GAUDÊNCIO

A reserva moral da esquerda

Depois de um percurso sólido de 16 anos na banca, parecia destinado aos temas dos juros, do crédito, dos depósitos. Mas há muito que escolhera o seu campo: aos 27 anos, director do BPA (antes de ir para o CPP), colaborou na evasão de Caxias dos comunistas Domingues Abrantes e Rolando Verdial, que vai, aliás, denunciá-lo e por três meses o levará ao Aljube, a prisão dos presos políticos. No 25 de Abril, tinha 42 anos e, para uma certa geração, era uma reserva moral da esquerda.

“O Vasco é muitíssimo inteligente. Eu não tinha ambições, nem era um concorrente. Demo-nos muito bem”, clarifica Jacinto Nunes, que, apesar de ter recusado o lugar oferecido pela JSN, se manteve a colaborar com Vieira de Almeida. Mas, “embora seja um grande gestor e advogado, de administração pública percebia pouco”, ironiza Jacinto Nunes. “O primeiro despacho que elaborámos roçou a anedota. Era sobre a importação de álcool. Discutimos o assunto e no final ele perguntou: ‘E agora?’” As leis estavam suspensas, não havia Governo. O economista pensou: “Um dia prendem-me, as ordens [do MFA] eram todas ilegais.”

“Uma ideia que todos partilhávamos era a de ser urgente, para conseguir a democracia, resolver o problema do analfabetismo. E o que ali, naquele momento, estava em causa não era ainda uma revolução, mas um golpe de Estado”, justifica Vieira de Almeida. Na Cova da Moura, o ambiente era, por vezes, de grande informalidade. Spínola tinha hábitos de um general em operações, com explosões. Vieira de Almeida propôs que os “estudantes universitários fossem para a província ensinar as pessoas a ler”. A sugestão foi passada ao papel. Foi quando Spínola irrompeu pelo gabinete cheio de gente: “Quem foi o cubano que escreveu isto?” O cubano era o presidente do CPP. Para o general, “ensinar as pessoas a ler parecia ser altamente revolucionário”.

27 de Abril. O MFA procurava agora formar rapidamente um governo para evitar que o poder caísse nas ruas, onde já havia erupções. Era para a Cova da Moura que convergiam as delegações convidadas por Spínola, que incluíam as forças organizadas. Naquele dia, foi a vez de receber os monárquicos, O general, sentado num sofá, deu a direita aos convidados. Spínola assumira os comandos do país no meio de um dilema: descolonizar imediatamente ou avançar para autodeterminação? O tema dominava o debate nas Forças Armadas e a conversa incidiu sobretudo sobre a questão colonial, como conta Magalhães e Silva, que integrou a comitiva monárquica. Spínola estava, porém, indeciso, fungava muito, ajeitava o monóculo. “Ouviu-nos, e como eu era o mais falador defendi que se devia auscultar as populações nas colónias para realizar o princípio da autodeterminação…”, diz Magalhães e Silva. “As semanas seguintes vieram revelar que a minha tese era impraticável.”

No mesmo dia, Rui Vilar era também esperado na Cova da Moura. Spínola solicitou-lhe “um apontamento sobre o programa de Governo Provisório e uma lista de pessoas da Sedes que o pudessem integrar”. Vilar, Torres Campos, Magalhães Mota e Mário Murteira vão preencher a “quota” destinada à Sedes. “Os militares estavam preocupados que todas as sensibilidades estivessem representadas e procuravam saber que tendências existiam na sociedade portuguesa com o mínimo de representatividade”, alude João Salgueiro, que, em 1980, será ministro de Estado e das Finanças. “O objectivo era fazer um governo que parecesse ser de salvação nacional.”

