Daniel Oliveira
8:00 Segunda, 5
de Maio de 2014 in
EXPRESSO online
"O dia
inicial inteiro e limpo/Onde emergimos da noite e do silêncio/E livres
habitamos a substância do tempo". Não há página de facebook e coluna de
opinião que, nos 40 anos do 25 de abril, não tenha citado o poema de Sophia de
Mello Breyner. Apesar da sua beleza, até ao enjoo. Mas a excitação eleitoral do
PSD está em tal estado e a capacidade de construir realidades virtuais é tanta
que ainda o vou ver adaptado a este momento histórico, para celebrar a saída
inteira e limpa, onde emergimos da noite e da dívida, e livres habitámos um
Portugal renascido. Imagino que 17 de maio poderá vir a ser feriado e Passos
Coelho até sussurrou uma inimaginável comparação com o 25 de abril.
Em Beja, o PSD já
tinha feito a ilustração gráfica da intervenção de Passos Coelho. Mandou
colocar um cartaz com um grande cravo ao lado, onde se rezava assim: "Ditadura nunca mais! Espírito de abril,
sempre! Devolver Portugal aos portugueses! Adeus troika." Apesar do excesso de pontos de exclamação e
da evidente adaptação do discurso ao target local, o cartaz corresponde à
narrativa do PSD para esta campanha eleitoral: graças a este governo, estamos
finalmente livres da troika. Foi um mal necessário, a culpa não foi do PSD, mas
agora o futuro é nosso de novo.
Como diria
Rodrigues dos Santos, fui aos "meus arquivos". E nos meus arquivos
encontrei isto: "A mudança, hoje, está facilitada por aquilo que é o
programa de ajustamento da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional. Está
muito facilitada porque aquilo que eu tenho vindo a dizer que é preciso fazer
está, em parte, neste documento. (...) De certa maneira o PSD ganhou um aliado,
que foi o programa de ajustamento. (...) O nosso programa vai muito para lá do
programa da troika, é verdade." Quem o disse foi Pedro Passos Coelho, a 28
de maio de 2011, ao Expresso. A troika não foi um pesadelo de que nos
despedimos. Para o primeiro-ministro foi uma aliada desejada. Não para
financiar o País, mas para aplicar parte do programa que ele defendia. Não vale
a pena, por isso, reescrever a história.
Ontem assistimos
a mais um momento de extraordinário desfasamento com a realidade, em que o governo
finge que decidiu alguma coisa sobre a forma como terminamos esta primeira fase
de intervenção externa. O assalto aos contribuintes ganha um novo impulso. Mas
vende-se a teoria do princípio do fim da crise. Portugal estará sob vigilância
até pagar 75% do montante recebido, o que atira o protetorado até 2037. Mas
festeja-se a libertação. O Tratado Orçamental (também aprovado pelo Partido
Socialista) impede qualquer autonomia política e financeira. Mas Portugal
voltou a ser governado pelos portugueses.
E tudo isto com
uma "saída limpa". Ou a saída não é limpa e teremos apoios cuja
clarificação fica para depois das europeias, para não acordar os discursos
populistas no norte da Europa. Ou é limpa seguida de cautelar, o que faz disto
um mero intervalo. Ou é mesmo limpa, e iremos pelo cano ao primeiro susto dos
mercados com qualquer coisa que aconteça na Europa ou no Mundo. O que aqui digo
não é novo. Já em setembro do ano passado escrevia que "entre o segundo resgate e o suposto
regresso aos mercados venha o Diabo e escolha" . Olhem para a folha de
pagamentos até 2023. Olhem para os dados da nossa economia. Vejam os
constrangimentos a que a Europa nos obriga. Agora imaginem um qualquer abalo
político na Europa que faça disparar as taxas de juro. Privados de todos os
instrumentos que nos possam defender, ou a Europa está disponível para intervir
rapidamente, ou ficaremos como ficámos em 2011. Talvez um pouco pior, porque
estamos muito mais endividados e economicamente mais frágeis.
As taxas de juros
muito baixas, que nos estão a ser cobradas, não atestam da nossa boa saúde
económica e financeira. A 10 de abril, a Grécia, que está no estado em que
está, colocou no mercado 3 mil milhões de euros de dívida. Teve uma procura
sete vezes maior. O tesouro grego conseguiu ficar abaixo dos 5% que estavam
previstos. Juros impensáveis há muito pouco tempo. Está a sair da crise, diz-se
por lá. Quer saída limpa. E qualquer pessoa que olhe com o mínimo de seriedade
para a situação grega só pode lamentar tanto engano. Não está a acontecer só na
Grécia e em Portugal. Repete-se em Itália, Espanha, Irlanda. Todos estão a
conseguir mínimos históricos para os juros das suas dívidas. Porque parece
estar a crescer uma bolha especulativa com as dívidas soberanas dos países
periféricos. Os mercados, com excesso de liquidez, estão em fuga das economias
emergentes e é para aqui que por agora decidiram vir. O "Economist"
avisa que "as economias do sul da
Europa estão em pior forma do que sugere a queda das yields das
obrigações" e todos se devem
preparar para a possibilidade de acontecer a esta bolha o que aconteceu a todas
as outras: não tendo relação com a realidade económica, acaba por rebentar.
