OPINIÃO
Salvar o Serviço Nacional de Saúde
Quando se abrem as portas aos privados - e se estes as
querem abertas – o SNS perde a sua vocação original: a de servir todos e de
conseguir fazê-lo autonomamente. Temos então uma outra coisa.
Carmo Afonso
24 de Junho de
2022, 0:57
https://www.publico.pt/2022/06/24/opiniao/opiniao/salvar-servico-nacional-saude-2011153
O problema dos
filmes que têm implícita uma ideologia, ética ou moral, é que ficamos com a
sensação de que nos querem convencer de alguma coisa e, por isso, resistimos.
Seria bom desligarem essa resistência quando virem um dos melhores
documentários que vos posso recomendar: O Espírito de 45, de Ken Loach.
Não é ficção.
Corria 1945, o
ano que marcou o final da Segunda Guerra. Durante este período prevaleceu a
união, a prossecução do bem comum e a entreajuda. Foi um período
extraordinário, sobretudo no Reino Unido. Disse o realizador: “Se conseguíamos
planear campanhas militares, não conseguiríamos também construir casas, criar
um serviço de saúde e um sistema de transportes, fazer o que era necessário
para a reconstrução?” Foi esta a ideia aclamada pela maioria. Foi assim que se
criou o exemplar serviço nacional de saúde inglês, que veio mais tarde a ser
dizimado pela governação Thatcher.
O SNS é um dos
temas centrais que divide a esquerda e a direita. Não é a mesma coisa que falar
de ambiente ou de causas progressistas. Claro que a esquerda e a direita as
veem de maneira diferente mas, neste assunto, estamos a falar na própria causa
das coisas.
A esquerda
pretendeu sempre um SNS de vocação universal e público. A direita pretende um
SNS em articulação com os privados, o que na prática significa que deixa de ter
aquela vocação; a de garantir a todos acesso a cuidados de saúde em condições
de equidade.
Muito mudou.
Desde logo, algumas pessoas deixaram de ter paciência para o discurso
ideológico quando estão a tratar de questões da sua vida concreta. Querem lá
saber se são soluções de esquerda ou de direita. Interessa-lhes ter um bom
serviço de saúde.
Já os políticos e
os partidos políticos navegam por águas turvas. Ainda ontem o líder da bancada
do PS, Eurico Brilhante Dias, anunciava com orgulho que tinha sido o seu
partido a lançar as PPP (parcerias público-privadas) na área da saúde e o
próprio primeiro-ministro dizia que nesta área “não tinha dogmas ideológicos” e
que as PPP existentes não foram renovadas por decisão, e legítima, dos
privados. É verdade que tinham merecido uma boa avaliação por parte do Tribunal
de Contas.
Há dois aspetos
na atuação deste Governo, nesta área, que devem ser assinalados: por um lado,
não quer entrar em guerra com os privados e, por outro, não parece disposto a
aumentar as despesas estruturais do SNS.
São dois aspetos
que exigem reflexão.
Os privados não
são demónios. Mas são grupos económicos fortes e procuram o lucro. Esta não
pode ser a lógica do SNS. Quando se abrem as portas aos privados — e se estes
as querem abertas — o SNS perde a sua vocação original: a de servir todos e de
conseguir fazê-lo autonomamente. Temos então uma outra coisa. E esta nova coisa
exclui os que não podem pagar seguros de saúde. Veremos que condições terão
estes seguros quando o SNS estiver ainda mais enfraquecido do que está hoje.
Mas tem ainda outro efeito: é que torna o SNS dependente dos privados. Não são
boas notícias. Como ter um serviço público dependente de organizações que visam
o lucro numa área como a saúde?
Sucede também que
o Estado está a gastar mais com a saúde mas não aumenta a despesa estrutural,
na medida em que, por exemplo, não melhora as condições remuneratórias dos
médicos. Prefere contratar tarefeiros. Estes tarefeiros, além de representarem
um custo acrescido — são mais caros que os médicos do SNS — constituem um fator
de desestabilização para os serviços. É bom de ver que assim é: não estão
integrados na hierarquia e tão pouco na lógica da organização. Tapam buracos,
mas não resolvem nada. Sem assegurar melhores condições remuneratórias e de
trabalho para os médicos do SNS, a fuga destes vai continuar e urgências
continuarão a fechar. Mas importa aqui perguntar: se não estamos a poupar nas
despesas porque prefere o Governo contratar tarefeiros; porque prefere aumentar
as despesas extraordinárias em vez de as despesas estruturais? A resposta pode
ser simples: o tratado orçamental restringe as despesas estruturais. Queremos
ser os bons alunos da União Europeia. E claro que um aumento salarial nesta
classe pode desencadear a mesma exigência nas restantes.
Porque é que o Governo prefere contratar tarefeiros,
aumentar as despesas extraordinárias em vez de as despesas estruturais? A
resposta pode ser simples: o tratado orçamental restringe as despesas
estruturais. Queremos ser os bons alunos da UE
Esquecemo-nos com
muita facilidade de princípios fundamentais. Os países onde a saúde é um
negócio tratam vergonhosamente quem não tem seguro de saúde. O exemplo dos
Estados Unidos é emblemático; o receio que os pobres têm de adoecer e a recusa
dos hospitais em acolherem quem não tem seguro. Mesmo em Portugal, sejamos
claros: os seguros de saúde estão massificados, mas quando os segurados têm
doenças graves, e o cancro é sempre delas bom exemplo, correm para o SNS.
Também a pandemia foi uma boa lição; reparem que estava na lista das exclusões
da maior parte deles.
O SNS português é
ainda uma das grandes razões de orgulho da nossa democracia. Está à vista de
todos que tem problemas graves, mas ainda é possível salvá-lo. Que o espírito
de 45 nos acompanhe e que esteja no meio de nós.
A autora é
colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
Advogada


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