A revolução ia ter um resultado prático: a alteração das chefias militares, um momento que surpreendeu o então miliciano Magalhães e Silva pela solenidade: “A prisão do chefe do Estado-Maior da Força Aérea [Armando Mera] teve a dignidade de general, porque era um homem de bem e os militares do 25 de Abril perceberam.” “Enviaram o tenente-coronel Almeida Bruno, o general de maior gabarito das Forças Armadas na altura, que apareceu fardado e com a [condecoração] Torre Espada para o prender. E desde o seu gabinete até à porta da rua perfilaram-se, de um lado e do outro, todos os generais da Força Aérea. Armando Mera saiu com uma guarda de honra de generais, mas preso, como não podia deixar de ser, pois era o chefe do Estado-Maior da Força Aérea de um regime deposto, na sequência de uma revolução.”
30 de Abril. No dia a seguir ao regresso de Mário Soares do exílio, Álvaro Cunhal aterrou na Portela. Vieira de Almeida e Jacinto Nunes estão na Cova da Moura quando ouvem “palavras de ordem”. Os dois correm para a janela. No pátio do quartel, Cunhal surgia envolto numa multidão “que fazia um barulho imenso”, evoca Jacinto Nunes: “Recuei. A sensação foi fortíssima.” Não era o medo, era o instinto.

Quando a Sedes avançou com a constituição de uma comissão política, os tempos já não eram de reflexão, mas de rua. Francisco Barão da Cunha, que está prestes a ir para o Copcon (Comando Operacional do Continente) trabalhar com Otelo, evidencia que, “depois do 25 de Abril, a Sedes estilhaçou um bocado, pois muitos dos associados saíram para os partidos. Eu, por exemplo, saí logo a seguir. Tudo já se passava cá fora”. O politólogo Costa Pinto nota que a Sedes “foi um embrião de um sector liberalizador e modernizador que a seguir ao 25 de Abril forneceu importantes quadros, nomeadamente, ao PS e, sobretudo, ao PSD”.

No período que mediou entre o golpe militar e o I Governo Provisório, houve gestos imprevistos. Jacinto Nunes foi o executor de um deles. Franco Charais, da comissão coordenadora do MFA e seu aluno no Centro de Altos Estudos Militares, procurou-o: “Senhor professor, as mulheres dos pides não puderam receber o ordenado dos maridos, pois não lhes pagam. O que pode fazer?” O vice-governador pegou no telefone e ligou ao director-geral da Contabilidade Pública, com quem nunca tinha falado: “Veja lá se arranja um meio de lhes pagar.” Do outro lado da linha, ouviu o seguinte: “Elas que levem o cartão de identidade dos maridos e serão pagas.” “O problema das mulheres dos pides foi resolvido através da acção de um revolucionário”, nota Jacinto Nunes. E Vieira de Almeida assistiu mesmo à entrada na Cova da Moura de dois inspectores da PIDE conhecidos: “Iam falar com o Spínola.” O que pensou? “Era tudo surreal!”

De todos os talentos de Spínola, a análise política não era um deles. O general vai entrar em choque a propósito do PCP, pois opunha-se à entrada no Governo de Cunhal, debate a que assistiu Vieira de Almeida. “A exclusão era inaceitável, pois os comunistas tinham sido a única força organizada a bater-se contra a ditadura. A maioria das outras pessoas fizera-o a título individual.” Para o advogado, “o PCP não só tinha legitimidade, como era fundamental para moderar excessos, como a ocupação incontrolada de casas e de empresas ou greves selvagens”. Mas as contradições no círculo militar estavam a minar a confiança na Cova da Moura, onde o ambiente era de grande afã com militares e civis em permanente circulação, como bem se recorda Jacinto Nunes. “Eu estava sentado e passava um oficial, mais extremista, que tinha sido meu aluno e dizia uma coisa, depois um outro, mais moderado, que dizia mais outras…” Matutou: “Eh pá, neste ambiente que deve ser de unidade, descarregam comigo as ameaças de uns contra os outros.” O que lhes dizia? “Nada, é claro.” As movimentações davam pistas para o que se iria passar daí em diante: uma aceleração progressiva da revolução.

