quarta-feira, 7 de maio de 2014

Acabou a emergência, falta a inteligência


Sociedade Aberta
Paulo Ferreira
Acabou a emergência, falta a inteligência
PAULO FERREIRA in DE online

Sem o acompanhamento permanente, a tutela e a pressão da ‘troika’ vamos ter capacidade para desenhar e colocar no terreno as medidas difíceis que continuam a ser necessárias? É isso que vamos verificar nos próximos meses.
Chegámos então à dita "saída limpa". Isso quer dizer que o "trabalho sujo" dos últimos três anos foi bem feito - e quem quer que estivesse no Governo teria que o fazer com poucos graus de liberdade; era isso ou uma sucessão de memorandos para garantir que no mês seguinte continuaríamos a ter dinheiro para pagar salários e pensões, como se vê na Grécia.

Sofremos uma série de cortes cegos, "à bruta", com objectivos quase exclusivamente contabilísticos - escrevo "quase" porque alguns têm uma bondade própria, como os das rendas das energias e das auto-estradas, para dar dois exemplos.

Foi o momento da emergência. Agora, para que tudo isto tenho algum sentido, é preciso passar à fase da inteligência. Vamos tê-la? E vamos manter a coragem política - que este Governo tem indubitavelmente, goste-se ou não dele, das suas medidas e da forma como têm sido executadas e explicadas - que continua a ser necessária? Mais: sem o acompanhamento permanente, a tutela e a pressão da ‘troika' vamos ter capacidade para desenhar e colocar no terreno as medidas difíceis que continuam a ser necessárias? É isso que vamos verificar nos próximos meses.

A agenda que se segue deveria passar por três pontos essenciais:
1 - Libertar o país do Estado ineficiente e pouco produtivo.
Ainda há muita falta de racionalidade em várias áreas do Estado. Entidades que não fazem sentido, metade do Estado a trabalhar para a outra metade, papéis a mais, processos com um desenho do tempo do "papel selado", demasiada transpiração e pouca inspiração. A reforma do Estado ainda está por fazer e terá de passar por uma política de gestão de pessoas que promova o prémio do mérito a quem o tem. Esse é um respeito que é devido aos contribuintes, uma vez que os desperdícios do Estado são pagos com os impostos de todos.

2 - Libertar o Estado dos interesses corporativos e privados que se sentam à mesa do orçamento.
O que se passou com algumas parcerias-público privadas, com as célebres rendas da energia, com benefícios fiscais que se mantêm para grandes grupos económicos sabe-se lá porquê e com a desgraça que foi o suposto desenvolvimento baseado no betão e na construção civil, serviram essencialmente para transferir milhares de milhões de dinheiro dos contribuintes para empresas privadas. O mesmo se passa com as consultadorias de gestão, fiscais, informáticas ou legais que o Estado paga a peso de ouro. E também a captura que muitas corporações profissionais fazem da máquina e dinheiros públicos em áreas como a Justiça ou a Saúde. Não há país para alimentar tanta gente, tão bem paga e tão pouco escrutinada.

3 - Libertar consumidores e empresas dos abusos de monopólios e de posições dominantes em vários sectores.
Energia cara, combustíveis caros, telecomunicações caras, portagens caras, contratos leoninos entre a grande distribuição e os seus fornecedores... Os accionistas e gestores são sempre muito liberais quando falam do Estado e do sector do vizinho. Mas quando toca à própria empresa, tudo fazem para evitar a concorrência e para abusar das posições dominantes que mantêm. A asfixia de muitas PME não acontece apenas pela carga fiscal e burocrática. Muitos fornecimentos de serviços básicos são feitos também com uma transferência ilegítima de recursos para os "grandes".


Pois é, esta é a agenda difícil, que não se resolve num Conselho de Ministros com mais um aumento do IVA. É a agenda que pode mexer a sério com interesses instalados e muito bem organizados. Tão bem organizados que ajudaram a trazer o país ao ponto em que estamos. Mas sem ela tudo isto poderá ter sido em vão.

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