INVESTIGAÇÃO
INVESTIGAÇÃO
PÚBLICO
13 de Maio de 2022: Registos Centrais foram pressionados
a dar nacionalidade a Abramovich com urgência
Comunidade Israelita do Porto invoca “interesse nacional”
que envolve o próprio Governo para apressar naturalização do oligarca russo
pela Conservatória dos Registos Centrais. Num e-mail enviado à direção do
organismo é referida reunião com Pedro Siza Vieira, anterior ministro da
Economia.
Paulo Curado
13 de Maio de
2022, 6:30
Motivos de
“interesse nacional” que “envolvem o próprio Governo”, a B’nai B’rith
Internacional – a maior e mais antiga organização judaica mundial – e um grupo
de judeus sefarditas portugueses “listados na Forbes” foram invocados pela
Comunidade Israelita do Porto (CIP) para convencer a direcção da Conservatória
dos Registos Centrais (CRC) a tramitar com urgência o processo de naturalização
de Roman Abramovich. A pressão teve o efeito desejado e em três meses o
oligarca tornou-se o português mais rico do mundo, com o aval do Ministério da
Justiça (MJ), Polícia Judiciária (PJ), Serviço de Estrangeiros e Fronteiras
(SEF) e Serviços de Informações de Segurança (SIS) do Estado.
“Dado o aumento
brutal do antissemitismo na Europa e a certeza de que a informação seguinte
causaria manchetes e clamores contra os judeus, como ensina a história judaica
em território europeu, pedimos a V. Exa. que tome todas as providências para
que a dita informação não caia jamais em praça pública”, alertou a direcção da
CIP num e-mail enviado a Maria de Lurdes Serrano, directora da CRC, a 3 de
Fevereiro de 2021, a que o PÚBLICO teve acesso. O assunto que exigia tanto
sigilo era a nacionalidade de Roman Abramovich. A conservadora viu ser-lhe
aberto um processo disciplinar na sequência de um inquérito ordenado pela
direcção do Instituto dos Registos e Notariado (IRN).
O processo do
multimilionário entrou discretamente na CRC, em Lisboa, a 14 de Outubro de
2020, mas não registou qualquer diligência até ao início de Fevereiro do ano
seguinte. A lidar com dezenas de milhares de pedidos idênticos – 86.680 entre
Março de 2015 e final de 2020 –, o serviço central do IRN não tinha capacidade
de resposta, muito menos de forma célere, aos requerentes que aproveitaram a
oportunidade aberta pela Lei da Nacionalidade para descendentes de judeus
sefarditas, expulsos de Portugal a partir do final do século XV.
Inconformada com
a situação de estagnação processual de um dos seus grandes “benfeitores”, a
direcção da CIP puxou dos galões e da sua influência nacional e internacional.
Solicitou que fosse “proferida a declaração de urgência” no pedido de
Abramovich ou, em alternativa, a transferência do processo para a Conservatória
do Porto onde, segundo afirmava, a tramitação “demora cerca de dez meses”, ao
contrário de Lisboa, onde “em regra demoram 30 meses”.
A CIP garantia
estar a agir “apenas por razões de interesse nacional, que envolvem o próprio
Governo, a B’nai B’rith Internacional e um conjunto de sefarditas portugueses
que estão listados na Forbes e não precisam de Portugal para ‘ganhar’ dinheiro,
para fazer ‘negócios’ ou para outras ‘conspirações’”. A comunidade judaica
portuense, a quem o Estado delegou competências para certificar os descendentes
de judeus sefarditas – a par da Comunidade Israelita de Lisboa (CIL) –,
imprescindível para a obtenção da nacionalidade, usa mesmo o nome do anterior
ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, para reforçar o seu pedido.
“Em Junho de
2021, Sua Excelência o Ministro da Economia será convidado para ser o orador
num evento internacional anual da BBI [B’nai B’rith Internacional] que terá
como oradores os judeus de origem portuguesa Michael Kadoorie (nascido na
China), Roman Abramovich (nascido na Rússia) e Jacob Safra (nascido nos EUA)”,
sublinham, revelando ainda um encontro anterior entre elementos da direcção da
CIP e Pedro Siza Vieira no Ministério da Economia, a 16 de Setembro de 2020,
“com vista a eventuais investimentos estratégicos em Portugal por parte de
judeus de origem portuguesa”.
“Ao longo da
referida reunião esteve bem presente o projecto do conselheiro do Governo Dr.
