OPINIÃO
Operação de encenação e coreografia
As pessoas convidadas para o Governo não são “candidatas”
a coisa nenhuma. São escolhidas por quem de direito. E não devem ser obrigadas
a responder a questionários arbitrários e intrusivos.
António Barreto
14 de Janeiro de
2023, 6:10
https://www.publico.pt/2023/01/14/opiniao/opiniao/operacao-encenacao-coreografia-2035040
Pelos vistos, foi
criado um “mecanismo de escrutínio dos governantes” e foi elaborado um
“questionário de verificação prévio dos candidatos”. Pasme-se!
O que se tem
passado com as nomeações e demissões do Governo, e agora com a criação deste
“mecanismo”, deixa toda a gente assustada. Sejam os políticos culpados, com
receios, ou os inocentes, com inquietação. Mas também cidadãos comuns. Entre
estes, os que não acreditam nestes expedientes para desresponsabilizar quem
escolhe. Os que imaginam que se trata de mais uma praxe para tornar a política
uma actividade esotérica e reservada a uma elite partidária. Os que pensam que
esta coreografia serve para restaurar uma virgindade perdida. Os que imaginam
que estas regras servem para delimitar o que se pode fazer para escapar.
Verdade é que
nada nem ninguém parece inocente. A começar pelo facto tão simples de que este
procedimento desautoriza as instituições. O que se inventou é um prodígio de
encenação. O Governo aprova um questionário que pretende aplicar sem que tenha
força de lei. Enumeram-se dúzias de perguntas, deixando de fora dezenas.
Preparam-se para fazer as perguntas por escrito, pedindo uma resposta de igual
teor, mas cujo conteúdo fica privado, sem que se aceite o princípio de que os
documentos deste género são necessariamente públicos. Nada justifica o
secretismo. Se são invocadas a intimidade e a privacidade, os documentos não
deveriam existir. Se o argumento é o interesse do Estado, então é mentira.
Tanto a linguagem
oficial como os comentários jornalísticos mencionam, em maioria, os
“candidatos” a lugares do governo. Eis mal-entendido típico de falsos beatos.
As pessoas convidadas para o Governo não são “candidatas” a coisa nenhuma. A
decisão não é deles. O processo não é aberto. Não há vários candidatos ao mesmo
lugar. As posições em causa não estão a concurso. As pessoas são seleccionadas,
escolhidas e nomeadas por quem de direito. Caso aceitem, as pessoas
seleccionadas deveriam submeter-se a procedimentos institucionais definidos
pela lei e não serem obrigados a responder a questionários arbitrários e
intrusivos.
Percebe-se o
entendimento dos autores deste questionário. O que está em causa é dinheiro.
Dinheiro público nacional e europeu. Dinheiro e subsídios a obter. Facilidades
para vender. Deveres para comprar. Lucros para amealhar. Maneira de receber
dinheiro através de isenções, favores e procedimentos de legalidade duvidosa e
aparência legal. Uma só palavra: dinheiro.
Quer isto dizer que os autores deste mecanismo, assim como os que com ele concordam, não consideram mais nenhum gesto condenável ou acto que diminua as capacidades do seleccionado, aqui tratado por candidato. Ganhar dinheiro abusivamente parece ser o primeiro e último pecado. Nada é mais grave. Noutras palavras, é a principal razão pela qual se é castigado e se perde a capacidade para exercer cargos públicos. Parece pouco. Para além de crimes, há muito mais, não declarado e não em processo de justiça, que deveria ser considerado.
A violência
doméstica deveria contar: bater na mulher, nos pais ou nos filhos. O abuso de
menores também. O uso de violência junto de amigos deveria figurar na lista. O
insulto e a calúnia também. Acidentes de viação não ficariam fora. Atentados
contra a liberdade de outrem também não. Atitudes racistas. Pensamentos
fascistas. Simpatias terroristas. Afinidades comunistas. Tudo deveria ser
analisado pelo primeiro-ministro.
A violência
doméstica deveria contar: bater na mulher, nos pais ou nos filhos. O abuso de
menores também. Acidentes de viação não ficariam fora. Atitudes racistas.
Pensamentos fascistas. Simpatias terroristas. Afinidades comunistas
Com o andar dos
tempos e com as novas ortodoxias, devemos ainda estar preparados para novas
exclusões, isto é, para mais motivos de exclusão da vida política. A frequência
de touradas, o consumo de álcool e tabaco, o uso de haxixe e outras
substâncias, algumas preferências sexuais, assim como o abuso de alteradores de
consciência deverão ser devidamente declarados ou sobre eles devem ser
recolhidas informações adequadas.
Apesar da fúria
regulamentadora, ficam de fora múltiplos rendimentos que não se percebe se
estarão abrangidos. Que dizer de direitos de autor relativos a obras de arte,
peças de música, livros, artigos de jornal, ensaios, conferências e sermões?
Podem ser trazidos à colação? De que modo comprometem o futuro ou o pretérito
governante? Que dizer de prémios de concursos e lotarias? E as bolsas de estudo
obtidas pelo próprio ou por seus familiares: que vínculos criam com a
actividade do seleccionado?
O mais complicado
parece ser o que fazer com a cunha. O empenho. O favor. O jeitinho. Como se
pode castigar quem mete cunhas, quem aceita, quem beneficia e quem favorece
outros através de cunhas? E que consequências pode ter para um político, hoje,
uma cunha que meteu ou de que beneficiou há dois anos? Ou dentro de dois anos
uma cunha que um político meteu quando ainda o era?
Como olhar para
as nomeações? Do próprio ou de outros. Dos amigos, correligionários e
familiares? As nomeações, da conveniência de serviço à confiança política, são
a forma mais corrupta e mais corruptora do exercício do poder político. É
possível que sejam mais danosas para a sociedade e para a democracia do que
muitos gestos que envolvem directamente rendimentos pecuniários. Como agir,
nestes casos? Como elaborar questionários? Que perguntas devem ser feitas aos
seleccionados aqui designados por candidatos?
O autor é
colunista do PÚBLICO
Sociólogo


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