quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Críticas à falta de visão de conjunto e à actuação da Câmara de Lisboa



Críticas à falta de visão de conjunto e à actuação da Câmara de Lisboa
O vereador Manuel Salgado diz que os pedidos de informação prévia “estão suspensos” e assim continuarão até haver um programa de salvaguarda e regeneração para a Colina de Santana
Inês Boaventura / 5 fev 2014 / Público

A Câmara de Lisboa esteve ontem debaixo de fogo naquele que foi o terceiro debate promovido pela Assembleia Municipal sobre a Colina de Santana. Ao longo de três horas, muitas foram as vozes que criticaram a forma como o município conduziu este processo e também a falta de uma visão de conjunto para esta zona da cidade.

“Este processo foi feito do fim para a frente. Foi mal conduzido”, acusou Helena Roseta, ex-vereadora da equipa de António Costa e actual presidente da assembleia municipal, eleita pelo movimento Cidadãos por Lisboa na lista do PS. Antes dela, também o seu ex-colega de vereação Fernando Nunes da Silva tinha criticado aquilo que considerou ser “a inversão completa do processo de planeamento”.
O deputado municipal lamentou que a Câmara de Lisboa só tenha elaborado o chamado Documento Estratégico de Intervenção depois de a Estamo, a imobiliária de capitais exclusivamente públicos, ter apresentado os pedidos de informação prévia relativos à realização de operações de loteamento dos terrenos dos hospitais de Santa Marta, Capuchos, São José e Miguel Bombarda.
Nunes da Silva considera que os projectos arquitectónicos em causa são “de grande qualidade”, desde logo porque “não só mantêm o património como o valorizam”. Ainda assim, o deputado teme que aquela que podia ser “uma oportunidade para corrigir os problemas” existentes na Colina de Santana, por exemplo ao nível das acessibilidades, seja “desperdiçada em nome de problemas de contabilidade financeira entre entidades do Estado”.
No debate, as críticas ao município foram generalizadas, quer por parte dos oradores convidados, quer por parte daqueles na assistência que se inscreveram para participar. O facto de a Câmara de Lisboa não ter optado pela realização de um instrumento de gestão territorial como um plano de pormenor foi um dos aspectos em discussão, tendo vários intervenientes deixado no ar a pergunta sobre qual teria sido o instrumento mais adequado.
Mário Moreira, um dos membros do painel deste debate, frisou que essa “fuga aos instrumentos de planeamento” retira peso à participação popular, mas também à própria assembleia municipal. O arquitecto considerou que as propostas apresentadas pela Estamo poderão constituir “bolsas de requalificação”, mas questionou se estas não estarão “divorciadas da envolvente”, em nada contribuindo para a sua transformação.
Já o arquitecto João Cabral alertou para o risco de se estar a apostar na concretização de “intervenções muito sectoriais”. É preciso, defendeu o professor associado da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, “um instrumento que junte as peças todas”, como um Programa de Acção Territorial ou a delimitação de uma Área de Reabilitação Urbana.
Também Cristina Bastos sublinhou a necessidade de se olhar para a Colina de Santana “como um todo e não um somatório de intervenções individuais”. A antropóloga afirmou ainda temer que nesta zona da cidade se venham a verificar casos como o do Convento dos Inglesinhos, no Bairro Alto, onde se promoveu o restauro do edificado mas ao mesmo tempo se “esvaziou” a vida que nele existia.
A última oradora convidada, a geógrafa Teresa Barata Salgueiro, considerou “inevitável” que os projectos arquitectónicos em causa se vão traduzir numa gentrificação. “É preciso garantir que também se faça a reabilitação das zonas de intervenção prioritária e que se possa manter a população mais idosa e com menos possibilidades”, frisou.
Quem também se inscreveu para intervir no debate foi o vereador do Planeamento, Urbanismo e Reabilitação Urbana da Câmara de Lisboa, que disse estar “em total desacordo” com a ideia de que a metodologia seguida neste processo foi “errada”. Manuel Salgado sublinhou que os pedidos de informação prévia “estão suspensos” e adiantou que assim continuarão até que seja aprovado um programa de salvaguarda e regeneração urbana, envolvendo o município, a Estamo e a Universidade de Lisboa.