1 de Maio. Magalhães e Silva assistiu ao discurso de Álvaro Cunhal entre um soldado e um marinheiro, a fazer lembrar a revolução russa de 1917. Para este advogado, “o primeiro 1.º de Maio foi um deslumbramento. O Estádio, as ruas… Era Lisboa em festa. Era a grande festa da burguesia, que nunca aparece nestas manifestações, e que saiu de casa, com esperança”. No meio da manifestação, distinguia-se um cartaz: “É urgente a revisão da lei da caça.”
 
Na Cova da Moura, o ambiente era de grande afã com militares e civis em permanente circulação, recorda Jacinto Nunes NUNO FERREIRA SANTOS
O discurso de Álvaro Cunhal a 1 de Maio ARQUIVO
3 de Maio. Spínola recebeu os empresários a quem passa uma mensagem de confiança. Vieira de Almeida fez uma intervenção política: “Era favorável à existência de um sector privado, ainda que considerasse que não deveria haver grupos monopolistas e que o Estado deveria controlar áreas estratégicas quando se mantivessem na esfera do sector privado.” E defendia, igualmente, que “a lei [de Marcello] que previa que o Governo indicasse delegados com extensos poderes para estes sectores devia ser aproveitada”.

16 de Maio. Durante mais de 40 anos, Portugal foi governado por um só partido e preparava-se agora para uma troca de registo: ter um executivo de várias tendências. “A escolha do primeiro-ministro gerou discussão, pois Adelino da Palma Carlos era um republicano, contra a ditadura, irmão de defensor de presos e, sendo uma figura consensual, não era um político”, salienta Vieira de Almeida, que será indigitado para a pasta da Coordenação Económica. “O candidato de muitos [ao cargo] era o Francisco Pereira de Moura, mas a ala moderada do MFA achava-o um pouco excessivo”, esclarece o mesmo advogado. Pereira de Moura, que será ministro de Estado, vai protagonizar vários episódios. O primeiro será na tomada de posse. Rui Vilar integrou a equipa do ministro da Coordenação Económica e estava presente: “Spínola exigiu que todos levassem gravata, o que Cunhal aceitou, mas o Pereira de Moura surgiu de gola alta branca.” O actual presidente da REN conta que olhou para Vieira de Almeida e se lembrou do letreiro à porta do La Coupole, a brasserie parisiense frequentada por líderes do Maio de 68: “Veston et cravate obligatoire, enrolé tolerés [Laço e gravata obrigatório, gola alta permitida].” O Governo, o primeiro a incluir comunistas e socialistas, procurava passar boa mensagem, mas já escondia tensões internas que cedo se começaram a sentir. Nos primeiros dias, Vieira de Almeida (que acumulava a Economia e as Finanças) continuou a deslocar-se à Cova da Moura, onde também ia Jacinto Nunes. O economista recorda que “Pereira de Moura entregou ao Spínola uma proposta que retirava ao Vieira de Almeida poderes, pois o Moura passava a controlar a política económica. Então, o Spínola pediu ao Vasco que olhasse para o documento”. Vieira de Almeida partilhou-o com Jacinto Nunes, que estava “mais calejado”: “Já viu o que aqui está? Você vai ser um par de copas nas mãos do Pereira de Moura.” O ministro da Coordenação Económica reagiu: “Vou já falar com o Spínola.” Jacinto Nunes lembra-se de ter “corrido atrás dele, que ia furioso”. O general “pouco percebia do assunto, mas comentou: ‘Bem me parecia que isto [proposta de Pereira de Moura] não era grande coisa’.”

26 de Maio. “O Ministério do Vasco era enorme e no final de cada Conselho de Ministros ele reunia a equipa, secretários e subsecretários de Estado, a quem reportava o ambiente delirante que lá se vivia. Tínhamos a ideia de que íamos mudar o país e promover o desenvolvimento e a vontade de acreditar que o crescimento ia chegar rapidamente sobrepunha-se à crise petrolífera e à ideia de que, com isso, o mundo mudara e que, se calhar, não haveria o crescimento esperado.” Vilar comenta a proposta de criação do salário mínimo a fixar em 6600 escudos, sugerida por Pereira de Moura: “O distinto economista rebentava com o PIB.”

“Eu estava de acordo e, aliás, a medida constava do programa do Governo. Mas os 6600 escudos eram irrealistas, o que ia tornar a gestão económica e financeira insustentável”, explicou Vieira de Almeida. “E disse ao Pereira de Moura: ‘Se você quiser tomar essa decisão, deve assumi-la e eu saio.’ Escrevi uma carta a pedir a demissão, que foi recusada.” No Governo, “não existia animosidade, mas grande tensão, pois não se fazia uma verdadeira discussão política. Havia desnorte, falta de orientação com que eu não queria colaborar. Algumas decisões eram absurdas”. O salário mínimo foi fixado em 3300 escudos.

Mas o Executivo estava rapidamente a tornar-se bipolar e oscilava entre fases de grande ânimo e outras de falta de bom senso. Um dia, Vieira de Almeida leu num jornal que Pereira de Moura afirmara que “o turismo era a prostituição” do país. Não queria acreditar e ligou a Rui Vilar: “Você vai dar uma entrevista a dizer que precisamos de turismo.” Na sua primeira intervenção a um jornal, como membro do Governo, o secretário de Estado do Comércio e do Turismo foi desdizer o ministro sem pasta. “Inventei a frase ‘Faça férias cá dentro’, que ainda hoje é usada.”

Deu-se nessa altura uma explosão do movimento associativo e das organizações dos trabalhadores a que o PCP dava gás “à imagem dos sovietes de 1917”, recorda Torres Campos, que ficou “fascinado quando os revendedores de combustível, que queriam preços tabelados e maiores aumentos, apareceram unidos numa associação”. As direcções-gerais, onde corriam todos os processos, estavam paralisadas e os trabalhadores e o patronato apenas conheciam uma porta: a do Terreiro do Paço, onde funcionava a Economia. A secretaria de Estado da Indústria parecia hora de ponta. “As pessoas dirigiam-se directamente a mim para obter respostas”, sublinha Torres Campos. “Eu vivia na urgência de resolver os problemas e o Vasco descentralizava.” Então, “retirámos os móveis do sótão do Ministério e criou-se uma espécie de serviço de urgência de consultas, com mesas de atendimento”.
Torres Campos recorda: “Eu vivia na urgência de resolver os problemas e o Vasco descentralizava” NUNO FERREIRA SANTOS

As reuniões de Conselho de Ministros começavam a tornar-se difíceis. Muitas propostas de Vieira de Almeida não vingavam. “Eu sugeria meia dúzia de pontos para os quais não havia alternativa: manter os centros de investimento e de decisão nacionais, sem destruir a iniciativa privada, o que acabaria com qualquer possibilidade de desenvolvimento futuro; apoiar as PME; alterar o regime fiscal.” A realidade das ruas sobrepunha-se à vontade dos tecnocratas do Governo de promover uma transição equilibrada, o que ia levar alguns ministros a radicalizar as suas propostas.

29 de Maio. Toda a administração do Banco de Portugal foi demitida. A autoridade monetária dispunha então de reservas de ouro que lhe permitiam financiar 16 meses de importações. Mas agora estava à deriva, o que era motivo de preocupação para Vieira de Almeida, com a tutela das Finanças. No dia seguinte, Palma Carlos procurou Jacinto Nunes: “Tem de voltar para o BdP.” O vice-governador replicou: “Os jornais dizem que eu fui expulso e agora quer que eu volte?” O primeiro-ministro argumentou: “Nomeio-o.” “Nomeia-me? Mas é preciso um Conselho de Ministros para o fazer.” À noite, Palma Carlos assinou um despacho indicando-o governador interino.

