sexta-feira, 24 de junho de 2022

As muralhas da cidade

 



As muralhas da cidade

 

António Guerreiro

24 de Junho de 2022, 8:21

https://www.publico.pt/2022/06/24/culturaipsilon/cronica/muralhas-cidade-2010838

 

Chegam-nos de muito lado as notícias de que ter casa própria se tornou uma impossibilidade para a grande maioria dos jovens. Este assunto ganhou uma enorme amplitude pública em muitos países e é motivo para uma discussão sobre as terríveis consequências — não apenas sociais — que daí advêm. A questão do “direito à cidade” começa a perder relevância face a um direito mais urgente: o direito à habitação.

 

Foi a partir da palavra de ordem largamente difundida do “direito à cidade” que se constituíram nos últimos anos novos movimentos urbanos de contestação, dos quais vamos tendo um conhecimento avulso e esporádico. Soubemos, por exemplo, das manifestações em Berlim contra o aumentos das rendas, que expulsou muita gente para os bairros periféricos da grande metrópole (isto, numa grande metrópole constituída por muitos centros e que era, de um modo geral, uma cidade aberta e homogénea); soubemos que noutras cidades alemãs de menor dimensão, como Wuppertal, se constituíram frentes de cidadãos contra planos locais que originavam a gentrificação; sabemos que em Hamburgo grupos de artistas ocuparam edifícios de um enorme quarteirão para impedir projectos imobiliários; sabemos que em Madrid, para além de outras lutas de grupos organizados de cidadãos contra a quase privatização da cidade, tiveram uma grande repercussão pública (ainda que por razões certamente pouco essenciais) os protestos das prostitutas que tinham sido afastadas do seu bairro. Sabemos, em suma, que “o direito à cidade”, que o historiador francês Henri Lefebvre formulou num livro de 1968 com esse título, que continha uma reivindicação mas era muito mais do que isso, se transformou numa palavra de ordem com um enorme poder de atracção, numa altura em que se verifica a hegemonia da cidade neoliberal, nos seus modos de segregação e nas suas formas de alienação (e talvez a noção de neoliberalismo não encontre noutro sector uma manifestação tão radical da sua lógica económico-financeira).

 

O direito à cidade dirige-se, em primeiro lugar, aos grupos marginalizados (todos aqueles que se revelam excedentários para a gestão neoliberal da cidade), mas a reivindicação, tal como Lefebvre a enunciou, não se limita à questão do uso dos espaços da cidade, implica um conceito de espaço público, uma ideia da cidade como lugar de encontro, de reconhecimento mútuo, de discussão e debate político que sempre fizeram parte da potência criativa da cidade. Na sua concepção, o direito à cidade é muito mais do que o direito geral de acesso aos espaços e serviços urbanos, a sua reivindicação não é meramente jurídica, mas remete para a legitimidade de uma economia política susceptível e convoca a visão de um desenvolvimento urbano justo. A cidade da época neoliberal é uma negação do antigo conceito de cidade e há quem tenha diagnosticado a sua ruina irreversível. Mas o que temos verificado é que nem as piores crises (sejam elas financeiras ou sanitárias) a afectam nem alteram o seu percurso. As crises, aliás, tornaram-se permanentes (e portanto meras formas de governação) e a única coisa que as pode perturbar são as catástrofes iminentes.

 

Um dos prolongamentos mais interessantes do conceito de Lefebvre é da autoria do geógrafo inglês David Harvey, professor em universidades americanas. Deve-se a ele um longo texto publicado em 2008, que retoma, sem qualquer alteração (a não ser o facto de a sua língua ser o inglês) o título do célebre livro de Lefebvre. Nesse artigo, David Harvey defende a seguinte tese: desde o início dos anos 80 do século passado, uma imensa quantia de capital excedente foi absorvido na urbanização: na reestruturação urbana, na expansão e na especulação. As cidades tornaram-se assim sítios de construção imensa para absorção do capital. Por conseguinte, a única maneira de adquirirmos o poder de exercer o direito à cidade é ganhar o comando do excedente capitalista. Onde e quando nasce este processo de urbanização? Diz Harvey que as gigantescas obras de Haussmann, que renovaram Paris na segunda metade do século XIX, serviram exactamente para fazer da urbanização uma solução para os problemas do capital, do desemprego e das insurreições e motins. Paris dessa época continua assim a ser uma capital do século XXI.

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