Vice-presidente da assembleia municipal alerta para riscos

A vice-presidente de Assembleia Municipal de Lisboa entende que o município não deve aprovar os pedidos de informação prévia existentes para a Colina de Santana sem ter a garantia de que as operações de loteamento previstas não põem em causa a segurança dos prédios desta zona e de quem lá vive. Até porque, alerta Margarida Saavedra, muitos desses imóveis sofrem de patologias decorrentes do abatimento das fundações.
“É como uma cómoda à qual falta um pé”, explica a arquitecta aos jornalistas, durante uma visita pelas ruas estreitas e inclinadas da Colina de Santana. Ao longo do percurso, entre o Rossio e o Hospital de S. José, Margarida Saavedra vai apontando as patologias de que fala: fachadas cobertas de fendas verticais, paredes com “barrigas”, portas e varandas inclinadas e aros de janelas partidos, entre outras.
“Quase todos os edifícios, em maior ou menor grau, apresentam estas patologias”, constata, acrescentando que tal “indica um assentamento das estruturas, indica que pelo menos uma das fundações abateu”. E, sublinha Margarida Saavedra, nem edifícios recentemente reabilitados escapam a esse mal.
“Quando isto acontece em edifícios sucessivos, significa que toda a zona está com problemas abaixo do solo”. A responsável, do PSD, entende que a câmara deve determinar “a execução imediata de um plano de salvaguarda, pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil ou pelo Instituto Superior Técnico”.
Saavedra sublinha a importância de isso acontecer antes de o município dar luz verde aos quatro pedidos de informação prévia apresentados pela Estamo, a imobiliária de capitais públicos que é proprietária dos terrenos dos hospitais de Santa Marta, Capuchos, S. José e Miguel Bombarda. “Uma vez aprovados, concedem direitos ao proprietário”, lembra, afirmando que “a câmara não deve assumir compromissos sem ter a garantia de que a Colina não vai sofrer consequências”. A arquitecta acredita que será necessário, antes da realização de qualquer intervenção naqueles terrenos, que o município promova “uma obra de reforço estrutural”.
Quanto ao fecho dos hospitais e à sua concentração em Marvila, a arquitecta diz que é fundamental que se pesem os seus custos e benefícios e que se avalie se as propostas da Estamo vão ou não contribuir para a “revitalização” da zona.

I.B.