31 de Maio. Jacinto Nunes entrou no BdP com “o papelinho no bolso”, conta. “Mas ninguém mo pediu e assumi as funções como se nada se tivesse passado.” Só que no BdP os funcionários tinham conquistado o seu terreno e deixado as fardas em casa, o que estava a deixar o governador incomodado.

Junho. O país está agora pintado de fresco com mensagens por todo o lado. Há ameaças de greve e muitas reivindicações. “O Cunhal assumiu uma posição geral moderadora, porque tinha uma visão estratégica e percebia não poder ir além de certos limites. E tinha imenso cuidado para que não se pensasse que queria instalar em Portugal uma réplica do regime soviético”, relata Vieira de Almeida, que está prestes a receber o apoio do líder comunista. Salgado Zenha surgiu em Conselho de Ministros a solicitar ao ministro da Coordenação Económica “uma decisão determinando as nacionalizações e os saneamentos”, que é negada. O agora advogado explica por que se opôs: “As nacionalizações não são um fim em si, mas apenas um instrumento de uma política pré-definida que não existia. E embora aceitasse alguns saneamentos, achava que não podiam ter um carácter geral. Havia muita gente que podia ser útil e não tinha cometido qualquer crime.” “As revoluções, como sempre prova a história, não se repetem. A nossa tinha características próprias e não fazia sentido fazer reviver os métodos da revolução russa de 1917”, adianta Vieira de Almeida.

A recusa em envolver-se com as teses mais extremistas vai dar azo a que o jornal da UDP, Voz do Povo, zombe: Vieira de Almeida, “um elegante de festas no Estoril” que anda a boicotar a revolução. O advogado ainda hoje se ri ao mencionar o episódio e garante: “Nunca fui às festas.” Só que pouco depois, um dia ao entrar no seu gabinete, deu-se um incidente que memorizou. Um tenente da Marinha vasculhava as gavetas a mando da ala militar esquerdista. O que para Vieira de Almeida era intolerável. Na sequência, procurou Vítor Alves e Ernesto Melo Antunes. “Meus caros: há coisas que não suporto e uma delas é que me vigiem. Vou-me embora.” Os oficiais demoveram-no. Será, aliás, com eles, que só conheceu após o 25 de Abril, que estabeleceu “empatia imediata”. “Eram equilibrados, inteligentes, diferentes um do outro. O Melo Antunes com um pensamento estruturado e ideológico. O Vítor Alves com grande sentido político. E, os dois, sempre verdadeiros a si próprios.” A amizade ficou para a vida.

Hoje, Vieira de Almeida defende que “o MFA continua a ser atacado pela direita, mas a verdade é que, na sua acção, revelou uma formação ética e política elevadas. É preciso não esquecer que, tendo todo o poder, o entregou aos civis assim que teve condições, eliminando desvios totalitários e repondo a pureza dos valores democráticos por que se bateu”.

13 de Junho. No meio da falta de liquidez geral e dos apertos de tesouraria que o país começava a sentir, no BdP festejava-se o Dia de Santo António. O pátio de entrada ostentava bandeirinhas coloridas. Os contínuos deixaram de andar fardados. Jacinto Nunes vai desenvolver reuniões: “Chamei os líderes dos trabalhadores e disse-lhes: ‘Isto é um banco central, vêm cá banqueiros estrangeiros e dão este folclore!’” Sá Carneiro tinha acabado de nomear João Salgueiro vice-governador quando Jacinto Nunes lhe sugeriu: “Temos de sensibilizar PSD, PS e PCP para a necessidade de recuperar seriedade no BdP e manter o prestígio internacional.” Só que os partidos tinham outras prioridades e não vão fazer caso. Os ricos também faziam a sua revolução, adaptando-se às novas circunstâncias, como relata Vieira de Almeida. “Vi chefes de empresas que antes circulavam em carrões com motoristas fardados surgirem de Volkswagen sentados no banco da frente com o motorista agora sem boné.” O “oportunismo com que muita gente aderiu aos partidos políticos” ia dar que pensar. De repente, Vieira de Almeida, que sempre se assumiu de esquerda, via-se ultrapassado “por quem na véspera estava com o regime”.

5 de Julho. Depois da recusa do MFA em antecipar as eleições, como queria Spínola, Palma Carlos e Sá Carneiro, o Conselho de Estado recusou a proposta, o que vai precipitar a queda do Governo.

6 de Julho. “O aumento dos vencimentos do Funcionalismo Público vai de 15% a 42%”. É a manchete do Diário de Notícias.

8 de Julho. Estavam mais de 20 mil pessoas em frente da Assembleia da República quando Sá Carneiro ligou a Vieira de Almeida: “‘Vem cá depressa porque está aqui uma manifestação gigantesca que não aceita o teu decreto’.” Da varanda principal, de megafone na mão, o ministro da Coordenação Económica revogou o decreto “sem qualquer legitimidade para o fazer”. Mas, como o Parlamento estava prestes a ser invadido, desceu até à multidão para falar com os líderes dos protestos. “Foi impressionante”, refere ainda hoje o advogado. Ao deixar São Bento, o ainda ministro sabia que à sua espera podia estar o impasse.

9 de Julho. Os jornais fazem manchete com o acontecimento da véspera. Um episódio que vai dar ímpeto a Vieira de Almeida para abandonar o Governo. Hoje lamenta: “Se tivesse havido o mínimo de racionalidade, teria sido possível evitar muitos erros, mesmo em período revolucionário.”

Esperava apenas pela ocasião que chegará naquele dia. Palma Carlos tinha “acolhido bem a proposta de Sá Carneiro de eleição imediata do Presidente da República, que seria o Spínola, o que gerou a ideia de uma conspiração reaccionária”, prossegue Vieira de Almeida, que se solidarizará com o professor de Direito. “Eu já tinha a convicção de que o caminho que se ia seguir seria, como foi, de total descontrolo.” Em Conselho de Ministros, o clima azedou e Palma Carlos demitiu-se. Vieira de Almeida adianta: “Intervim para dizer que era impossível governar naquelas condições e que me ia embora de vez.”

Os detractores falam num golpe Palma Carlos. O advogado explica que não concorda: “O Palma Carlos era um velho liberal, sem grande sensibilidade política, não funcionava bem naquele ambiente descontrolado. Já os spinolistas tinham vontade de tomar o poder, pois estavam em tensão com o resto do MFA.” Para o politólogo Costa Pinto, “muito dificilmente” o I Governo Provisório “se poderia manter” por “representar uma iniciativa de Spínola com escassa concordância com o MFA”. E, em especial, por uma razão “que remete para um facto que em grande parte é exterior ao Governo: o conflito entre o MFA e Spínola a propósito da descolonização”.

11 de Maio. A queda do I Governo Provisório (acompanhada da renúncia de Spínola) mergulhou o país em crises sucessivas. “O Governo não governava. Os militares, os partidos políticos, os sindicatos e os grupúsculos que apareceram estavam na origem das decisões”, evoca Vieira de Almeida, 40 anos depois. E concluiu: “Só que ninguém queria acabar com o Governo, para evitar uma espiral infernal.”


Com a saída dos tecnocratas e dos independentes do Governo, a revolução vai endurecer. A queda do regime culminou numa ruptura política, mas também económica (nacionalizações), mudou a geografia territorial e levou mais de meio milhão de portugueses a regressar das ex-colónias. Tudo em apenas um ano... O filme não correu bem, mas podia ter corrido muito mal.  

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