António Costa e Silva [gestor e consultor e autor da proposta original para o
Plano de Recuperação e Resiliência, que substituiu recentemente Siza Vieira na
pasta da Economia], que a CIP contactou pessoalmente”, descrevem. Um dia antes,
a comunidade já se tinha reunido com Rui Moreira, presidente da Câmara
Municipal do Porto, “com vista a eventuais investimentos estratégicos em
Portugal por parte dos já referidos judeus de origem portuguesa”.
Para concluir, a
CIP enaltecia os méritos da lei que concedeu a possibilidade de nacionalidade a
descendentes de judeus sefarditas. “Em apenas cinco anos, a lei teve como
efeitos um maior prestígio internacional de Portugal, o crescimento e
reorganização da comunidade judaica portuguesa em geral, investimentos de
milhares de milhões de euros dos sefarditas na economia nacional”, destacou.
Na documentação
de suporte enviada pela comunidade está incluída uma outra carta da B’nai
B’rith International também dirigida à directora da CRC, assinada por Charles
O. Kaufman, presidente desta organização que está representada na ONU através
do Conselho de Coordenação de Organizações Judaicas.
Dívida com Abramovich
“Quero que saiba
que estamos em dívida com Roman Abramovich, Michael Kadoorie e Jacob Safra como
benfeitores para a nossa comunidade em Portugal [a B’nei B’rith Portugal,
presidida por Gabriela Cantergi, membro da direcção da CIP]. São membros da
B’nai B’rith International, a voz global para o povo judeu desde 1843, e
cidadãos portugueses repatriados”, refere Charles O. Kaufman: “Eles estão a
colocar a sua fé em Deus e em Portugal para cultivar uma renovação da grandeza
e glória mais ampla do país. Em Portugal ensinarão aos jovens líderes os
valores universais do serviço e da cidadania ao lidar com os desafios de um
mundo moderno e complexo.”
Antes de apelar à
conservadora Maria de Lurdes Morgado para se associar a este “empreendimento”,
Kaufman faz um enquadramento humanista da lei dos sefarditas. “Os líderes
portugueses, incluindo os da Igreja, procuraram a redenção, na criação de um
caminho legal – uma forma de acolher de volta pessoas dispersas de ascendência
portuguesa”, explica. “Para que a humanidade dê frutos e cresça como as árvores
fortes, eles [descendentes de sefarditas] devem ser acolhidos; devem ser
nutridos”, sugere.
Urgência absoluta
Perante tão
poderosa argumentação, a directora do CRC responde ao e-mail da CIP no dia 8 de
Fevereiro, garantindo que o pedido de Abramovich “não demorará mais de dez
meses” e informando que o tempo médio indicado pelo serviço para a tramitação
de um processo de nacionalidade (24 a 29 meses) pretende evitar apenas “os muitos
pedidos de e-mail sobre o estado do processo ao fim de um ou dois meses após a
sua entrada”. E, sem qualquer justificação aos restantes elementos da CRC,
determinou que o processo passava a ser “urgente”.
Celeridade na PJ, SEF e Justiça
Tudo correu com
grande celeridade a partir desse momento e até o pedido ter sido deferido pela
anterior secretária de Estado da Justiça, Anabela Pedroso, a 13 de Abril, passo
decisivo para a concessão da nacionalidade, que veio a verificar-se no dia 30
de Abril, como foi revelado por uma investigação do PÚBLICO, em Dezembro do ano
passado.
No dia 16 de
Fevereiro, foi comunicado à advogada portuguesa que representou Abramovich a
recepção do processo, solicitando-se logo de seguida informações à PJ, SEF e
Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ). Este é um procedimento legal
que se estende a todos os candidatos à obtenção da nacionalidade portuguesa:
estas autoridades podem (ou devem) consultar outras entidades que considerem
necessárias em Portugal e no estrangeiro, assim como serviços e forças de
segurança.
Em Junho de 2017, as autoridades suíças recusaram um
pedido de residência a Abramovich declarando-o “uma ameaça à segurança pública
e um risco à reputação” do país que o viesse a acolher. Nada disto foi tido em
conta na avaliação das polícias portuguesas
Normalmente, esta
é uma das fases mais demoradas do processo da nacionalidade. A PJ e o SEF têm
30 dias para responder, podendo o período prolongar-se até 60 dias, se houver
motivo que o justifique. Na maioria dos casos estes prazos são ultrapassados,
como confirmaram ao PÚBLICO vários advogados que trabalham habitualmente com
estes processos.
Não foi de todo o
caso de Roman Abramovich. A PJ respondeu logo no dia 17 de Fevereiro (apenas um
dia depois de a CRC confirmar a recepção do pedido do oligarca russo),
assegurando que, “após pesquisa na base de dados relativa a antecedentes
policiais/criminais”, não foi encontrado nada que pudesse inviabilizar o pedido
de naturalização. Um pouco mais de tempo demorou o SEF, que costuma consultar
também nestes casos o SIS. A 25 de Março de 2021, José Luís Barão, director
nacional adjunto do SEF, comunicou à CRC que nada constava que obstasse a
concessão da nacionalidade ao multimilionário.
O PÚBLICO
questionou as duas entidades sobre as diligências que foram feitas em relação
ao processo de Abramovich, nomeadamente se foram consultadas entidades externas
para formularem os seus pareceres. Em resposta, o SEF remeteu o assunto para o
IRN: “Quaisquer questões sobre a tramitação e decisão processual de pedidos de
naturalização devem ser suscitadas junto da entidade competente, o Instituto
dos Registos e Notariado.”
Menos lacónica,
mas igualmente pouco esclarecedora, foi a resposta da PJ. “Informa-se que, no
âmbito dos processos de atribuição da nacionalidade portuguesa, a actividade da
Polícia Judiciária limita-se à prestação de informações sobre a existência de
perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional, pelo envolvimento do
requerente em actividades relacionadas com a prática do terrorismo ou
actividades, nos termos previstos nos art.º 24.º-C e 27.º n.º 5, 6 e 7, ambos
do REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA [sic], constante do DL 237/A/2006,
de 14 de Dezembro”, informou a direcção nacional da polícia de investigação
tutelada pelo Ministério da Justiça.
Suíça recusa residência
Um caminho bem
diferente ao que foi seguido, por exemplo, pelas autoridades suíças, em Junho
de 2017, quando recusaram um pedido de residência a Abramovich declarando-o
como “uma ameaça à segurança pública e um risco à reputação” do país que o
viesse a acolher. No relatório da polícia federal, na sequência de um pedido
dos serviços de migração, é sublinhada a “suspeita de lavagem de dinheiro e
supostos contactos com organizações criminosas”, referindo-se ainda que os bens
do empresário seriam “pelo menos parcialmente de origem ilegal”.
A decisão
assumida por um país que tem a reputação de receber fortunas de estrangeiros,
independentemente da origem da riqueza, reflectia uma crescente cautela em
muitos países europeus (e também nos Estados Unidos) em relação a capitais
russos na posse de oligarcas com estreita relação com o Presidente Vladimir
Putin.
As autoridades
policiais e o Governo português também não tiveram em consideração a denominada
“Lista do Kremlin”, divulgada em 2018 pelo Departamento do Tesouro dos EUA,
onde eram listados os oligarcas e políticos russos com um papel significativo
na economia do país e alegadamente ligados ao poder em Moscovo, onde estava
incluído Abramovich. Nem mesmo a posição do Reino Unido ao anunciar, também em
2018, que não iria renovar o visto de permanência no país do ainda dono do
clube de futebol Chelsea.
A posição
britânica surgiu na sequência do duplo envenenamento do ex-agente secreto russo
Sergei Skripal e da sua filha, em Salisbury, na Inglaterra. Um crime atribuído
ao Governo de Putin (que sempre o negou) e que afectou substancialmente as
relações anglo-russas, já tensas após a anexação da Península da Crimeia, em
2014.
Já em 2011 e
2012, durante um julgamento, em Londres, que opôs Abramovich ao seu antigo
mentor, sócio e também oligarca russo Boris Berezovsky (que viria a ser encontrado
morto em 2013), foram conhecidos alguns detalhes sobre a forma como o agora
português mais rico do mundo forjou a sua fortuna, nos conturbados tempos das
privatizações da Rússia pós-comunista.
Apesar de a
sentença ter sido favorável a Abramovich, o empresário admitiria perante o
tribunal que recorrera a expedientes corruptos, nomeadamente ao pagar 10
milhões de dólares (9,5 milhões de euros ao câmbio actual) a Berezovsky para
este subornar um funcionário do Kremlin. A sua defesa garantiu que esta era a
realidade dos negócios feitos na Rússia naquele período.
A decisão do
Reino Unido acabou por levar o oligarca a antecipar-se e a solicitar a
nacionalidade israelita, que lhe foi concedida em Maio de 2018, permitindo-lhe
visitar o território britânico por curtos períodos.
No processo de
naturalização em Portugal, Abramovich apresentou os passaportes e os registos
criminais israelitas e russos, mas não assumiu ter residido por mais de 90 dias
(prazo a partir do qual qualquer requerente da nacionalidade tem de apresentar
igualmente o registo criminal) em qualquer outro país. O multimilionário não
assume, assim, ter residido em Inglaterra, nomeadamente após se tornar
proprietário do Chelsea, em 2003.

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