CÂMARA QUER, AFINAL, INTERVIR MAIS NA COLINA DE SANTANA

O vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa (CML), Manuel Salgado, anunciou, no final da tarde desta terça-feira, uma mudança da postura da autarquia face à mega-urbanização prevista para a Colina de Santana. O município terá maior peso nas mudanças em perspectiva, promete. E anunciou que foi suspensa a apreciação dos Pedidos de Informação Prévia que a Estamo apresentou, no ano passado, à câmara para iniciar os processos de loteamento dos terrenos dos hospitais de São José, Capuchos, Miguel Bombarda e Santa Marta.
Numa intervenção que não estava prevista, no terceiro dos cinco debates organizados pela Assembleia Municipal de Lisboa sobre a grande operação montada para a colina entre as avenidas da Liberdade e de Almirante Reis, o ex-número dois da CML, aparentemente reagindo ao coro de críticas ouvido nas três sessões, defendeu uma intervenção urbanística assente num “programa consertado” entre a Câmara, a Universidade de Lisboa e o dono dos grandes conjuntos a lotear, a empresa de capitais públicos Estamo.
Caso a negociação seja bem sucedida, a intervenção nesta área deverá ser coordenada por um gabinete próprio e ter como instrumento de ordenamento um Plano de Acção Territorial (PAT), defendeu o vereador que chefia o pelouro do Urbanismo. Seria neste quadro que se aplicaria um “plano de salvaguarda” para a Colina de Santana, explicou. Salgado considerou que o facto de áreas tão grandes – cerca de 15 hectares, para onde estão projectados 700 novos fogos – estarem nas mãos de um único dono “é uma oportunidade”, que deve ser aproveitada pelo município.
O autarca disse ainda que é urgente tomar uma posição. E, para o provar, deu um exemplo. O Hospital de Arroios já foi vendido pela Estamo – Participações Imobiliárias, em 2004, encontrado-se o edifício degradado e desaparecidos os seus azulejos do século XVIII. Depois disso, houve uma tentativa falhada de vender o Hospital do Desterro.
Nesta terceira sessão de debates – dedicada ao tema do impacto urbanístico, social e habitacional da operação imobiliária –, foram retomadas as críticas ao município por ser levado a reboque de um processo que “começou ao contrário, do fim para o princípio”, nas palavras de Helena Roseta, presidente da Assembleia Municipal. Já Fernando Nunes da Silva, ex-vereador de António Costa no mandato anterior e agora deputado da assembleia eleito nas listas socialistas, criticou o que vê como o exemplo de “uma inversão completa do planeamento”.
Como foi repetidamente referido nesta terça-feira, o documento de estratégia municipal para a Colina de Santana foi elaborado muito depois dos projectos dos loteamentos e, mesmo ele, colhe em seu redor reticências abrangentes à operação urbanística.
O fecho dos hospitais da zona, em nome do financiamento do futuro Hospital de Todos os Santos, em Marvila, que não se sabe quando abrirá, e o loteamento dos seus terrenos foram assim resumidos por Helena Carqueijeiro, uma arquitecta residente na zona: “Quer-se fazer uma substituição do espaço público pelo privado”. Para mostrar como os planos da Estamo são um conjunto de projectos isolados, a que falta uma visão integrada que contemple uma melhoria dos bairros da colina, acrescentou que, neles, “não há propostas concretas que venham melhorar a vida das pessoas. Bastava propor uma estação ou uma ligação ao Metropolitano”, disse.
A proposta da empresa poderá conseguir “bolsas de requalificação”, mas desligadas da envolvente, disse, por outro lado, um membro do painel de oradores convidados, Mário Moreira, arquitecto.
A requalificação do edificado existente é urgente, a julgar pela intervenção da deputada municipal e ex-vereadora Margarida Saavedra (PSD). Disse ela que, nos estudos divulgados pelo dono dos terrenos, não se conhecem referências ao risco sísmico da colina, quando os cerca de 550 edifícios em mau estado, e nomeadamente os da Calçada de Santana, mostram indícios de assentamento das fundações em resultado de movimentos deslizantes de terras. “É preciso um plano de salvaguarda para estas habitações”, avisou.
“Isto vai contra o interesse público”, acusou, a dada altura, o responsável da secção de Ordenamento do Território da Sociedade de Geografia de Lisboa, Pompeu dos Santos. Este engenheiro começou por dizer que o argumento dos “custos elevados” dos hospitais ainda por fechar peca por ter sido o próprio Estado a aumentar os gastos, quando os vendeu à Estamo e se obrigou a pagar-lhe rendas de seis milhões de euros por ano. Nos três minutos que lhe couberam, disse ainda que não há estudos credíveis que digam ser melhor substituir os actuais hospitais da zona por um novo.
Argumenta-se – acrescentou Pompeu dos Santos – “que estão velhos, mas no seu sítio já podem surgir hotéis ou casas novas. Por que não fazer, então, obras nos hospitais existentes?”, perguntou. E defendeu a “suspensão imediata dos processos de licenciamento” [dos quatro hospitais] entregues da Câmara, a anulação do processo de construção do novo hospital e um inquérito para “identificação de eventuais irregularidades” no polémico rearranjo da estrutura hospitalar de Lisboa.
O deputado municipal comunista Modesto Navarro (PCP) chamou-lhe “uma tramóia” congeminada com o Governo para fazer dinheiro e baixar o défice. E perguntou se o que a CML quer é “a expulsão dos actuais moradores” e “construção de condomínios de luxo, hotéis de charme e silos-auto”.
O debate voltou a mostrar que há a ideia de que a intervenção pensada para a colina vai servir os ricos e esquecer os pobres. Os trabalhos encomendados pela Estamo não o afirmam de forma tão simples, mas falam em criar, no espaço do Miguel Bombarda, por exemplo, “uma vivência urbana de excepção”.
A previsível gentrificação da Colina de Santana, a sua maior diversificação social “não é negativa, aliás até será necessária ao financiamento dos projectos”, ressalvou a geógrafa Teresa Barata Salgueiro, oradora convidada para este debate. Sem esquecer a reabilitação urbana e as necessidades dos que já lá estão, completou. “Há que aproveitar a deslocalização dos hospitais” e “pode começar-se pelos dois ou três que já estão fechados”, sugeriu.

Texto: Francisco Neves          Fotografia: Samuel Alemão

Sem comentários: