sexta-feira, 24 de junho de 2022

Salvar o Serviço Nacional de Saúde

 



OPINIÃO

Salvar o Serviço Nacional de Saúde

 

Quando se abrem as portas aos privados - e se estes as querem abertas – o SNS perde a sua vocação original: a de servir todos e de conseguir fazê-lo autonomamente. Temos então uma outra coisa.

 

Carmo Afonso

24 de Junho de 2022, 0:57

https://www.publico.pt/2022/06/24/opiniao/opiniao/salvar-servico-nacional-saude-2011153

 

O problema dos filmes que têm implícita uma ideologia, ética ou moral, é que ficamos com a sensação de que nos querem convencer de alguma coisa e, por isso, resistimos. Seria bom desligarem essa resistência quando virem um dos melhores documentários que vos posso recomendar: O Espírito de 45, de Ken Loach.

 

Não é ficção.

 

 

Corria 1945, o ano que marcou o final da Segunda Guerra. Durante este período prevaleceu a união, a prossecução do bem comum e a entreajuda. Foi um período extraordinário, sobretudo no Reino Unido. Disse o realizador: “Se conseguíamos planear campanhas militares, não conseguiríamos também construir casas, criar um serviço de saúde e um sistema de transportes, fazer o que era necessário para a reconstrução?” Foi esta a ideia aclamada pela maioria. Foi assim que se criou o exemplar serviço nacional de saúde inglês, que veio mais tarde a ser dizimado pela governação Thatcher.

 

O SNS é um dos temas centrais que divide a esquerda e a direita. Não é a mesma coisa que falar de ambiente ou de causas progressistas. Claro que a esquerda e a direita as veem de maneira diferente mas, neste assunto, estamos a falar na própria causa das coisas.

 

A esquerda pretendeu sempre um SNS de vocação universal e público. A direita pretende um SNS em articulação com os privados, o que na prática significa que deixa de ter aquela vocação; a de garantir a todos acesso a cuidados de saúde em condições de equidade.

 

Muito mudou. Desde logo, algumas pessoas deixaram de ter paciência para o discurso ideológico quando estão a tratar de questões da sua vida concreta. Querem lá saber se são soluções de esquerda ou de direita. Interessa-lhes ter um bom serviço de saúde.

 

Já os políticos e os partidos políticos navegam por águas turvas. Ainda ontem o líder da bancada do PS, Eurico Brilhante Dias, anunciava com orgulho que tinha sido o seu partido a lançar as PPP (parcerias público-privadas) na área da saúde e o próprio primeiro-ministro dizia que nesta área “não tinha dogmas ideológicos” e que as PPP existentes não foram renovadas por decisão, e legítima, dos privados. É verdade que tinham merecido uma boa avaliação por parte do Tribunal de Contas.

 

Há dois aspetos na atuação deste Governo, nesta área, que devem ser assinalados: por um lado, não quer entrar em guerra com os privados e, por outro, não parece disposto a aumentar as despesas estruturais do SNS.

 

São dois aspetos que exigem reflexão.

 

Os privados não são demónios. Mas são grupos económicos fortes e procuram o lucro. Esta não pode ser a lógica do SNS. Quando se abrem as portas aos privados — e se estes as querem abertas — o SNS perde a sua vocação original: a de servir todos e de conseguir fazê-lo autonomamente. Temos então uma outra coisa. E esta nova coisa exclui os que não podem pagar seguros de saúde. Veremos que condições terão estes seguros quando o SNS estiver ainda mais enfraquecido do que está hoje. Mas tem ainda outro efeito: é que torna o SNS dependente dos privados. Não são boas notícias. Como ter um serviço público dependente de organizações que visam o lucro numa área como a saúde?

 

Sucede também que o Estado está a gastar mais com a saúde mas não aumenta a despesa estrutural, na medida em que, por exemplo, não melhora as condições remuneratórias dos médicos. Prefere contratar tarefeiros. Estes tarefeiros, além de representarem um custo acrescido — são mais caros que os médicos do SNS — constituem um fator de desestabilização para os serviços. É bom de ver que assim é: não estão integrados na hierarquia e tão pouco na lógica da organização. Tapam buracos, mas não resolvem nada. Sem assegurar melhores condições remuneratórias e de trabalho para os médicos do SNS, a fuga destes vai continuar e urgências continuarão a fechar. Mas importa aqui perguntar: se não estamos a poupar nas despesas porque prefere o Governo contratar tarefeiros; porque prefere aumentar as despesas extraordinárias em vez de as despesas estruturais? A resposta pode ser simples: o tratado orçamental restringe as despesas estruturais. Queremos ser os bons alunos da União Europeia. E claro que um aumento salarial nesta classe pode desencadear a mesma exigência nas restantes.

 

Porque é que o Governo prefere contratar tarefeiros, aumentar as despesas extraordinárias em vez de as despesas estruturais? A resposta pode ser simples: o tratado orçamental restringe as despesas estruturais. Queremos ser os bons alunos da UE

 

Esquecemo-nos com muita facilidade de princípios fundamentais. Os países onde a saúde é um negócio tratam vergonhosamente quem não tem seguro de saúde. O exemplo dos Estados Unidos é emblemático; o receio que os pobres têm de adoecer e a recusa dos hospitais em acolherem quem não tem seguro. Mesmo em Portugal, sejamos claros: os seguros de saúde estão massificados, mas quando os segurados têm doenças graves, e o cancro é sempre delas bom exemplo, correm para o SNS. Também a pandemia foi uma boa lição; reparem que estava na lista das exclusões da maior parte deles.

 

O SNS português é ainda uma das grandes razões de orgulho da nossa democracia. Está à vista de todos que tem problemas graves, mas ainda é possível salvá-lo. Que o espírito de 45 nos acompanhe e que esteja no meio de nós.

 

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

 

Advogada

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