Não é de agora
que as nossas taxas de juro têm pouco a ver com o que por aqui se passa. As
variações de juros dos vários países europeus em crise têm sido, tirando alguns
picos momentâneos de cada uma delas, paralelas. Os juros da dívida a dez anos
desceram entre maio de 2012 e maio de 2013, ao mesmo tempo que todas as metas
definidas no memorando falhavam. Desceram a partir de maio de 2012 porque o BCE
deixou claro que faria tudo para garantir a coesão da zona euro e anunciou as
OMT. Terão subido, a partir de maio de 2013, talvez por causa do anúncio
falhado de que a Reserva Federal Americana poderia diminuir o ritmo de compra
de títulos. Não faltou quem atribuísse essa subida à crise política causada por
Paulo Portas e à decisão do Tribunal Constitucional relativa ao Orçamento de
Estado. Só que a crise política, que apanhou quase todos de surpresesa, foi em
julho e o aumento dos juros em maio. A decisão do Tribunal Constitucional sobre
o orçamento foi em abril. Os juros das dívidas continuaram, impassíveis, a cair
depois disso. E quando, um mês depois, subiram, subiram em Portugal, Espanha e
Itália. O mesmo aconteceu com a decisão do Tribunal Constitucional de dezembro
do ano passado. Em vez dos efeitos terríveis que governo e a troika previam, as
taxas de juro continuaram, imperturbáveis, a descer.
Claro que os
contratempos internos podem ter e até já tiveram alguns efeitos na volatilidade
diária das taxas de juros. Mas são marginais e pouco relevantes. O que conta é
a Europa e o mundo. Era isso que eu escrevia
quando os juros subiam , é isto que escrevo quando eles descem.
Não tendo mudado nada
de fundamental, a não ser as taxas de juro, esta "saída limpa" ou é
um engodo ou é um salto no escuro. E tem razões políticas europeias. Uma delas
foi dada por Olli Rehn, nesta campanha eleitoral. O comissário finlandês, agora
candidato, atacou o governo do seu país por empurrar vários países para
"saídas limpas". Helsínquia terá exigido, há dois anos, garantias
extraordinárias (colateral) dos países que recebem apoios. Disse então o
comissário: " O pedido de colateral da Finlândia teve um impacto negativo
na decisão da Irlanda e está a ter um impacto negativo na decisão de Portugal. (...)
Para estes países é na prática politicamente mais sensato operar uma saída
'limpa' do programa, mesmo se é economicamente mais arriscado" . São
coisas como estas, e não a brilhante situação portuguesa, que determinam a
"saída limpa". O programa cautelar advinhava-se, para satisfazer o
discurso dominante no norte da Europa, demasiado ruinoso para Portugal. É por
isso que a nossa saída é limpa e no governo se fala de um cautelar, caso
aconteça o pior. É isto e estarmos em vésperas de eleições. Ninguém, no norte
da Europa, quer negociar mais programas. É que, ao contrário do que algumas
pessoas mais ingénuas gostam de acreditar, o eleitoralismo está longe de ser um
exclusivo nacional.
Tirando as taxas
de juro, que, como aqui expliquei, pouco ou nada têm a ver com a nossa situação
concreta e interna, e a balança comercial, que resulta sobretudo dos brutais
efeitos da crise no consumo e nas importações, tudo o que é fundamental ou está
na mesma ou ficou pior. A nossa situação económica, que se degrada desde que
entrámos no euro, piorou nos últimos anos. Apesar de, numa descarada mentira,
Passos Coelho ter dito ontem que o crescimento da dívida está estancado, a
nossa dívida pública cresceu de 90% do PIB para 130%. A nossa dívida externa
(privada e pública) continua a ser o mais grave dos nossos problemas e não se
começou a resolver. O nosso sistema produtivo continua a ter os mesmos atrasos
estruturais. Apenas estamos a viver muito pior. O euro continua a ter os mesmos
problemas que tinha para a Europa em geral e para os países periféricos em
particular. Sim, a banca alemã e francesa livrou-se da nossa dívida. Os bancos
portugueses, quase todos virtualmente falidos, tiveram um balão de oxigénio. Às
cavalitas desta intervenção, um grupo de fanáticos encontrou, nas suas próprias
palavras, uma importante aliada na troika. Só para eles
a saída terá sido limpa.
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